teologia para leigos

19 de fevereiro de 2013

POBRES: OBJECTO OU SUJEITO? [CASTILLO]

Os pobres e a Igreja






Introdução

Ninguém pode pôr em questão o interesse, a preocupação e o trabalho que a Igreja sempre teve com a causa dos pobres. Portanto, ignorá-lo, colocar isso em questão, não lhe conferir importância ou marginalizá-lo seria, antes de tudo, uma falsidade e, em segundo lugar, uma injustiça. A Igreja, desde os tempos dos primeiros cristãos, desde os Padres da Igreja, desde os grandes autores e os grandes crentes ao longo de toda a história do cristianismo nunca cessou de clamar a favor dos pobres, de rogar por caridade, inclusivamente de pedir que se faça justiça aos pobres. Isto é um facto que se impõe por si; existe abundante literatura. Ocorre-me neste momento um livro que muitos de vós conheceis: o livro de José Ignacio González Faus “Vigários de Cristo”, publicado pela editorial Trotta.[1] Aí tendes uma magnífica selecção de textos sobre o que os pobres significam para a Igreja selecção de textos desde os Padres da Igreja até à actualidade. Este livro remete para toda a abundante bibliografia que sobre este tema existe. Portanto: que este ponto fique, desde já, bem claro. Se o esquecemos, cometemos um erro muito grave. Dito isto, acrescentemos o seguinte, que é o que mais importa.

Se é indiscutível que a Igreja nunca cessou de clamar por caridade a favor dos pobres, se é verdade que não faltam santas e santos canonizados que se distinguiram pela sua entrega e generosidade para com os pobres, mesmo assim falar d’Os pobres e a Igreja é falar dum problema muito grave e que permanece por resolver. Porquê?

Enquanto os pobres foram objecto sublinho a palavra objecto   objecto da atenção da Igreja, objecto do interesse da Igreja para lhes fazer caridade, objecto para defender a justiça a favor dos pobres, enquanto eles foram objecto de tudo isso, eles não constituíram problema algum. Pelo contrário, esses, que tudo isso fizeram pelos pobres, foram elogiados e elevados aos altares. Um exemplo muito recente é o de Madre Teresa de Calcutá: a sua morte foi acontecimento mundial e já vai a caminho dos altares.


Os pobres como sujeito

Mas quando os pobres não se resignaram a ser simplesmente objecto do interesse da Igreja, mas quando pretenderam ser sujeito do pensamento da Igreja e das decisões da Igreja, então, surgiu um grande problema e uma grande preocupação. Enquanto os pobres foram meros objectos-receptáculo das atenções da Igreja, não se passou nada. No momento em que os pobres quiseram ser sujeito da Igreja (repito, sujeito do pensamento e sujeito das decisões na Igreja), as coisas complicaram-se.

Tudo isto aconteceu neste século XX, porque, tal como nos ensina a história da Igreja e da teologia, nos séculos XII e XIII, os movimentos anti-eclesiásticos   cátaros, albigenses, valdenses, pobres de livre arbítrio, todas aquelas pessoas que, na maioria dos casos, eram pobres que protestavam contra a corrupção do clero e que pretendiam dizer algo sobre a Igreja sabemos bem como eles terminaram: literalmente, na fogueira.

Como sabem, o Papa Inocêncio III iniciou a sangrenta perseguição desses grupos e conseguiu exterminá-los no sentido mais literal da palavra. O único resto que deles sobrou são grupos valdenses que em Roma têm umas quantas magníficas igrejas e que, hoje em dia, estão agregadas ao Conselho Mundial das Igrejas. A seguir, os pobres calaram-se, limitaram-se a receber esmolas e atenções. Sabemos que a seguir ao século XVIII surge o movimento operário. Mas isso é um acontecimento que não pertence à história do cristianismo, mas à história da sociedade. Logo de seguida veio a condenação, à labúrdia, de todos esses movimentos sociais por parte do Papa e dos Bispos.

Dentro da Igreja, a questão só se colocou a partir do concílio Vaticano II. A partir da conferência de Medellín, surge a Teologia da Libertação, na qual os pobres tomam a palavra e pretendem tomar decisões; depois sugiram outros grupos, concretamente, o vosso caso: os CPS – cristãos pelo socialismo. Conhecemos todos a sua origem e desenvolvimento. Todos sabemos qual foi a atitude das autoridades centrais da Igreja face à teologia da libertação e face a grupos como o vosso. A reacção foi colocar entraves, foi rejeitar e elaborar condenações mais ou menos dissimuladas para que não tivésseis audiência pública. Isto quer dizer que a Igreja (custa dizê-lo, mas há que dizê-lo), isto quer dizer que a Igreja tem medo dos pobres. Trata-se dum medo profundo, do qual muitos dos que ocupam cargos de representatividade da Igreja não têm consciência. Atenho-me a factos, para dizer que há medo e um medo muito profundo, por vezes inconsciente, outras inconfessado e inconfessável.

