teologia para leigos

2 de março de 2013

FÉ E POLÍTICA [Padre J. ALVES CORREIA]


A «pequenice dum país realmente pequeno …»

Para aqueles que acham que a Fé e o cristianismo começam onde acaba a política, para aqueles que acham que há uma linha que separa o sentido da vida (a dimensão religiosa) e a análise (económica, sociológica, etc.) política, para aqueles que julgam que ser cristão é «uma certa forma de dialogar com o mundo» ergue-se a figura do Padre Joaquim Alves Correia, sacerdote dos Missionários do Espírito Santo, em cujo movimento de jovens − L.I.A.M.[1] − «militei» (aos 18 anos de idade).

«O Mal e a Caramunha», artigo publicado no jornal República (23/10/1945) é um libelo acusatório contra o regime ditatorial de Salazar. Quantos padres da Igreja Católica, hoje, seriam capazes da mesma clareza de linguagem, da mesma acutilância de análise social e de coragem teológica diante do governo que nos (des)governa, com a TROIKA a cavalo?

A Igreja Oficial Católica portuguesa foi sempre mais ou menos como hoje é: feita de representantes mais ou menos calculistas / calculadores dos riscos que correm, sempre em busca da melhor «acomodação», da negociação concordatária possível . É por isso que, nela, os profetas que falam e «caminham sempre a direito como os raios do sol» (D. António Ferreira Gomes, bispo[2]) nunca cabem. E, não cabem, pela sua «pequenice» (ibidem). Ontem como hoje, o Êxodo está-lhes destinado. A Igreja Oficial católica portuguesa, na prática, dispensa o estudo dos textos bíblicos e refugia-se, cada vez mais, numa espiritualidade «descafeinada» para elites cultas, gelatinosas, literatas. A determinação de Jesus [Mt 20:18] é-lhe desconhecida! O fulgor messiânico dos seus milagres é remetido. A humanidade curadora da sua presença é escatologizada. Soft é a fé.

«É triste saber o papel e a tinta que o catolicismo português gastou em jornais, revistas e livros de estupidificação»… (Frei Bento Domingues, op).

O padre Joaquim Alves Correia é, hoje, um tão ilustre quanto raro representante duma Fé assente numa elaboração teológica que tem dimensão política e que deixa falar o Evangelho a partir duma opção pela justiça para os pobres. As Igrejas oficiais costumam ter a dimensão dos países oficiais… O Nazareno costuma “passar ao largo”: aventura-se em águas mais profundas [Lc 5:4]. Na linha dum frei Bento Domingues de hoje, no século passado, com o padre Joaquim Alves Correia regressámos ao Evangelho para «seguir Jesus». De olhos bem postos no trilho do Jesus dos evangelhos...

(Reparem na linguagem: diante do Dinheiro, Cristo como um incompetente (gestor); o Dinheiro não é arma com que o Reino de Deus possa contar; ricos, réus do sangue de Cristo; plutocracia feroz; Capital interesseiro e frio, verdadeiro crime; excomungados pelo Evangelho, etc.)






Exploração do trabalho e do pobre

“não amemos com palavras e de língua, mas por obras e verdade!”



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pobres escandalizadiços e exploradores políticos desse escândalo dos pobres, que lançam em rosto à Igreja e ao Cristianismo o não terem ainda acabado com a exploração do trabalho proletário, em vinte séculos de acção no mundo! Pois Jesus Cristo já contava com esse fracasso “Pobres tereis vós sempre convosco”.

É que a função do Cristianismo é anunciar a verdade e a moral do amor; não é forçar o mundo nem os corações livres. Amor forçado… já não seria amor.

Se alguns sociólogos cristãos sonharam com a utopia de ver solucionada pela acção da Igreja a questão social e imposto por Ela fim ás injustiças sociais, seria porque se esqueceram da palavra do Mestre: “O meu Reino não é dêste mundo. Se fosse dêste mundo o meu Reino, teria ministros que viessem combater e nunca eu te seria entregue; mas o meu Reino não é isso”. (Joan. XVIII, 36).

Se a Igreja pudesse arrogar-se algum dia a capacidade de distribuir os bens dêste mundo, para acabar com a injustiça, a Igreja teria suplantado o próprio Mestre! Um dia, veio ter com Jesus um queixoso e rogou-lhe: “Senhor, dize a meu irmão que reparta comigo a herança”. E o Senhor respondeu-lhe:
“Homem, quem é que me constituiu juiz nessas coisas?!”

Diante do dinheiro, Cristo quis sempre aparecer como estranho, como um incompetente. [Giovanni] Papini observa que, diante dêsse “excremento do Diabo”, o Filho de Deus só mostrou nojo: foi impureza em que não quis tocassem suas mãos divinas, que aliás tocaram até leprosos.

Quando os pretendentes ao Reino de Deus recusassem desapegar-se primeiro da imunda “mammona”, declarava-se impotente. Ao jovenzinho, para quem olhou e a quem amou, mas que viu retirar triste, porque tinha muita tristeza e não se atrevia a separar-se dela, prenunciou destinos escuros: “Quão dificilmente os que têm riquezas entrarão no Reino de Deus!”.

Não! O dinheiro não é arma com que o Reino de Deus possa contar, nem se deixará nunca manobrar e dirigir pela Igreja, Reino de Deus organizado, para o bem do mundo.

