teologia para leigos

2 de janeiro de 2013

ORAÇÃO E ALIENAÇÃO [G FAUS]

“Senhor, necessito de um aumento de graça, para chegar ao estado em que nenhum homem, nem criatura alguma, me possa ser de impedimento. Porque, enquanto houver alguma coisa que me prenda, não poderei voar livremente para vós.

“Desejava voar livremente aquele que dizia: Quem me dera ter asas como a pomba, para poder voar e descansar!’ […]

“E enquanto não nos desprendermos de todas as coisas criadas, não poderemos entregar-nos livremente às coisas divinas. Se hoje há poucos contemplativos, é porque são raros os que sabem desprender-se, por completo, das criaturas e dos bens transitórios.” [Imitação de Cristo, Livro III, Cap. XXXI]



ORAÇÃO - «Chega de ilusão...» [clicar]



BUSCAR DEUS NO CÉU
ou o Deus com um espírito falso



Descrição da prática e idolatria latente

Esta conduta (e a imagem de Deus que ela implica) talvez seja a mais conhecida e a que menos necessita de explicações. É a atitude de todos os que, diante da decepção da realidade (qualquer que seja a explicitação de tal decepção), buscam Deus fora dessa realidade e, sobretudo, fora dos aspectos “materiais” dessa realidade.

A alteridade de Deus é imaginada, então, como distância [de Deus] em relação à realidade, e a relação com Deus, ou a relação com a salvação que Deus dá, é vista como evasão dessa mesma realidade. Na prática, esta conduta encarna tudo aquilo que costumamos chamar ‘espiritualismos’, e cujo denominador comum é o empenho em apoiar-se em Deus a fim de ignorar a realidade.

Estas atitudes costumam ter uma linguagem insistentemente religiosa e “espiritual”, costumam dar suporte e importância às Igrejas e, por isso, costumam significar uma tentação para as Igrejas, porque esta aceitação que as Igrejas recebem de todos os espiritualismos costuma ser comprada à custa duma falsificação do Deus cristão, porque, embora, seja certo que o Deus cristão marca a sua diferença infinita face à realidade [finita], não o faz mediante a distância ou a fuga dela, mas mediante a transformação da realidade e de tudo quanto tem a ver com esta transformação: o empenho, a utopia, a paciência, o fracasso, o progresso, os pequenos sinais de novidade a que dom Romero chamava “remendos”… Esta transformação é vivida por nós como impossível, mas na qual não vacilamos, porque aceitamos o que se disse a Maria: “A Deus nada é impossível” (Lc 1:37), ou porque aceitamos o que Jesus dizia: “Não te peço que os tires do mundo, mas que os livres do Mal” (Jo 17:15).

Em termos mais teológicos: o Espírito de Deus não se afirma na negação da carne, mas na transformação da mesma. São os que desejam afirmar o Espírito negando a carne que costumam acusar os cristãos de redutores do espiritual ou de materialistas, quando na realidade são eles os verdadeiros redutores.

No fundo desta postura que criticamos está latente um platonismo barato que julga indigna de Deus esta criação, e que não quer que Deus suje as mãos nela. A sua imagem de Deus só conhece a distância, mas não o amor. Só se interessa pelo ‘eros’ do homem para com o divino e não do ‘ágape’ de Deus para com o humano. E, por isso, o risco desta postura consiste em que, ao buscar Deus fora do mundo ou evadindo-se da realidade, não encontra o Deus vivo, mas o seu próprio sonho ou a subtil projecção de si mesmo.

Pode ser alvo da crítica de Feuerbach (Deus como mera projecção do melhor do homem para um mundo irreal) ou da crítica de Nietzsche, quando denomina o cristianismo “platonismo para o povo”.





E se estes são os seus perigos teóricos, são ainda maiores os seus perigos práticos, os quais já foram denunciados por S. João, quando escrevia: «Se alguém diz ‘Amo a Deus’ e detesta o seu irmão, está a mentir» (1Jo 4:20). Nesta frase encerra-se algo fundamental sobre a revelação do Deus da vida: precisamente, porque de Deus não há imagens proporcionadas («não se vê»), João só o declara cognoscível e acessível mediante uma conduta. Com isto, além de confirmar o enfoque dado a esta palestra, esta frase ensina-nos que o homem, ao dizer que ama a Deus, a quem não vê, pode converter-se num embusteiro prático, isto é, num inconsequente. A inconsequência prática é, com efeito, o maior risco desta postura, como de seguida veremos.[1]


Aplicações e exemplos

Há quase vinte anos, em momentos em que a polícia franquista irrompia nas palestras de Ruiz Jiménez,[2] prendendo sem mandato judicial os participantes e, às vezes, maltratando-os, os bispos, a quem se pedia uma intervenção para ajudar as vítimas e denunciar tais atropelos (por acontecerem em locais eclesiásticos), tais bispos lamentavam-se, respondendo, que, «com estas encrencas», nem disposição tinham para preparar novenas à Virgem, um dos objectivos dos seus projectos pastorais.

