A
pergunta pelas vítimas
e pelo horizonte
das vítimas
─ o «Anti-Reino» e o eclipse de Deus
[…] De
tudo isto, as primeiras testemunhas da fé tiraram duas conclusões, as quais também
nós procuramos não recordar:
─ A
primeira é que «Deus nunca ninguém o viu», nem o
poderá ver ou conhecer. O único modo de nos aproximarmos d’Ele é sob
a forma dum «relato» (Jo 1:18)… e apenas na medida em que as nossas vidas sejam
reflexo esse relato. Esse relato é o relato da vida de Jesus: o relato da
trajectória do anonimato, da ultimidade e do desprezo
que acabamos de referir. Nós, os cristãos, com frequência esquecemos que um bom
relato faz pensar muito mais que uma esplêndida arquitectura conceptual.
─
Porque a Deus nunca ninguém o viu, a segunda conclusão foi que, todo aquele que
pretenda amá-lo e conhecê-lo e que pretenda falar
d’Ele à margem daquele relato, é um mentiroso. E mais: a única coisa
que nos cabe fazer para o compreender melhor e nos aproximarmos um pouco d’Ele
é dar de comer a quem tem fome, é de dar de beber a quem tem sede, vestir os nus,
visitar os enfermos e aliviar os presos, acolher os forasteiros… (Mt 25:31ss). Na hora da verdade, não nos será dito «estive no sacrário e
vieste comungar», mas «tive fome e deste-Me de comer»…
Que
nada disto sirva para nos sentirmos melhores que os demais ou superiores aos
outros, mas para que, ao nos abeirarmos dessa multidão de pobres da terra,
possa nascer nos seus lábios um sorriso e se abra para eles um caminho onde o
melhor deles flua. Porque foi para isso - e por que esse é o único modo de temperar
o que as primeiras testemunhas nos disseram – que se nos revelou «a ternura de
Deus e o seu amor pelos seres humanos» (Tito 3:4).
«Vós
sois um Deus dos pobres» - cantava a Missa nicaraguense. «Senhor de toda a
história, que acompanha o nosso povo, que vive na nossa luta» - entoa o Sanctus
da Missa salvadorenha… Nós fazemos tudo por afastar da nossa vista isso e damos-lhe outro culto: oferecemos incenso e ouro e roupas bordadas e catedrais
luxuosas… Tudo isso será útil se em algum momento nos ajudar a compreender
o que expusemos antes. Doutra forma será ridículo se com isso pretendermos
conquistar Deus. Então, Deus repetirá aquilo que nunca se cansou de repetir ao
longo da sua revelação bíblica: não me fazem falta as vossas oferendas, rio-me
delas; a única coisa que vos peço é um coração suficientemente puro capaz de
estremecer diante da minha Palavra e que trate de levá-la
à prática no modesto relato das vossas vidas.
Tudo
isto pode ser explicado em muitas páginas, mas só se chega a apreender através
duma proximidade temporalmente longa e paciente junto daqueles a quem a primeira
tradição chamou «Vigários de Cristo» e que foram os pobres (muito antes de serem os Papas). Trata-se dum
processo obscuro e fatigante igual à noite dos místicos. Porém, tal como essas
noites, é «amável, mais que a alvorada» dos nossos esplendores cúlticos. Só no
fim de um processo assim é que se começa a entender isso que se diz: «os pobres evangelizam-nos». Evangelizam-nos,
sim, não porque sejam mais santos e melhores (são, aliás, os únicos que têm
direito a ser malandros e mal-educados), mas porque o servi-los é praticamente a única coisa que pode fazer
mudar o nosso coração de pedra em coração de carne. A evangelização,
em grande parte, é o anúncio dessa mudança.
Queiram
ou não queiram todos esses que julgam estar com Deus sem estar com os últimos - os pobres são o primeiro lugar teológico. E, se a
Igreja de Deus necessita de algo urgentíssimo, não é de doutores em direito
canónico (que não fazem falta alguma), nem sequer de doutores em teologia (por
muita falta que façam), mas de aqueles que poderíamos denominar de «doutores em pauperologia», doutoramento que não
concedem as universidades romanas ou as estrangeiras. Mas, como já disse, ao
longo do século XX, Deus prendou-nos com uma legião de doutores encartados
nessa escola de vítimas e de últimos. Muitos deles, aliás, mártires; talvez,
mártires não «canónicos», mas sem sombra de dúvida mártires «cristológicos».
Pouco reconhecidos até à data; tal como Jesus. […]
José Ignaceo González
Faus, sj
[13 pp.]