teologia para leigos

13 de fevereiro de 2013

«EXTRA PAUPERES NULLA SALUS» [JON SOBRINO]

“A vueltas con Dios,
A vueltas con los pobres”





Pediram-me para escrever o epílogo a um livro que mal tempo tive de ler. (…) Bem sabemos o quanto se discute, hoje, se a Teologia da Libertação goza de saúde ou se, pelo contrário, está já bem morta e bem enterrada. Eu também me interrogo. No entanto, de mil maneiras, continuam a ouvir-se aquelas palavras lapidares: «Em bem vejo a aflição do meu povo e ouço o clamor que os seus capatazes lhe arranca. Por isso, desci para o libertar» (Ex 3:7-8). Assim é o nosso mundo. Assim é o nosso Deus.

«Deus» e «povo que sofre» são realidades últimas, tal como nos acaba de lembrar Don Pedro Casaldáliga: «tudo é relativo, menos Deus e a fome». (…)

Não pude ler o livro pausadamente e com atenção, porém pretendo dizer algumas palavras acerca do título «Descer os pobres da cruz», que está escrito sobre a bela ilustração de Máximo Cerezo. Comecemos com uma reflexão sobre «os pobres».

Os da minha geração recordarão um famoso livro, dos anos sessenta, com o discreto título «Às voltas com Deus». Deus é mistério, santo e ao mesmo tempo próximo. Se o deixarmos ser Deus, sem o querer manipular ou domesticar, andaremos sempre «às voltas com Deus». E isso, porque a teologia apenas consegue dizer que «o mistério permanece eternamente mistério», como dizia Karl Rahner.

A misteriosidade do mistério de Deus permanece, mas, colado a ele, encontramos o mistério dos pobres. Isso está nas Escrituras, nas tradições cristãs e em veneráveis religiões. Em Medellín apenas para colocar uma referência temporal   esse mistério deixou-se ver   ophté como mistério inesgotável, luz poderosa e exigência convocante. A partir de então, de modo muito real e existencial, Deus, sem deixar de ser Deus do mistério, abriu espaço para o mistério dos pobres. É por isso que, com mais ou menos sorte, teremos que continuar «às voltas com os pobres». É por isso que me agrada que eles estejam no título do livro.

Quem e quantos são, porque o são, até quando o serão, são perguntas essencialmente categoriais. Uns estudam-nos para aprofundar a sua realidade, outros para os fazer chegar, educadamente, um pouco para lá da nossa vista. Muitos teólogos e teólogas, que andaram «às voltas com os pobres», iluminaram-me muito. Pessoalmente, tentando relacionar os pobres com a nossa realidade   à qual, aliás, não pertenço formulei as seguintes conclusões.

Pobres são os que não dão por adquirido ter vida (ter vida como algo normal), pelo que eu não sou um deles, já que o dou por adquirido. Pobres são os que têm (quase) todos os poderes deste mundo contra eles, dimensão dialéctica   expressão de outrora   na qual, pelo simples facto de eles existirem, faz com que a sua condição de pobres se constitua, para mim, na pergunta se estou a favor ou contra. Pobres são os que não têm nome: as oitocentas mil pessoas de Kibera, chacinadas, praticamente sem latrinas.[1] Pobres são, seja-me permitido um disparate, os que não têm calendário: eles não fazem a mínima ideia o que seja o 7O, ainda que saibam todos o que é o 11S. O 7O é o 7 de Outubro, dia em que as democracias bombardearam o Afeganistão como resposta ao 11 de Setembro. Sem nome e sem calendário, os pobres não têm existência. Não são. Diante disso, interrogam-me: que palavra dizer, ou não, para que o sejam?

Os pobres são sim! Neles resplandece um grande mistério: a sua «santidade primordial». Com temor e tremor escrevi: «extra pauperes nulla salus». Eles transportam salvação.

Tudo isto é questionável. Pretendo, contudo, insistir em que, pelo menos numa teologia cristã, não podemos sacudir os pobres como o fazemos à caspa dos ombros, muito menos devemos colocá-los em segundo plano: é nobre e necessário um comportamento ético para com eles. O motivo já o avancei: os pobres tornam presente um mistério. Os pobres oferecem uma mistagógia para que nos introduzamos no mistério de Deus. A inversa é igualmente verdadeira: a fim de que, a partir de Theos, nos abeiremos melhor do seu mistério.

Monsenhor Romero conhecia a sentença de Ireneu «Gloria Dei vivens homo», e, semanas antes de ser assassinado, formulou-a deste modo: «Gloria Dei vivens pauper». Donde resulta ainda que soe imperdoavelmente abstracta   que «pobres são aqueles que, vivendo, são a glória de Deus». Usando palavras mais prementes, Deus sai de Si mesmo com prazer, alegra-se, quando vê que esses milhões de seres humanos empobrecidos, desprezados, ignorados, desaparecidos e assassinados, respiram, comem e dançam, vivem uns com os outros, dão as mãos aos que não são pobres como eles, inclusivamente perdoam aos que os vêm oprimindo ao longo de séculos. Confiam em Deus como a um pai ou a uma mãe amorosa e alegram-se com o seu irmão Jesus. (…)

Deles, Puebla disse que Deus, independentemente da sua situação pessoal e moral, «defende-os e ama-os», e disse-o por esta ordem. Ora, quando se tem que defender alguém é porque há inimigos por perto. Os inimigos dos pobres são, sobretudo, os ídolos da riqueza e do poder, segundo o ponto de vista de Puebla. A figura do pobre fala-nos de uma «luta de deuses».






Quando vi a capa do livro, o que em primeiro lugar me ocorreu foi esta centralidade do pobre. Sugeriu-me aquilo que hoje pode constituir-se como o concentrado, a «fórmula breve do cristianismo»: «gloria Dei vivens pauper». Mas, na capa do livro há mais!

Na pintura de Maximino Cerezo, os pobres homens e mulheres pendem duma cruz. Não se trata de uma metáfora de economistas, nem «povo crucificado» é uma expressão politicamente correcta. Pender da cruz pode ser linguagem da Arte, mas, não entre muitos, tal linguagem é também de teólogas e de teólogos.

Pobres são os que ficam (…)

Na noite de Natal de 1978, com estas palavras o disse Monsenhor Romero:

«A Igreja prega a partir dos pobres. Nunca nos envergonhemos de dizer Igreja dos pobres, pois entre os pobres Cristo colocou sua cátedra de redenção».

A cristologia da libertação tem muitos mais temas para tratar, mas deve dar um contributo importantíssimo à construção dessa igreja. Com isso, resolverá também muitos demónios do nosso tempo, quer na sociedade, quer nas igrejas. São eles, o docetismo   viver no irrealismo, viver na abundância e na pompa num mundo em que se morre de fome; o gnosticismo procurar a salvação no esotérico e não no seguimento de Jesus; uma fé e uma liturgia light quando o que a realidade está a exigir é uma fé robusta, audaz. Ao invés, usando palavras fortes espera-se da cristologia que, diante do Cristo que se fez presente no nosso mundo latino-americano como num ingente Mateus 25, não ajude, mesmo que inconscientemente, a dizer como o Grande Inquisidor: «Senhor, não voltes».

A nossa esperança é outra. Que o Cristo de Medellín regresse e fique neste continente. Que nos surja através de muitas outras testemunhas de igrejas e de religiões. E que o conheçamos melhor para o podermos amar mais e segui-lo.

Jon Sobrino, sj

[10 pp.]