Profeta carismático
─ a vida dos homens
Crucifixão Branca, Marc Chagall |
Apresentámos, no primeiro capítulo, Jesus como profeta escatológico, destacando dez características da Sua mensagem: do anúncio do Reino e das Bem-aventuranças até ao sinal da destruição do Templo e a promessa da chegada do Reino. A mensagem de Jesus manifestou-se em gestos carismáticos ou “milagres de vida” (‘graça’) a favor dos homens, nos quais Deus se torna transparente.
(Para melhor os entender, esbocemos uma distinção prévia: 1. MAGIA – Algumas pessoas viram Jesus como mago, homem vindo de tempos longínquos numa altura em que não eram conhecidos ainda os métodos e as formas do conhecimento racional e da actuação científica. Como um mago bom (ainda que, por vezes, perigosamente próximo da bruxaria e do demonismo), Jesus rapidamente se tornou famoso; no entanto, foi condenado pela autoridade oficial (esta, mais racional) feita de sacerdotes e soldados. No fundo, os seus juízes tinham razão: a magia de Jesus continuaria a manter-nos atados ao mundo do irracional, mundo cheio de caprichos sacrais. 2. CARISMA – significa dom gratuito. É a expressão duma presença de Deus, a qual supera o plano dos comportamentos mais racionais de uma sociedade organizada (tradicionais, burocráticos). Supera-os sem os negar, tal como Paulo, em 1Cor 12-14, o desenvolveu tematicamente. Jesus teria sido um carismático, um criador, que soube trazer a todos a sua própria capacidade transformadora, iniciando uma mutação (no sentido de Reino), isto é, reconciliação humana e esperança futura em gratuitidade, para lá do sistema. Outras palavras e símbolos se empregaram e se podem empregar para falar da acção criadora de Jesus: muitos chamaram-lhe taumaturgo, homem capaz de realizar prodígios inexplicáveis; outros, curador ou terapeuta, já que tinha poderes curativos que ajudavam os enfermos a viver; outros, médico de corpos e de almas. Estes termos irão aparecer ao longo deste meu texto.)
Dividiremos o tema em dois capítulos, conformes aos símbolos centrais (de mago e de carismático). 1. Muitos viram Jesus como um mago, em sentido geral. 2. Nós vê-lo-emos como carismático; para isso, evocaremos alguns elementos da sua prática de pura gratuitidade (Reino) ao serviço dos excluídos do sistema; terminaremos com algumas conclusões breves.
1. Pano de fundo mágico – o milagre da comunicação
Alguns exegetas tomaram Jesus como mago: alguém que quebrou as normas convencionais da sociedade e, por isso, os que defendiam a ordem estabelecida sentiram-se ameaçados por Jesus. Em vez de Se apoiar no poder de Deus e nas leis racionais bem estabelecidas da sociedade sagrada do Seu tempo, apelou a forças aparentemente boas, mas que, ao cabo e ao resto, conduziam (ou podiam conduzir) à dissolução dessa mesma ordem estabelecida. Por isso, muitos o consideraram perigoso e preferiram matá-lo. É neste contexto que proporei três níveis de acção e de compreensão da realidade.
1. A magia queria, e quer, dominar o mundo servindo-se de certas forças ocultas, forças de tipo sagrado, que apenas alguns privilegiados sabem e podem manejar. Muitas vezes ─ a não ser que o próprio sistema os ponha ao seu serviço e desse modo os controle (assim sucedeu da China a Roma, onde alguns acabaram por ser funcionários do próprio Estado) ─ os magos costumam ser perigosos para a ordem social quando esta não consegue controlá-los. Israel formulou a condenação mais extrema que se conhece da magia, em Dt 18:9-22. Foi essa a explicação que, alguns exegetas, como Klausner e Vermes, deram para a rejeição e a condenação de Jesus como mago, por parte dos sacerdotes israelitas.
2. O racionalismo pretende igualmente tomar conta da realidade, mas segundo o espírito do sistema, e, para isso, serve-se da ordem legal estabelecendo meios e fins ─ religiosos (sacrais), filosóficos (racionais) ou científicos (técnicos) ─ organizando, assim, o modo como o homem pretende dominar o mundo e o tipo de relação social que pretende. Neste quadro, a religião estruturada, o pensamento filosófico e a própria ciência surgem como momentos ou graus dum contínuo racional, estreitamente relacionados entre si e determinados pela vontade do sistema.