Na Igreja há medo que os pobres pensem, que falem e, sobretudo, que tomem decisões. Na parte final desta minha comunicação explicarei onde reside a raiz mais funda deste medo. Entretanto, a modo de exemplificação e para, dalguma forma, desenterrar este medo aos pobres, e em geral às vítimas do sistema dominante, causador de tanto sofrimento e de tanto derramamento de sangue no século que agora finda, limito-me a três comportamentos eclesiásticos que, só por si, são eloquentes.

Em primeiro lugar, o silêncio, em segundo a legitimação e em terceiro a colaboração.


Primeiro: o silêncio

Com demasiada frequência, diante de situações de sofrimento dos mais desamparados, a Igreja oficial optou pelo silêncio. No dia em que se fizer a história deste século e a história do comportamento da Igreja durante este século haveremos de deparar com realidades inimagináveis. Pensem, por exemplo, no que consistiu o silêncio da Hierarquia espanhola durante a ditadura de Franco: silêncio diante da tanto assassinato, de tanta tortura, de tanto atropelo aos direitos humanos, de tanta agressão a pessoas que pediam justiça e liberdade. Somente para os tempos derradeiros, quando era já evidente o fim do ditador, alguns bispos começaram a tomar atitudes mais críticas; surgiu, então, o grito “Tarancón al paredón”[2]; mas isto já foi bem em cima do fim da ditadura. A ditadura durou 40 anos e a atitude inicial da Igreja foi a de dizer que a ditadura era uma cruzada e que o ditador era o Messias salvador da pátria.

Recordemos o silêncio da Igreja diante das atrocidades de Hitler e do nazismo. Em Roma sabia-se o que se estava a passar nos campos de concentração. Acabou de sair, em Londres, um livro sobre Pio XII, que irá dar muito que falar. O seu autor quis escrever uma biografia de Pio XII numa linha elogiosa desse Papa. Dirigiu-se para Roma e, aí, um jesuíta, o padre Gumpel, que é o delegado para as causas da beatificação e canonização de jesuítas, estava também encarregado da causa de Pio XII, a quem a Igreja queria canonizar. O padre Gumpel tinha em seu poder o arquivo secreto de Pio XII. O autor inglês apresentou-se ao padre Gumpel e disse-lhe: “Por favor, eu gostaria de escrever um livro, uma biografia elogiosa de Pio XII.” Não o disse com má intenção, ou seja, de modo a ludibriar, a enganar o padre Gumpel. Fê-lo com a melhor das intenções – ele de facto queria escrever uma biografia elogiosa do Papa Pio XII. Gumpel colocou à sua disposição todo o arquivo: o autor fotocopiou cerca de 600 documentos. O título do livro é “Hitler’s Pope’, O Papa de Hitler, já que na documentação descobrira factos que ninguém conhecia nem esperaria encontrar. Em primeiro lugar, descobriu o anti-semitismo de Pio XII. Em segundo lugar, a estreita relação com o nazismo, por antes o Cardeal Giovanni Pacelli (depois, Pio XII) ter sido núncio na Alemanha.

A mim custa-se muito aceitar que Pio XII não estivesse ao corrente do que estava a acontecer na Alemanha. No entanto, aconteceu toda a barbárie que sabemos que aconteceu e Roma … nem uma palavra sobre o genocídio! Houve silêncio. Há silêncios mais eloquentes que discursos. Refiro o silêncio do Vaticano sobre os crimes de genocídio de Hitler. Mencionemos, também, o silêncio dos núncios e do Vaticano diante das atrocidades que as ditaduras de direita cometeram por todo o mundo, concretamente na América Latina. Sabe-se, por exemplo, que o Cardeal Laghi era amigo dos generais da Argentina ao ponto de jogar ténis com eles…


Segundo: a legitimação

Hoje temos a sorte de ter entre nós François Houtart, um dos primeiros nomes da sociologia das religiões. Todos vocês sabem que a função da religião é legitimar as instituições públicas, concretamente suas actuações e suas narrativas. Isso acarreta um reconhecimento do poder constituído e, naturalmente, realiza a legitimação desse mesmo poder diante da opinião pública e diante da sociedade. Não vou apresentar nenhuma novidade. Apenas sumariar a (…)

José Maria Castillo, sj

[11 pp.]






[1] Edição castelhana esgotada. Ainda existe, no Brasil, em alfarrábios– em sêbos – alguns exemplares em português do Brasil.