Os
pobres e a Igreja
Introdução
Ninguém
pode pôr em questão o interesse, a preocupação e o trabalho que a Igreja sempre
teve com a causa dos pobres. Portanto, ignorá-lo, colocar isso em questão, não
lhe conferir importância ou marginalizá-lo seria, antes de tudo, uma falsidade
e, em segundo lugar, uma injustiça. A Igreja, desde os tempos dos primeiros
cristãos, desde os Padres da Igreja, desde os grandes autores e os
grandes crentes ao longo de toda a história do cristianismo nunca cessou de
clamar a favor dos pobres, de rogar por caridade, inclusivamente de pedir que
se faça justiça aos pobres. Isto é um facto que se impõe por si; existe
abundante literatura. Ocorre-me neste momento um livro que muitos de vós
conheceis: o livro de José Ignacio González Faus
“Vigários de Cristo”, publicado pela editorial
Trotta.[1]
Aí tendes uma magnífica selecção de textos sobre o que os pobres significam
para a Igreja ─
selecção de textos desde os Padres da Igreja até à actualidade. Este
livro remete para toda a abundante bibliografia que sobre este tema existe.
Portanto: que este ponto fique, desde já, bem claro. Se o esquecemos, cometemos
um erro muito grave. Dito isto, acrescentemos o seguinte, que é o que mais
importa.
Se é
indiscutível que a Igreja nunca cessou de clamar por caridade a favor dos
pobres, se é verdade que não faltam santas e santos canonizados que se
distinguiram pela sua entrega e generosidade para com os pobres, mesmo assim
falar d’Os pobres e a Igreja é falar dum
problema muito grave e que permanece por resolver. Porquê?
Enquanto
os pobres foram objecto ─
sublinho a palavra objecto ─
objecto da atenção da Igreja, objecto do interesse da Igreja para lhes
fazer caridade, objecto para defender a justiça a favor dos pobres, enquanto
eles foram objecto de tudo isso, eles não constituíram problema algum. Pelo
contrário, esses, que tudo isso fizeram pelos pobres, foram elogiados e
elevados aos altares. Um exemplo muito recente é o de Madre Teresa de Calcutá:
a sua morte foi acontecimento mundial e já vai a caminho dos altares.
Os pobres como sujeito
Mas
quando os pobres não se resignaram a ser simplesmente objecto do interesse da
Igreja, mas quando pretenderam ser sujeito do pensamento da Igreja e das
decisões da Igreja, então, surgiu um grande problema e uma grande preocupação. Enquanto os pobres foram meros objectos-receptáculo das
atenções da Igreja, não se passou nada. No momento em que os pobres
quiseram ser sujeito da Igreja (repito, sujeito do pensamento e sujeito das
decisões na Igreja), as coisas complicaram-se.
Tudo
isto aconteceu neste século XX, porque, tal como nos ensina a história da
Igreja e da teologia, nos séculos XII e XIII, os movimentos anti-eclesiásticos
─ cátaros, albigenses, valdenses, pobres de
livre arbítrio, todas aquelas pessoas que, na maioria dos casos, eram pobres
que protestavam contra a corrupção do clero e que pretendiam dizer algo sobre a
Igreja ─ sabemos bem
como eles terminaram: literalmente, na fogueira.
Como
sabem, o Papa Inocêncio III iniciou a sangrenta perseguição desses grupos e
conseguiu exterminá-los no sentido mais literal da palavra. O único resto que
deles sobrou são grupos valdenses que em Roma têm umas quantas magníficas
igrejas e que, hoje em dia, estão agregadas ao Conselho Mundial das Igrejas. A
seguir, os pobres calaram-se, limitaram-se a receber esmolas e atenções.
Sabemos que a seguir ao século XVIII surge o movimento
operário. Mas isso é um acontecimento que não pertence à história do
cristianismo, mas à história da sociedade. Logo de seguida veio a condenação, à
labúrdia, de todos esses movimentos sociais
por parte do Papa e dos Bispos.
Dentro
da Igreja, a questão só se colocou a partir do concílio Vaticano II. A partir
da conferência de Medellín, surge a Teologia da
Libertação, na qual os pobres tomam a palavra e pretendem tomar decisões;
depois sugiram outros grupos, concretamente, o vosso caso: os CPS – cristãos pelo socialismo. Conhecemos todos a
sua origem e desenvolvimento. Todos sabemos qual foi a atitude das autoridades
centrais da Igreja face à teologia da libertação e face a grupos como o vosso.
A reacção foi colocar entraves, foi rejeitar e elaborar condenações mais ou
menos dissimuladas para que não tivésseis audiência pública. Isto quer dizer
que a Igreja (custa dizê-lo, mas há que dizê-lo), isto quer dizer que a Igreja
tem medo dos pobres. Trata-se dum medo profundo, do qual muitos dos que ocupam
cargos de representatividade da Igreja não têm consciência. Atenho-me a factos,
para dizer que há medo e um medo muito profundo, por vezes inconsciente, outras
inconfessado e inconfessável.