Soubemos também que há pouco tempo[3] grande parte do episcopado argentino, apelando ao carácter espiritual da sua missão, coonestou uma das situações mais criminosas e mais estremecedoras da história humana, escrevendo uma das páginas mais tristes da história da Igreja. Quero sublinhar que o pecado consistiu em justificar o seu silêncio apelando “àquilo que diz respeito a Deus” e ao “espiritual” da fé. Se dissessem que tiveram medo, imediatamente lhes abriríamos os braços, pois era assim que também fazia a Igreja primitiva aos “lapsos”, porque muitos de nós também teríamos tido medo e teríamos sucumbido ao pânico (pelo menos, eu), e até porque os factos mostram como foi assassinado na Argentina o primeiro bispo que tentou enfrentar a situação: com muito mais discrição do que dom Romero, para que não ficasse nem sequer a sua recordação de mártir.[4] Mas o que não se pode tolerar é a apelação a Deus e à missão da Igreja para justificar essa covardia.

A resposta a esta falsificação foi dada há muitos séculos por um dos movimentos mais fundamentais do caminho da revelação do Deus bíblico: o movimento dos profetas de Israel. Não vou entrar por aí, porque já se escreveu muito e muito bem sobre o tema. Mas quero sublinhar o seguinte: os Profetas não são ética nem moral. Os Profetas são experiência de Deus e teologia mística. São certamente a única mística que existe na Bíblia. Todas as mais ternas, mais sublimes e mais clássicas expressões do amor de Deus que se conhecem (a do esposo enganado e fiel, a da mãe que não esquece o filho, a da noiva que não se esquece do seu traje de núpcias, a da Misericórdia, a das entranhas comovidas de Deus…), são expressões daqueles homens, homens de palavra dura e pungente para a sociedade do seu tempo. Possivelmente, em nenhum outro lugar do Antigo Testamento se fale tanto e tão profundamente de Deus como nos profetas. Não são, pois, um tratado de moral, mas uma revelação do modo de proceder de Deus, que José Luís SICRE formula mais ou menos assim, comentando a parábola da vinha de Isaías [Is 5:1-7]: quando o Deus bíblico ama o homem ou ama o seu povo, não pede em troca que o homem o ame a Ele (na realidade, que amor podemos nós dar-Lhe?), mas que ame o seu irmão. Por isso, no cristianismo, o amor ao próximo não é um simples mandamento moral, mas uma realidade teológica.






E a Igreja soube de tudo isto noutros tempos, e talvez melhor do que agora. Porque hoje, quando a oração não está na moda e se diz que ninguém ou quase ninguém reza, abrimos os braços entusiasmados quando alguém nos fala de oração ou a ela se refere. E surpreender-nos-íamos se pudéssemos ver as enormes suspeitas que suscitava a linguagem da oração em outras épocas, ou as que suscitaram os primeiros místicos, ou o temor dos “iluminados”, que fez tanta gente sofrer. É claro que houve exageros concretos e lamentáveis nestas suspeitas, mas, em princípio, havia nelas algo válido: a Igreja sabia que a oração (que pode ser uma coisa maravilhosa) pode também (e costuma) transmutar-se facilmente em alguma forma de “auto-erotismo espiritual”. E sabia que o discernimento entre ambas não é simples, porque, na oração, ao não ter um interlocutor visível e tangível, o homem pode converter-se em interlocutor de si mesmo. E então a confrontação bíblica entre a “Carne” e o “Espírito” far-se-á no sentido grego e material destas palavras, e não no sentido bíblico, e que é: a inclinação sobre si mesmo versus a inclinação sobre os outros.[5]

Por isso, meu pai Santo Inácio sorria calmamente quando lhe louvavam alguém como pessoa de muita oração, e respondia: “Será de muita oração se for de muita mortificação”. Hoje, pelo contrário, conhecemos pessoas que, como pretendem ser de muita oração, mortificam muito os outros…

Em resumo: é certo que a afirmação pode traduzir-se numa simples experiência de liberdade frente à escravidão do material, que é uma das maiores escravaturas do nosso mundo materializado. Não pretendemos negar isso, mas, pelo contrário, afirmamos que quando tal afirmação é feita por aqueles que têm mais que satisfeitas as suas necessidades materiais (e, neste mundo, isso deve-se necessariamente à custa dos outros), então, isso converte-se numa falsa defesa e numa falsa justificação desse nível material, bem como numa desculpa para a falta de amor: a realidade material não compete a Deus, “a carne e o sangue” (como diziam os antigos gnósticos e os antigos docetas) não podem herdar o reino de Deus.

