teologia para leigos

31 de janeiro de 2013

MÍSTICA DA FELICIDADE E MARGEM [CASTILLO]

A Fé cristã
numa teologia de fronteira




I - Introdução

Há uns anos atrás, um romance de Umberto Eco, O Nome da Rosa, levou ao conhecimento de muita gente a importância desmesurada e até criminosa que se atribuía, nos conventos cristãos do século XII, ao tema do riso. Penso que muitos leitores devem ter julgado que aquilo era um exagero do escritor e que nada se poderia ter passado assim. (...) Por mais lamentável que seja, de facto, as coisas passaram-se mesmo assim. (…) Por exemplo, já no século IV, a primeira regra monástica que conhecemos – a Regra de Pacómio – diz que se um monge se rir durante o tempo de oração ou de leitura espiritual, deve ser repreendido severamente pelo prior do convento. Por outro lado, a Regra de Basílio dedica um capítulo inteiro a demonstrar que Cristo nunca se riu durante toda a sua vida. A razão que o próprio Basílio dá para semelhante doutrina é que o riso é expressão da intemperança, a qual faz parte do «prazer» (hedoné). (…) [o Autor cita muitos outros exemplos: Regra de S. Bento, jansenismo, etc.]

Uma Igreja que soe a sacrifício, resignação, pena e morte é uma Igreja condenada à marginalidade e a que só gente muito esquisita lhe ligue e possa aceitar a sua mensagem. Não é exagerado assegurar que o futuro do cristianismo está ligado à sua mensagem de felicidade e de bem-aventurança. A Europa é o continente menos religioso do mundo, porque é o continente no qual a religião se dissociou, de modo muito radical, dos anseios de uma vida vivida em paz e em felicidade. O abandono massivo dos jovens, que não querem saber da Igreja para nada (por mais que as concentrações em torno do Papa possam dar a entender o contrário), é a prova de que, quem procura com afinco a felicidade na vida, prescinde da religião e da Igreja para o conseguir.

Que fazer de modo a recuperar a alegria das primeiras gerações de cristãos?

Não será, certamente, procurar recuperar a cultura do passado. Parece-me que as decisões mais urgentes passarão por três coisas:

1) Abandonar definitivamente o Deus violento e ameaçador do Antigo Testamento. Colocar, no seu lugar, o Deus que se nos revelou no homem Jesus de Nazaré.

2) Abandonar para sempre a ética do dever e das obrigações. E colocar no seu lugar a ética da necessidade ou, mais exactamente, a ética das necessidades básicas que as pessoas sentem.

3) Abandonar para sempre a espiritualidade da dor e do sacrifício. E colocar no seu lugar a espiritualidade da felicidade, ou seja, uma espiritualidade como projecto felicitante para as pessoas que vivem perto de nós.

O mais urgente de que necessitamos, como cristãos, é assumir e fazer nossa a mística da felicidade.

Até agora pregaram-nos a mística da renúncia e do sacrifício, a mística da dor e da obrigação, a mística do heroísmo e da entrega. Tudo isso contém parte da verdade, conquanto esses conceitos sejam entendidos correctamente. O que agrada a Deus é que, na medida do possível, os seus filhos e filhas sejam felizes e vivam gozosamente a vida. O que acontece é que a felicidade somos nós que a temos de proporcionar uns aos outros. Somos nós que nos temos de fazer felizes. Não será Deus a dar-nos a felicidade como uma espécie de maná que virá do céu. A felicidade é a grande tarefa dos cristãos e, portanto, de todos os seres humanos. Acontece, porém, que é muito menos exigente e custoso dar a felicidade aos outros do que superar e vencer os nossos próprios vícios e paixões. Até porque, para dar felicidade aos outros, temos que começar por organizar a felicidade em nós próprios, e isso só acontece quando somos sensíveis àquilo que agrada aos outros, levando-nos a renunciar a muitas coisas que nos agradam a nós para que os outros se sintam bem.

