A
ORAÇÃO COMO VERIFICAÇÃO DA AUTENTICIDADE DAS NOSSAS ESCOLHAS
Nesta minha intervenção, procurarei
falar-vos brevemente da nossa oração comum. Mas é necessário ter presente
alguns elementos característicos da comunidade em que vivo. É uma comunidade
monástica que pretende propor o monaquismo ao mundo e à Igreja de hoje. Não
quisemos copiar os monges; procuramos um caminho próprio, todavia, na
continuidade da tradição monacal. São, essencialmente, dois os elementos novos:
antes de tudo, a Comunidade de Bose é
ecuménica ─ vivem em
conjunto evangélicos e católicos. Nós estamos comprometidos nesta direcção
ecuménica, não obstante o ecumenismo ter hoje passado de moda (sobretudo depois
da descoberta de outras divisões graves que existem na Igreja). Mas,
entretanto, a divisão entre católicos, evangélicos e ortodoxos permanece
tranquilamente, escandalosamente; de qualquer modo, esta unidade é necessária.
A Comunidade de Bose é, pois, uma comunidade na qual vivem, em conjunto, no
celibato, homens e mulheres.
O que é que caracteriza o monge? Os
primeiros monges viviam no deserto. Não tanto para procurar um Deus fora da
realidade, mas, pelo contrário, para combater Satanás. Hoje, felizmente, o
demónio foi desmitificado; perguntámo-nos se permaneceria ainda alguma coisa de
válido no tema da chamada fuga mundi.
Partindo de uma análise linguística
para a qual o «diabo» significa literalmente o «divisor», concebemos o nosso
papel de monges como o de homens e mulheres chamados a lutar contra a divisão,
onde quer que ela esteja: divisão social ou política, divisão confessional ou
eclesial, mas também divisão de tipo psicológico – a que eu sinto no interior
de mim mesmo (a crise, que está hoje, 1973, na moda![1]). Estes são alguns
lugares de tensão e de luta nos quais podemos ser homens, ministros da
reconciliação.
Mas a reconciliação não está, por
exemplo, em dizer aos patrões e aos operários: «Sejam bons! Estejam
tranquilos!». A reconciliação não significa
descompromisso. Trata-se, pelo contrário, de levar a justiça a todos
os homens, a justiça na qual cada homem pode ser realmente e plenamente ele
próprio. A nossa «fuga mundi» tornou-se, assim,
o nosso serviço para uma plena humanização dos homens, o nosso serviço pela sua libertação.
Neste contexto é que quisemos
redescobrir uma oração para hoje. Apercebemo-nos logo que não se tratava apenas
de renovar a oração: não bastava mudar as palavras e criar novas orações ─ embora isso também possa ser
necessário. Tratava-se, pelo contrário, de restituir
um conteúdo àquilo que se chama oração.
Um primeiro significado foi-nos dado
pela vocação que recebemos: pudemos
verificar que a oração se tornava o lugar por excelência no qual a nossa
comunidade (que vive a comunhão de bens, de pensamentos, de acção, de vida, da
divisão do pão por todos) exprime a sua unidade não tanto numa oração
particular, mas perante Deus. Noutros termos, a oração conduz-nos diante
daquele que julgamos estar na origem da nossa comunidade. É então um repetir a
verdadeira razão da nossa existência: nós queremos andar à frente na construção
do mundo que corresponda ao projecto da criação de Deus. Descobrimos, pois, a gratuitidade da oração: não se trata, na
oração, de pedir alguma coisa a Deus, mas sobretudo de dizer a Deus: «Estamos
aqui, acreditamos em ti, não sabemos por que acreditamos, acreditamos por que acreditamos que tu te deste a nós para
acreditarmos em ti… Estamos, pois, aqui, diante de ti». Neste acto
gratuito da oração, exprimimos a nossa unidade de comunidade, também ela
gratuita. A oração tornou-se o lugar no qual, diante de Deus, repetimos a nossa
escolha de vida comunitária.
Descobrimos, depois, que, de facto, a oração não é um luxo de burgueses: não são
eles que oram…, por isso, pouco importa contestar a oração dos burgueses. Pelo
contrário, são os pobres que oram, são
eles que têm necessidade da oração, porque não têm nada, porque os pobres
esperam tudo de Deus. É verdade que Deus não nos ouve: foi por isso que os burgueses deixaram de orar.
