Os pobres na obra de Lucas (Lc e Act).
E em nós?
Ir. Charles de Foucauld |
Fr. Gilvander
Luís Moreira
Os pobres, hoje, incomodam
muitos, comovem outros. Muitos ficam indiferentes diante da dor e
dos clamores dos pobres. Uns pensam que basta fazer filantropia. Outros
comprometem-se com a causa dos pobres e por eles doam a vida. Como é que o
evangelho de Lucas e o livro de Actos dos Apóstolos encaram os pobres?
No evangelho de
Lucas (Lc) os
pobres não são espiritualizados, como o evangelho de Mateus pode
sugerir à primeira vista, mas têm conotações concretas. São carentes
economicamente, marginalizados e excluídos socialmente. Não têm relevância na sociedade.
Os Actos dos Apóstolos (At) − 2º volume da obra lucana −, aprofundam mais essa
radicalidade. O apóstolo Pedro, por exemplo, declara-se em absoluta pobreza,
não tendo nem prata e nem ouro, mas somente a Palavra que revigora e reanima os
cansados (Act 3,6).[1]
O contraste entre
ricos e pobres transcende as dimensões socioeconómicas. A categoria pobre compreende presos, cegos, oprimidos
(Lc 4,18), famintos, desolados, aborrecidos, difamados, perseguidos,
marginalizados (Lc 6,20-22), coxos, leprosos, surdos e até mortos (Lc 7,22). Para a
ideologia hegemónica, que é sempre a da classe dominante, pobres são a
escória, os dejetos e a imundície da sociedade. São usados e não amados. A riqueza é, quase
sempre, uma armadilha mortal para a pessoa humana, pois, muitas vezes, envolve
a pessoa em um processo de desumanização, ao prometer estabilidade, reforçar a
auto-suficiência e causar muitas injustiças.
No evangelho de
Lucas, as bem-aventuranças têm uma orientação social (Lc 6,20-23). Dirigem-se
aos discípulos como os verdadeiramente pobres, famintos, aflitos,
injustiçados e excluídos do mundo onde há organização para uma minoria e caos para a maioria.
Lucas
não tende a espiritualizar a condição dos seus discípulos, como à primeira
vista faz Mateus nas bem-aventuranças (Mt 5,1-12). As prescrições que Mateus
acrescenta — pobres em espírito, fome e
sede de justiça — respeitam a condição de diversos membros da comunidade
mista a quem a narração evangélica é dirigida. Em Lucas a pobreza, a fome, a
aflição, o ódio e o exílio caracterizam a situação concreta e existencial dos
discípulos e das discípulas de Jesus Cristo, que é quem Jesus declara feliz.
No evangelho
segundo Lucas aparece nitidamente uma opção pelos pobres, contra a pobreza. Os ricos
não são excluídos a priori, mas são convidados
a abandonar a idolatria do capital e do poder e a tornarem-se pobres. O servo sofredor padre Alfredinho dizia: “O mundo vai virar um paraíso no dia em que os ricos desejarem passar fome”.
Lucas é duro contra os ricos e a riqueza (Lc 6,24).
Eremitério de Asekrem [1911], 2780 m. alt., a 80 km de Tamanrasset (sul da Argélia) |
“Cuidem dos enfraquecidos!” (At 20,35). Eis um apelo forte do apóstolo
Paulo no seu testamento espiritual, escrito por Lucas, que conservava na mente
e no coração a imagem de Paulo como alguém que dava atenção especial aos
empobrecidos. É provável que nas comunidades de Lucas, no fim do século I, um
desejo grande de fidelidade ao passado estivesse gerando esquecimento dos
empobrecidos e excluídos. Estes nem sempre podem respeitar as regras da
comunidade. Para Paulo, o sinal por excelência da autenticidade do ministério
era o amor desinteressado e gratuito aos pobres.[2]
Essa opção aparece
de modo muito eloquente quando Paulo diz às comunidades de Antioquia que a
única coisa que a Assembleia de Jerusalém fez questão de alertar foi: “Nós só
tivemos de não
esquecer os pobres...” (Gálatas 2,10).
No discurso aos
presbíteros, em At 20,17-35, Lucas alerta para o cuidado com os pobres, porque
provavelmente os presbíteros estavam a preocupar-se menos com aqueles e agindo
mais como “os falsos pastores que se apascentam a si mesmos e devoram as
ovelhas” (Ezequiel 34,8-10). Estariam eles gastando mais energias com os ritos
do que com a promoção humana dos excluídos e com a luta por justiça?
A teologia lucana
propõe uma mística
evangélica que seja uma Boa Notícia para os pobres, isto é, para
cegos, surdos, mudos, presos, alienados, doentes e pecadores; enfim, para
marginalizados e excluídos. Lucas é muito realista, porque percebe que a Boa Notícia
para os pobres é, normalmente, péssima notícia para os opressores e
violentadores dos pobres. Lucas defende não toda e qualquer notícia, mas apenas
aquela que traz qualidade de vida para todos e para tudo, a partir dos
oprimidos.
Jesus de Nazaré,
segundo Lucas, encontra-se com os pobres e com eles compromete-se. Sua vida,
que conhecemos também por suas posturas e ensinamentos, caracteriza-se por
encontros com pessoas do seu círculo de amizade e
com pessoas do mundo dos excluídos.
Jesus
foi sempre um inconformado com as injustiças e com os sistemas injustos, um
sonhador que cultivava a utopia bonita do Reino de Deus no nosso meio.
Jesus tinha os pés
no chão, mas o coração nos céus. Era um profeta, alguém sensível, capaz de captar os sussurros e os apelos de Deus nas entranhas dos factos históricos. O Galileu
foi uma testemunha, um mártir, que não disse apenas verdades, mas doou a vida pelas verdades que defendia.
Jesus e seu
movimento, numa postura altamente irreverente, deixam-se envolver,
apaixonar-se, compadecer-se pelo povo sofrido e revelam um grande esforço de
transformação. Desmistificam
o que é mistificado pelo senso comum. Des-idolatram deuses e ídolos que concorrem
numa imensa gritaria tentando seduzir as pessoas para projetos escravizadores. Des-sacralizam
o poder, desmascarando o poder religioso, o político e o económico que,
endeusados, promovem grandes atrocidades. Des-dualizam a forma de encarar a realidade —
com Jesus, “o véu do templo se rasga” (Lc 23,45) e “ninguém deve chamar de
impuro aquilo que Deus criou” (At 10,15). Não há mais separação entre puro e
impuro, entre santo e pecador, entre transcendência e imanência, entre dentro e
fora, entre sagrado e profano, entre céu e terra, entre humano e animal etc. Tudo e todos
são banhados pela dimensão divina e transcendente da vida. Em cada
um(a) de nós estão o feminino e o masculino, o bem e o mal, o sagrado e o
profano.
Enfim, oxalá esta
rápida retrospectiva sobre a relação de Jesus e seus discípulos/as com os
pobres nos inspirem na construção de uma sociedade para
além do capitalismo e para além do
capital.
Fr. Gilvander Luís Moreira
Belo Horizonte, MG, Brasil, 04 de Fevereiro
de 2013.