“A vueltas con Dios,
A vueltas con los pobres”
Pediram-me para escrever o epílogo a um livro que mal tempo tive de ler. (…) Bem sabemos o quanto se discute, hoje, se a Teologia da Libertação goza de saúde ou se, pelo contrário, está já bem morta e bem enterrada. Eu também me interrogo. No entanto, de mil maneiras, continuam a ouvir-se aquelas palavras lapidares: «Em bem vejo a aflição do meu povo e ouço o clamor que os seus capatazes lhe arranca. Por isso, desci para o libertar» (Ex 3:7-8). Assim é o nosso mundo. Assim é o nosso Deus.
«Deus» e «povo que sofre» são realidades últimas, tal como nos acaba de lembrar Don Pedro Casaldáliga: «tudo é relativo, menos Deus e a fome». (…)
Não pude ler o livro pausadamente e com atenção, porém pretendo dizer algumas palavras acerca do título «Descer os pobres da cruz», que está escrito sobre a bela ilustração de Máximo Cerezo. Comecemos com uma reflexão sobre «os pobres».
Os da minha geração recordarão um famoso livro, dos anos sessenta, com o discreto título «Às voltas com Deus». Deus é mistério, santo e ao mesmo tempo próximo. Se o deixarmos ser Deus, sem o querer manipular ou domesticar, andaremos sempre «às voltas com Deus». E isso, porque a teologia apenas consegue dizer que «o mistério permanece eternamente mistério», como dizia Karl Rahner.
A misteriosidade do mistério de Deus permanece, mas, colado a ele, encontramos o mistério dos pobres. Isso está nas Escrituras, nas tradições cristãs e em veneráveis religiões. Em Medellín ─ apenas para colocar uma referência temporal ─ esse mistério deixou-se ver ─ ophté ─ como mistério inesgotável, luz poderosa e exigência convocante. A partir de então, de modo muito real e existencial, Deus, sem deixar de ser Deus do mistério, abriu espaço para o mistério dos pobres. É por isso que, com mais ou menos sorte, teremos que continuar «às voltas com os pobres». É por isso que me agrada que eles estejam no título do livro.
Quem e quantos são, porque o são, até quando o serão, são perguntas essencialmente categoriais. Uns estudam-nos para aprofundar a sua realidade, outros para os fazer chegar, educadamente, um pouco para lá da nossa vista. Muitos teólogos e teólogas, que andaram «às voltas com os pobres», iluminaram-me muito. Pessoalmente, tentando relacionar os pobres com a nossa realidade ─ à qual, aliás, não pertenço ─ formulei as seguintes conclusões.
Pobres são os que não dão por adquirido ter vida (ter vida como algo normal), pelo que eu não sou um deles, já que o dou por adquirido. Pobres são os que têm (quase) todos os poderes deste mundo contra eles, dimensão dialéctica ─ expressão de outrora ─ na qual, pelo simples facto de eles existirem, faz com que a sua condição de pobres se constitua, para mim, na pergunta se estou a favor ou contra. Pobres são os que não têm nome: as oitocentas mil pessoas de Kibera, chacinadas, praticamente sem latrinas.[1] Pobres são, seja-me permitido um disparate, os que não têm calendário: eles não fazem a mínima ideia o que seja o 7O, ainda que saibam todos o que é o 11S. O 7O é o 7 de Outubro, dia em que as democracias bombardearam o Afeganistão como resposta ao 11 de Setembro. Sem nome e sem calendário, os pobres não têm existência. Não são. Diante disso, interrogam-me: que palavra dizer, ou não, para que o sejam?
Os pobres são sim! Neles resplandece um grande mistério: a sua «santidade primordial». Com temor e tremor escrevi: «extra pauperes nulla salus». Eles transportam salvação.