Pelo contrário, os pobres persistiram na oração, porque não têm outra esperança
senão na intervenção de Deus… mesmo que Deus não aja.
O pobre não pode contar com o seu
dinheiro, nem com o progresso técnico, porque a técnica moderna não se preocupa
com eles. Não pode contar com o seu poder – não o tem – e ainda menos com o
poder dos outros, porque os outros nunca pensaram neles: os assim chamados ‘revolucionários’, que fazem eles pelos doentes
mentais, por aqueles que todos os dias têm fome, tremem de frio, pelos
leprosos, pelos cegos, pelos coxos, pelas prostitutas que pecam apenas por
excesso de amor, que fazem eles dessa gente que existe e com a qual Jesus
viveu? São estes os verdadeiros pobres, aqueles que têm necessidade da oração!
A oração não é um luxo burguês. Pelo contrário, a
oração é a esperança dos pobres!
Mas, para nós, que não somos pobres,
para nós que somos burgueses – porque, mais ou menos, todos o somos – o que
pode significar a oração? Parece-me ser antes de tudo um lugar de maturação. Dou um exemplo: na minha
juventude, orei muito pela unidade da Igreja. Orei, até que compreendi que,
nessa oração, Deus me dizia: «Fazes bem em orar pela unidade, que eu também
desejo. Então, constrói e faz essa unidade pela qual oras!» A oração tornou-se momento de maturação…
É sempre perigoso orar, porque corre-se o risco que Deus
nos escolha para nos tornarmos o instrumento da realização da nossa oração! A
oração tornou-se o lugar do meu compromisso, mas também do compromisso do
próprio Deus: na minha oração pela unidade dos cristãos. Deus comprometeu-se,
foi Ele que me deu estes irmãos com os quais construímos a nossa comunidade.
Comunidade de Bose |
Com este exemplo se mostra que a oração é o lugar das escolhas que fazemos: na
oração procuramos saber qual é a vontade de Deus. É uma luta com Deus que acontece no jogo e na
oposição entre Palavra de Deus (que a cada passo descobrimos na leitura assídua
da Escritura) e a nossa palavra (que quer ser uma resposta à Palavra de Deus).
Por exemplo, é quando oro que descubro o famoso texto de Isaías, no qual Deus
diz: «Não sei o que hei-de fazer dos teus holocaustos, das tuas liturgias,
estou cansado de suportar as tuas celebrações. O que eu quero é que vós vos
ameis, que pratiqueis a justiça, que deixeis de oprimir os pobres, os órfãos, a
viúva» (cf. Is 1:10-20).
É da minha oração que
nasce a minha decisão positiva, construtiva, determinada: «Amarei, lutarei pela
justiça, viverei ao serviço dos homens».
A oração é, pois, o
lugar ou o momento em que escolho o meu caminho!
Mas a oração, em seguida, torna-se momento de julgamento: agi segundo a minha
decisão ou não? Na minha oração sinto o «Vinde, benditos de meu Pai, porque
tive fome e sede, estava nu e assististe-me…» ou «afastai-vos de mim malditos…»
(Mt 25:31-46)? A oração não é, então, a bela alienação de que tanto se fala. A
oração é, antes, o momento de verificação da minha autenticidade. A oração é o
momento em que se prova a coerência da minha fé cristã.
Concluo com uma imagem. A vida
cristã parece-se com uma sanduíche. Por baixo, está
uma fatia de pão. Esta fatia de pão é a “oração-luta-com-Deus”, que
me leva a uma decisão. Há, depois, a carne:
é a minha vida, em que procuro viver coerentemente a minha escolha, em que
tento ser verdadeiramente o sinal do Reino de Deus que se aproxima. Finalmente,
existe a fatia de pão de cima: o juízo
que Deus lança sobre a minha existência.
Não há oposição entre oração e vida,
assim como, na sanduíche, não há oposição entre pão e carne. Tal como acontece
na sanduíche, em que a carne dá gosto ao pão, enquanto o pão sustenta a carne,
o mesmo acontece na minha vida: o meu agir, o meu construir o mundo, o meu ser
homem no meio dos outros homens dá gosto à minha oração, enquanto a oração
sustenta a minha vida para a frente… para Deus.
Daniel Attinger, pastor evangélico
Monge da Comunidade de Bose
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