teologia para leigos

3 de fevereiro de 2013

BÍBLIA, «PALAVRA» DE DEUS? [QUEIRUGA]

Que significa afirmar que Deus fala?





O conceito “vulgar” de Revelação

A cada domingo, milhões de cristãos em todo o mundo escutam a leitura de uns quantos textos. No fim, o leitor diz: «Palavra de Deus». Trata-se de textos sagrados que remontam a dois ou três mil anos. Outrora, Deus falou. A teologia ensina que essa fala de Deus «terminou com os Apóstolos» e deu, como resultado, aquilo que designamos por BÍBLIA.

Quando estudamos mais de perto a Bíblia, apercebemo-nos que Deus falou em condições concretas, de modo extraordinário, a quem quis (a quem elegeu) e a quem transmitiu o que quis. Deus é livre de revelar quando, quanto e como bem quer.

Até há pouco, supunha-se que tal facto − a revelação de Deus − só ocorrera em Israel. Os restantes povos viviam num estado de «religião natural», produto da sua razão, procurando tactear esse Deus que havia falado noutro tempo e em outro lugar, esperando naturalmente que um dia também a eles lhes tocasse algo.

Não se pode dizer que tudo isto seja falso nem que não haja um pingo de verdade nesta afirmação. No entanto, ditas assim as coisas, de modo esquemático mas não deformado, é chocante e inaceitável.


Urgência de uma mudança da ideia de Deus

Mesmo para Deus, isto é inaceitável. Se purificarmos a Sua imagem, é incompreensível um Deus assim estranhamente particularista, para não dizer arbitrário. Criar toda a humanidade, mas revelar o Seu amor apenas a uma pequeníssima minoria é como um homem que tivesse muitos filhos, mas só cuidasse dum e deitasse os restantes ao lixo.

Ø  Porquê só a uns quantos e não a todos os outros?

Ø  Porquê não dizer tudo duma vez só e de imediato?

Ø  Como explicar que até ao séc. III aC tivesse mantido o seu Povo imerso na ignorância sobre a vida eterna provocando crises terríveis como a que o livro de Job relata?

Ø  Pior: como é possível que Deus diga que, em certas circunstâncias, tem que ‘passar a fio de espada’ cidades inteiras − o herem ou anátema[1] −, ou, que iria mandar descer a peste sobre o Povo (2 Sm 24) porque o Rei havia pecado (ainda por cima, instigado a pecar por Deus: cf. 2Sm 24:1-17), ou, que castiga a culpa dos pais sobre os filhos até à quarta geração (Ex 34:7; Nm 14:18)?

É doloroso ouvir tais afirmações. No entanto, a simples consulta de qualquer dicionário bíblico permite alongar ainda mais a lista. Importa deixar fluir a irritação e orientá-la na direcção correcta como uma espécie de convite à reflexão radical e honesta sobre um tema que importa enfrentar com urgência.

A manter-se a reflexão ”tradicional”, não se pode negar a evidência das consequências que ela acarreta. Lida assim a Bíblia, os cardeais romanos, em consciência, não podiam permitir que Galileu continuasse a afirmar que a terra se movia, quando é mais que evidente que o livro de Josué diz que «o sol se deteve» (Js 10:13); ora, isso equivalia a presumir que o Sol é que girava (e não a Terra). A única saída é reavaliar a nossa concepção da Revelação e interrogar-nos sobre o que queremos dizer quando proclamamos que um determinado texto é «palavra de Deus».


Necessidade de coerência radical

Não é só a ideia de Deus que exige mudança, mas é a própria vivência da fé que o exige e que o pressupõe a cada instante, porque a experiência religiosa implica que Deus se nos comunique AQUI e AGORA, a TODOS e a CADA UM, e de maneira SEMPRE renovada.

De cada vez que oramos damos por adquirido que “falamos” com Deus e que Ele nos responde, e, por isso, procuramos saber dos movimentos da Sua graça no nosso ser. Todos desejamos saber o que Deus nos quer dizer, que caminhos deseja Ele para a nossa realização plena, que quer que façamos para que com isso possamos ajudar os outros.

Não estamos acostumados a chamar a isto “revelação”, mas que o é, é. Não o conceber assim é fruto duma visão deformada que faz da «palavra de Deus» algo longínquo, algo acontecido in illo tempore. Como consequência, opera-se na nossa vida um dualismo: por um lado está aquilo a que chamam «palavra de Deus» e, por outro, caminha a vida da oração, a experiência da graça. E tudo reforçado pela mentalidade deísta: separação entre o «natural» e o «sobrenatural».

Como resultado, surge a “má consciência”, que ‘fala’ umas coisas mas ‘faz’ outras, que vive dividida entre a teoria e a prática:

Ø  A Revelação (teoria) acabou outrora, mas Deus está presente na nossa vida (prática);
Ø  Deus falou apenas a alguns, poucos (teoria), mas vela por todos (prática);
Ø  Deus só fala através das Escrituras (teoria), mas comunica-se-nos na oração (prática), etc.

É um conflito muito grave, que afecta bastante a nossa vida e que faz parte desse tal síndroma que, para muitos, tornou incompatível e Cultura Moderna. Hegel viu aí o cume da «consciência desgraçada», da consciência dividida entre a fé em Deus e a afirmação do humano. E indicou as falsas saídas: fideísmo («iluminismo / ilustração insatisfeita»), que se recusa a pensar a fé nesta situação que é a nossa, e racionalismo ilustrado, que abandona a Fé deixando-nos apenas com o pensamento / Razão.


Um novo paradigma

Tudo o que é novo desconcerta. A secularização e o ateísmo são os sinais maiores duma crise que tudo atingiu. Porém, a novidade costuma também ‘trazer o seu pão debaixo do braço’… As grandes mudanças costumam ser a resposta a uma necessidade do seu tempo, o que quer dizer que, debaixo dessas grandes mudanças, há forças que trabalham a história procurando reorganizá-la de uma maneira nova, de uma maneira mais de acordo com o estado actual da humanidade. Quando a organização nova alastra pelo conjunto todo, então, fala-se em «mudança de paradigma».

Não se trata de ajustamentos pontuais, mas dum todo que se move e estrutura à procura duma nova compreensão global. Essa mudança não anula a situação anterior: procura compreendê-la e vivê-la doutro modo. No que diz respeito às experiências profundas que têm a ver com as raízes permanentes do humano, exigem ser traduzidas em novas circunstâncias. Tratando-se da fé, isso é mais que óbvio.

Há sempre a tentação da inércia: negar a mudança ou defender-se dela com meras adaptações pontuais. Como o demonstrou Thomas Kuhn em relação à ciência, isto chega a acontecer em espaços onde, (…)

Andrés Torres Queiruga






[1] Cf. VOCABULÁRIO DE TEOLOGIA BÍBLICA, org. Xavier Léon-Dufour, Vozes, Petrópolis, 20058, pp. 51-52.