Nas lutas do Dinheiro e das suas vítimas, a Igreja não poderá nunca presidir, senão de fora, proclamando imparcialmente a verdade e o dever a pobres e a ricos: aos primeiros, condenando a vingança, a violência, os ódios sanguinários; aos segundos, increpando a exploração, o orgulho insolente, o luxo e os desperdícios da orgia gozadora, que são um insulto aos irmãos pobres.

“Uns com fome, enquanto outros retoiçam na embriaguez! Poderia eu louvar essa desordem? Não, não a louvo!” (1Cor. 20 22).

Não pode a Igreja sofrer calada uma tal desigualdade. Não a louva, sobretudo, quando os ricos, que assim abusam da sorte, são cristãos e comungantes do Corpo do Senhor! Comungantes e réus do sangue de Cristo, símbolo de amor até à imolação, de sacrifício e de activa caridade fraterna.

A Igreja não precisa de excomungar os que, em nome dos interesses do Capital que servem, exploram o sangue e o suor dos operários. Já estão excomungados pelo Evangelho, que até condena os que comem e bebem, sem exploração nenhuma, mas simplesmente fechando o coraçãos aos sofrimentos e privações de irmãos:

“Ide, malditos, para o eterno fogo, porque tive fome e não me destes de comer, porque tive sêde e não me destes de beber, porque estava nu, enfêrmo e preso, e nem me vestistes nem me visitastes.”
“E quando te vimos, Senhor, faminto, cheio de sêde, enfêrmo ou nu, e te não socorremos?”
“Quando assim estavam os meus irmãos pequeninos e não lhes valestes.” ( Vidè Mat. XXV, 34…).

E S. João, na sua primeira Epístola, (cap. III, 17) é de uma clareza irrespondível:
“Se alguém tem riquezas dêste mundo, vê seu irmão a definhar em necessidade e lhe fecha as entranhas da compaixão, como é que vai pensar que tem a caridade de Deus em si?! Filhinhos, não amemos com palavras e de língua, mas por obras e verdade!”

Se é uma verdadeira impiedade, aos olhos de Cristo, retoiçar egoisticamente no supérfluo, quando outros definham na miséria, quanto mais horrível pecado, quanto maior crime verdadeiro crime! não será engrossar o supérfluo à custa do trabalhador que nos enriquece!

O Evangelho e os Apóstolos vão repetindo que digno é do seu salário (evidentemente salário completo, para a vida familial do operário que nos dá tôda a sua actividade grangeadora) todo aquele que trabalha. Mas S. Tiago, mais claro do que todos, diz-nos que o ratinhar o fruto do trabalho ao operário é crime que brada aos Céus: maldição que a Igreja arquivou nos catecismos do povo. Ouçamos S. Tiago:
“Eis que o salário do trabalho dos que ceifaram as vossas searas, e em que vós cometestes fraude, clama contra vós: e êste clamor entra pelos ouvidos do Senhor Sabaot. Banqueteastes-vos sôbre a terra e no luxo e na orgia cevastes vosso coração: mas foi para o dia da matança!” (Tiago, cap. V, vers. 4 e 5).

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Para defenderem o seu direito sagrado ao salário condigno, começaram por tôda a parte os operários a associar-se, a sindicar-se, para se impor.
Querer opor-se a essa fôrça nova que surge, seria maldade e amor da tirania, a não ser que fosse ingenuidade e esperança pueril de ver o capital deixar de ser feroz e interesseiro, duro, frio como o metal das suas libras, e vir por si mesmo levantar a miséria que o serve, tocado pela voz doce de Jesus ou pelos anátemas que Êle fulminou contra os ricos.

A Igreja de Jesus prega deveres aos ricos; mas vai dizendo aos pobres que contem antes consigo próprios. É o que Ela quere dizer com as bênçãos e o interêsse maternal com que acompanha, por tôda a parte, o sindicalismo cristão, a organização ordeira, sem ódios, sem ameaças, do trabalho e dos trabalhadores.

Os pequenos, na união que faz a fôrça, querem defender os seus interesses; mas defendem também os do mundo; porque a Plutocracia feroz, ou é trazida à razão pela fôrça ordeira da organização dos que trabalham, ou rebentará estrondosamente, fulminada pela vingança dos miseráveis, levados ao desespêro por um longo cativeiro e congregados entre si pela fôrça maior que há no mundo depois do amor: o ódio, ódio cego à sociedade que sancionou dureza e injustiças.

Padre Joaquim Alves Correia [Aguiar de Sousa, Paredes 1886 – Pittsburgh, USA 1951]
Missionário do Espírito Santo

in “A largueza do Reino de Deus – ou de como a intolerância e o despotismo são apenas variações do Anticristo proteiforme”
Imprensa da Portugal-Brasil, Rua da Alegria 100, Lisboa, 1931, pp. 90-93.

[Manteve-se toda a grafia; acentuação e gralhas, inclusivamente; reproduziu-se capa e página de rosto]


Fazer «o mal e a caramunha»: fazer o mal e querer passar por vítima, lamuriar-se (com lágrimas de crocodilo) sobre a vítima por si esmagada...





[1] L.I.A.M. – Liga Intensificadora de Acção Missionária, à data, dirigida pelo padre Lapa (Porto).
[2] Cf. «Cristianismo e Revolução», selecção de textos (de P. J. Alves Correia) de Anselmo Borges; prefácio de D. António Ferreira Gomes; Livraria Sá da Costa, 19771.