Os espiritualistas desconhecem as respostas dos Santos Padres a esta forma de argumentar: “Caro propter quam fecit Deus omnem dispositionem”,[6] replica-lhes Ireneu. Ou a “caro cardo salutis”,[7] de Tertuliano.

Por isso, eles não sofrem pelos desempregados, não sofrem pelos famintos da Etiópia, não se inquietam pelos torturados nas prisões nem pelos desaparecidos das famílias chilenas ou argentinas… Todas estas realidades, terrenas e materiais, não os obrigam a mudar de vida, porque eles têm um Deus que não é atingido por estas realidades. E se com este pequeno preço “material” se compram os “valores espirituais do Ocidente”, bom negócio será.

Em todo o caso, eles sofrem – e irritam-se! – quando alguém (ainda que seja o próprio Deus) os chama a descer da sua nuvem celestial para se ocuparem destas realidades tão pouco “divinas”.

E talvez o mais importante deste capítulo seja ponderar que em certos momentos históricos, como o actual, em que todas as possibilidades de transformação do real aparecem quase hermeticamente fechadas, nos quais se sente a experiência da cruz e do fracasso que comporta o esforço por fazer nascer o Espírito do Pai e do Filho neste mundo do Maligno, em tais momentos a tentação espiritualista dispara com uma força invencível, e seus representantes mais perigosos se convertem em mestres.

O mesmo aconteceu na Igreja primitiva, onde o gnóstico Valentim gozou de tanta autoridade que esteve a ponto de se tornar Papa. E se Nietzsche teve a sua parcela de razão, quando qualificou esta imagem de Deus como “platonismo para o povo”, sem dúvida que se esqueceu que há muitos momentos em que é o próprio povo nós mesmos que pede esse platonismo.

E que tanto o platonismo como o gnosticismo ou o docetismo, enquanto heresias cristãs, não foram mais do que esforços para fugir da realidade escandalosa da cruz e, consequentemente, da realidade da conversão, que é absolutamente central na experiência de Deus e que não consiste na fuga desta carne, às vezes tão espessa, mas na conversão desta carne pelo Espírito, na abertura desta carne ao Espírito, na transparência desta carne em Espírito.

Esse é o verdadeiro lugar da experiência de Deus.

[Nota da edição: Não são os discursos sublimes e troantes que nos salvam (mesmo que denunciem e coloquem os dedos todos na ferida...). Jesus foi 'sinalizado', perseguido e julgado, mais tarde abjectamente assassinado, não pelo que disse, mas pelo que fez... Por isso, é tão urgente que, quem (como eu) fala e diz e discursa, faça «acontecer a Palavra»; Mt 25. A autoridade de alguém advém-lhe do que faz acontecer e não do dizer (mesmo que no tempo oportuno). Enquanto isso tarda, Deus pode estar latente, mas não é patente! E o Reino 'marca-passo']

José I. González Faus
Creer sólo se puede en Dios. En Dios sólo se puede creer.
Editorial Sal Terræ, Santander, Espanha, 1985.




[1] Esta inconsequência prática está muito bem expressa em algumas palavras do cardeal De Lubac, que foram citadas inúmeras vezes: “Se me faltar o amor e a justiça, separo-me indefectivelmente de Ti, Deus meu, e a minha adoração não será outra coisa senão idolatria. Para crer em Ti devo crer no amor e na justiça, e crer nestas coisas vale mil vezes mais do que pronunciar o Teu Nome”.
[3] Esta palestra foi proferida antes de 1985.
[4] Creio que o seu nome era Enrique Angelelli, mas não estou absolutamente certo. (Nota do tradutor: O nome completo deste bispo é Enrique Angel Angelelli; foi bispo de La Rioja de 1968 a 1976, assassinado pela ditadura argentina).
[5] “Fechar-se sobre si próprio” versus “fechar-se sobre os outros”…
[6] “Pela carne Deus fez tudo quanto fez”.
[7] “Carne, gozo da salvação”.