Tudo isto é questionável. Pretendo, contudo, insistir em que, pelo menos numa teologia cristã, não podemos sacudir os pobres como o fazemos à caspa dos ombros, muito menos devemos colocá-los em segundo plano: é nobre e necessário um comportamento ético para com eles. O motivo já o avancei: os pobres tornam presente um mistério. Os pobres oferecem uma mistagógia para que nos introduzamos no mistério de Deus. A inversa é igualmente verdadeira: a fim de que, a partir de Theos, nos abeiremos melhor do seu mistério.
Monsenhor Romero conhecia a sentença de Ireneu «Gloria Dei vivens homo», e, semanas antes de ser assassinado, formulou-a deste modo: «Gloria Dei vivens pauper». Donde resulta ─ ainda que soe imperdoavelmente abstracta ─ que «pobres são aqueles que, vivendo, são a glória de Deus». Usando palavras mais prementes, Deus sai de Si mesmo com prazer, alegra-se, quando vê que esses milhões de seres humanos empobrecidos, desprezados, ignorados, desaparecidos e assassinados, respiram, comem e dançam, vivem uns com os outros, dão as mãos aos que não são pobres como eles, inclusivamente perdoam aos que os vêm oprimindo ao longo de séculos. Confiam em Deus como a um pai ou a uma mãe amorosa e alegram-se com o seu irmão Jesus. (…)
Deles, Puebla disse que Deus, independentemente da sua situação pessoal e moral, «defende-os e ama-os», e disse-o por esta ordem. Ora, quando se tem que defender alguém é porque há inimigos por perto. Os inimigos dos pobres são, sobretudo, os ídolos da riqueza e do poder, segundo o ponto de vista de Puebla. A figura do pobre fala-nos de uma «luta de deuses».
Quando vi a capa do livro, o que em primeiro lugar me ocorreu foi esta centralidade do pobre. Sugeriu-me aquilo que hoje pode constituir-se como o concentrado, a «fórmula breve do cristianismo»: «gloria Dei vivens pauper». Mas, na capa do livro há mais!
Na pintura de Maximino Cerezo, os pobres ─ homens e mulheres ─ pendem duma cruz. Não se trata de uma metáfora de economistas, nem «povo crucificado» é uma expressão politicamente correcta. Pender da cruz pode ser linguagem da Arte, mas, não entre muitos, tal linguagem é também de teólogas e de teólogos.
Pobres são os que ficam (…)
Na noite de Natal de 1978, com estas palavras o disse Monsenhor Romero:
«A Igreja prega a partir dos pobres. Nunca nos envergonhemos de dizer Igreja dos pobres, pois entre os pobres Cristo colocou sua cátedra de redenção».
A cristologia da libertação tem muitos mais temas para tratar, mas deve dar um contributo importantíssimo à construção dessa igreja. Com isso, resolverá também muitos demónios do nosso tempo, quer na sociedade, quer nas igrejas. São eles, o docetismo ─ viver no irrealismo, viver na abundância e na pompa num mundo em que se morre de fome; o gnosticismo ─ procurar a salvação no esotérico e não no seguimento de Jesus; uma fé e uma liturgia light ─ quando o que a realidade está a exigir é uma fé robusta, audaz. Ao invés, ─ usando palavras fortes ─ espera-se da cristologia que, diante do Cristo que se fez presente no nosso mundo latino-americano como num ingente Mateus 25, não ajude, mesmo que inconscientemente, a dizer como o Grande Inquisidor: «Senhor, não voltes».
A nossa esperança é outra. Que o Cristo de Medellín regresse e fique neste continente. Que nos surja através de muitas outras testemunhas de igrejas e de religiões. E que o conheçamos melhor para o podermos amar mais e segui-lo.
Jon Sobrino, sj
[10 pp.]
[1] «Quando Deus vier cá abaixo, mudará a nossa situação...»; cf. VÍDEOS:
http://www.youtube.com/watch?v=cfW_r_4stqs
http://www.youtube.com/watch?v=cfW_r_4stqs