3. Existe um nível de gratuitidade ou de acção carismática que, sem o negar, supera a ordem da racionalidade e dalgum modo justifica o objectivo mais fundo da magia, ainda que num sentido muito distinto, no sentido do dom e da gratuitidade, contra qualquer forma de manipulação sagrada. Situada neste nível, a religião não pode ser interpretada como sistema legal: não pretende dominar o divino, nem organizar em bloco os diversos elementos da vida humana, mas apenas venerar o mistério da realidade. Pertence ao plano da oferta ou do milagre, ao plano da experiência de admiração face à vida que nasce como algo maior do que nós, sem outra justificação que ela própria, em cada nascimento superando todo o tipo de morte.
A distinção entre magia, racionalismo e gratuitidade é positiva e pode ajudar-nos a compreender, de um modo básico, o contributo de Jesus, profeta carismático. Digamos que o homem primitivo habitava um jardim mágico, vital ou animista, onde os acontecimentos se sucediam impulsionados por almas ou forças (deuses ou demónios) que habitavam nas coisas; porém, simultaneamente, existia nisso algum tipo de experiência religiosa do foro da gratuitidade. As grandes religiões, que surgiram durante o tempo axial (budismo, cristianismo, islão, etc.), parecem mais relacionadas com a ordem racional, aparentemente organizadas em moldes de sistema sagrado, ainda que, no fundo, possuam também um certo tipo de gratuitidade superior.[1]
Como se poderá ver, coloquei o racionalismo propriamente dito na área intermédia, ocupando uma extensa franja da realidade e estabelecendo um tipo de organização «legal» da experiência humana, utilizando meios (sacrais, filosóficos e técnicos) para a consecução de certos fins, suscitando um todo ou um sistema bem estabelecido, com ramificações ou aplicações de tipo económico, social, ideológico ou militar. Este racionalismo permitiu que a vida se expandisse através das grandes culturas (religiosas, filosóficas, científicas), mas, em si mesmo, ele é insuficiente para compreender a realidade, na medida em que existem níveis da experiência anterior ou pré-racional (magia-mística) e também posterior ou supra-racional (religião da gratuitidade), que definem o homem na sua máxima fundura. (…)
2. Aplicando e alargando. O testemunho de Marcos
O evangelho de Marcos, mais do que as palavras de Jesus, descreve os factos, mais do que os seus discursos, descreve os seus gestos carismáticos libertadores. É provável que isso tenha sido uma reacção de Marcos contra uma certa tendência gnóstica da fonte Q, a qual se centra quase exclusivamente nas revelações da sabedoria de Jesus. Contudo, também constituiu uma oposição contra milagres todo-poderosos próprios dos “homens do divino” (theioi andres), [dos ‘funcionários do sagrado’]. Terá sido por isso que apresentou os milagres de Jesus como sinal de debilidade criadora e como entrega amorosa, expressando o sentido da Sua morte pelos outros a fim de instaurar o Reino. Morrer para oferecer um caminho de diálogo e de comunicação a todos, oferecendo a vida aos pobres e excluídos: eis o seu mais alto carisma, a expressão da sua mística pessoal, o do seu encontro amoroso com os outros.
Segundo Marcos, Jesus não pretendeu criar um sistema religioso mais perfeito, nem expor uma filosofia universal a partir dos princípios da realidade, nem uma certa ciência mais exacta ou mais misteriosa. A quem o procurava ou o veio a procurar, apenas ofereceu uma experiência imediata com Deus, pondo Deus em contacto directo com eles. Este foi o Seu carisma, essa a sua tarefa: comunicar-se de modo imediato e sem imposição, dum modo poderoso e amante, para marginalizados e enfermos da sua proximidade, oferecendo-lhes a possibilidade de viver - abriu-lhes uma porta de esperança. É o que vamos tentar demonstrar evocando cinco milagres ou conjuntos de milagres. (...)
Xabier Pikaza [2003]
[19 pp.]
[1] Sendo assim, podemos acrescentar que apenas o racionalismo ocidental moderno, que surgiu com a Ilustração, superou, de modo organizado, a magia (rejeitando, assim, o nível da gratuitidade), e dirigindo os seus processos cognitivos e operativos numa linha de acção instrumental bem programada e avalizada por ideias muito claras e experiências técnicas. A interpretação histórica mais conhecida dos três estádios que se vão sucedendo segundo um esquema diacrónico de A. Comte (religião, filosofia e ciência), de algum modo, está por trás da minha divisão e oferece, sem dúvida, alguns contributos. Contudo, tende a esquecer um elemento essencial: a experiência da mística e da graça propriamente dita, que dalgum modo se pode relacionar com a magia, mas que eu fiz deslocar sobretudo para o terceiro momento (gratuitidade e carisma). Tal experiência não se pode transformar em sistema e, portanto, não pode entrar em nenhum dos três estádios de A. Comte, nem mesmo no racionalismo da área intermédia do meu esquema.