Na
Igreja há medo que os pobres pensem, que falem e, sobretudo, que tomem decisões.
Na parte final desta minha comunicação explicarei onde reside a raiz mais funda
deste medo. Entretanto, a modo de exemplificação e para, dalguma forma,
desenterrar este medo aos pobres, e em geral às vítimas do sistema dominante,
causador de tanto sofrimento e de tanto derramamento de sangue no século que
agora finda, limito-me a três comportamentos eclesiásticos que, só por si, são
eloquentes.
Em
primeiro lugar, o silêncio, em segundo a legitimação e em terceiro a
colaboração.
Primeiro: o silêncio
Com
demasiada frequência, diante de situações de sofrimento dos mais desamparados,
a Igreja oficial optou pelo silêncio. No dia em que se fizer a história deste
século e a história do comportamento da Igreja durante este século haveremos de
deparar com realidades inimagináveis. Pensem, por exemplo, no que consistiu o silêncio da Hierarquia espanhola durante a ditadura de
Franco: silêncio diante da tanto assassinato, de tanta tortura, de
tanto atropelo aos direitos humanos, de tanta agressão a pessoas que pediam
justiça e liberdade. Somente para os tempos derradeiros, quando era já evidente
o fim do ditador, alguns bispos começaram a tomar atitudes mais críticas;
surgiu, então, o grito “Tarancón al paredón”[2];
mas isto já foi bem em cima do fim da ditadura. A ditadura durou 40 anos e a
atitude inicial da Igreja foi a de dizer que a ditadura era uma cruzada e que o
ditador era o Messias salvador da pátria.
Recordemos
o silêncio da Igreja diante das atrocidades de Hitler e do nazismo. Em Roma
sabia-se o que se estava a passar nos campos de concentração. Acabou de sair,
em Londres, um livro sobre Pio XII, que irá dar muito que falar. O seu autor
quis escrever uma biografia de Pio XII numa linha elogiosa desse Papa.
Dirigiu-se para Roma e, aí, um jesuíta, o padre Gumpel, que é o delegado para
as causas da beatificação e canonização de jesuítas, estava também encarregado
da causa de Pio XII, a quem a Igreja queria canonizar. O padre Gumpel tinha em
seu poder o arquivo secreto de Pio XII. O autor inglês apresentou-se ao padre
Gumpel e disse-lhe: “Por favor, eu gostaria de escrever um livro, uma biografia
elogiosa de Pio XII.” Não o disse com má intenção, ou seja, de modo a
ludibriar, a enganar o padre Gumpel. Fê-lo com a melhor das intenções – ele de
facto queria escrever uma biografia elogiosa do Papa Pio XII. Gumpel colocou à
sua disposição todo o arquivo: o autor fotocopiou cerca de 600 documentos. O
título do livro é “Hitler’s Pope’, O Papa de Hitler,
já que na documentação descobrira factos que ninguém conhecia nem esperaria
encontrar. Em primeiro lugar, descobriu o anti-semitismo
de Pio XII. Em segundo lugar, a estreita relação com
o nazismo, por antes o Cardeal Giovanni Pacelli (depois, Pio XII)
ter sido núncio na Alemanha.
A
mim custa-se muito aceitar que Pio XII não estivesse ao corrente do que estava
a acontecer na Alemanha. No entanto, aconteceu toda a barbárie que sabemos que
aconteceu e Roma … nem uma palavra sobre o genocídio! Houve silêncio. Há
silêncios mais eloquentes que discursos. Refiro o silêncio do Vaticano sobre os
crimes de genocídio de Hitler. Mencionemos, também, o silêncio dos núncios e do
Vaticano diante das atrocidades que as ditaduras de direita cometeram por todo
o mundo, concretamente na América Latina. Sabe-se, por exemplo, que o Cardeal Laghi era amigo dos generais da Argentina ao ponto de jogar ténis com
eles…
Segundo: a legitimação
Hoje
temos a sorte de ter entre nós François Houtart,
um dos primeiros nomes da sociologia das religiões. Todos vocês sabem que a função da religião é legitimar as instituições públicas,
concretamente suas actuações e suas narrativas. Isso acarreta um reconhecimento
do poder constituído e, naturalmente, realiza a legitimação desse mesmo poder
diante da opinião pública e diante da sociedade. Não vou apresentar nenhuma
novidade. Apenas sumariar a (…)
José
Maria Castillo, sj
[11 pp.]
[1]
Edição castelhana esgotada. Ainda existe, no Brasil, em alfarrábios– em sêbos
– alguns exemplares em português do Brasil.