A estonteante expectativa e o grande sonho dos primeiros que acreditaram em Jesus teria que coincidir com um mundo em que todas as pessoas vivessem atentas àquilo que faz felizes os outros, sensíveis ao que dá alegria, ao que cria bom ambiente, ao que produz bem-estar e faz sorrir as pessoas. É um facto que Jesus só podia ser uma pessoa assim – Jesus foi assim. Quando, nas Bodas de Canã, converteu a água em vinho, não sabemos se fez um milagre para mostrar que era Deus. E não o sabemos porque não é claro para nós se isso estava na sua mente na altura em que o fez ou se tudo apenas não passou de posterior especulação teológica. O que, com toda a certeza, sabemos é que ele converteu muitos litros de água, que ali estavam destinados às purificações rituais dos judeus, no melhor vinho que ali alguma vez se bebera. Ou seja, o que Jesus realmente fez foi converter obrigações religiosas em gozo e alegria, que é o que o melhor vinho realiza.

É por isso que, muitas vezes, eu me ponho a sonhar.

Sonho com o dia em que os cristãos vivam a mística da felicidade.

Sonho com o dia em que a Igreja converta a água dos seus rituais em vinho de festa de casamento, em festa da vida até ao excesso e ao limite do gozo.

Sonho com a religião dos que alargam o sorriso, mesmo que os que assim riem por dentro chorem.

Sonho com um mundo mais suportável e uma vida mais leve, mundo e vida que acontece sempre que alguns conseguem que a vida de uns tantos seja, dia-a-dia, melhor.

Para terminar, uma observação importante: a felicidade não se impõe por mandato nem se ensina na doutrina. A felicidade contagia-se, isto é, aquele que é feliz faz feliz os que o rodeiam e que com ele convivem. A capacidade de contagiar felicidade é determinante para quem quiser falar de Deus.


II - A fé cristã numa teologia de fronteira

Começo por recordar algo que se nos impõe com demasiada evidência: tal como nos é apresentada oficialmente nos discursos da instituição eclesiástica, a fé cristã interessa a cada vez menos pessoas, e, àqueles a quem interessa, a cada dia que passa, ela coloca cada vez mais dificuldades.

É por isso que, nos ambientes religiosos, tão frequentemente se fala de crise da fé em Deus, de crise da prática religiosa, de crise da Igreja, de crise do sacerdócio, de crise da vida religiosa, de crise de vocações e de tantas outras crises que seria penoso enumerá-las todas.

Falar de crise é o mesmo que falar de uma mutação importante no desenvolvimento dum processo (…) neste caso, da fé cristã. (…) Diante de nós temos muito claramente os indicadores que nos falam duma mudança, de uma transformação muito profunda no que diz respeito à fé, à nossa maneira de a entender e viver. (…) Os indicadores não apontam apenas para indivíduos que atravessam situações críticas, mas (…) um processo que afecta a sociedade, a cultura, a nossa maneira conatural de nos pensarmos a nós mesmos e de pensar aquilo que nos rodeia, desde o mais humano ao mais divino. (…)

Tendo isto como um facto, somos forçados a viver a fé numa situação de fronteira, de uma forma que, em não poucas situações, se poderia denominar de situação marginal. Três questões. Vejamos.


1. O problema hermenêutico

(…) Como toda a gente sabe, existe uma hermenêutica bíblica, ou seja, uma teoria genérica acerca da compreensão e da interpretação dos textos da sagrada Escritura. Tal esforço de compreensão e de interpretação é, a nosso ver, mais do que indispensável, dada a distância temporal que nos separa desses textos, escritos há muitas centenas de anos e, portanto, em contextos históricos e culturais muito distintos do nosso. (…)

Quer o símbolo de Niceia, quer o de Constantinopla foram elaborados no séc. IV, ou seja, há mais de mil e seiscentos anos. Também sabemos que esses textos foram escritos numa cultura que já não é a nossa, numa linguagem que não é a nossa e como resposta a problemas que, em boa medida, não são nossos. Por outro lado, não podemos esquecer que no «Credo» se expressa o conteúdo essencial da nossa fé. Ou seja, no Credo afirma-se aquilo que pensamos sobre Deus e a origem do mundo, sobre Jesus Cristo e o significado da nossa salvação e da nossa esperança, sobre a acção do Espírito Santo e sobre a presença da Igreja nas nossas vidas. Isto é de tal importância que nos devemos sentir obrigados a pensá-lo e a dizê-lo segundo as formulações que nos digam algo a nós, e não segundo o modo como o disseram os homens da Igreja do século IV, inevitavelmente condicionados pela sua situação cultural, religiosa e política. (…)

Importa recordar que, segundo o concílio Vaticano II, a fé é (…)

José Maria Castillo