teologia para leigos

11 de janeiro de 2013

«ORAÇÃO DE PETIÇÃO» [QUEIRUGA]

Orar ao Deus de Jesus

Taizé_Igreja da Reconciliação


Insistir na importância da oração em contexto de Vida Religiosa é como chover no molhado. Muito menos é necessário sublinhar a íntima dialéctica entre lex orandi e a lex credendi: «diz-me como rezas, dir-te-ei como é o teu Deus; diz-me como é o teu Deus, dir-te-ei como é a tua oração». E, no entanto, não deixa de ser muito urgente rever, profundamente, o modo de orar para que a oração se molde à nova imagem de Deus que os tempos de agora exigem.

Claro que não se trata de «acomodar-se à figura do mundo», antes pelo contrário: trata-se de aproveitar os apelos dos «sinais dos tempos» como se fossem uma profecia que nos chega do melhor da evolução cultural e recolher a sua repercussão na teologia a fim de conseguir uma autêntica conversão. Caso tal se consiga verdadeiramente, fácil será adivinhar que tal novidade nos devolverá, de facto, o mais original e o mais genuíno que a experiência evangélica tem.

Quando os discípulos começaram a perceber a nova imagem que Jesus trazia de Deus, compreenderam a necessidade de mudar o seu modo de rezar: «Senhor, ensina-nos a orar como João ensinou aos seus discípulos» (Lc 11:1). E Jesus ensinou-lhes a dizer: Abbá (Pai; em rigor, papá, já que se trata da própria onomatopeia infantil). Porém, tal ensino, aparentemente muito simples, é tão elevado e tão delicado que constantemente corremos o perigo de o obscurecer, sobrecarregando-o com os nossos medos e deformando-o com os nossos fantasmas: remete-se Deus para as alturas do Céu, e, nós, acabamos por o ver distante, dominador e justiceiro.

Portanto, necessitamos de redescobrir constantemente esse rosto que Jesus procurou revelar-nos. Nesse sentido, a mudança cultural, quer pelo contributo dos estudos bíblicos, quer pela dura purificação negativa a que a crítica da religião nos obrigou, é uma excelente oportunidade. Pelo contrário, a resistência à mudança, sob o pretexto da fidelidade à letra (mesmo com a melhor das boas vontades), corre o risco de converter-se numa terrível sementeira de ateísmo.

Estas são afirmações muito fortes, as quais não é possível fundamentar pormenorizadamente agora. Pode-se, contudo, adiantar algumas singelas indicações que apontam para a verdade que elas contêm.[1] O fio condutor é o seguinte:

Se «Deus é amor» (1 Jo 4:8.16), isto é, se todo o Seu ser consiste em amar, é óbvio que nos criou para que nos realizássemos e fossemos felizes – criou-nos e continua a criar-nos e a amparar-nos, já que a criação é um acto contínuo. Portanto, criou-nos, não «para O servir» nem «para Sua glória» (no sentido comum que as pessoas dão a esta expressão). Como criador, a Sua glória é a nossa vida (S. Ireneu); como pai/mãe, a sua alegria é ver a nossa alegria e satisfazer-se com os nossos êxitos e realizações. Por isso, na história da salvação – apesar de tantos erros horrorosos da nossa parte – fomos aprendendo que toda a Sua acção na humanidade é única e exclusivamente para ajudar e salvar. Em Jesus, por fim, compreendemos que Ele nem sequer aguarda pela nossa iniciativa, mas que o Seu amor sempre nos precede: «ninguém pode vir a mim se o Pai não o atrair» (Jo 6:44). E, precede-nos, sem condições: «sobre bons e sobre maus», «sobre justos e pecadores» (Mt 5:45). Donde resulta o convite de Jesus à confiança total, pois «até os cabelos da nossa cabeça os tem contados» (Lc 12:7).

É claro que a um Deus assim não necessitamos de pedir o que quer que seja, pois Ele está sempre a dar-nos tudo. Precisamos, justamente, do contrário: de nos deixarmos convencer, de nos deixarmos ajudar e salvar. Precisamos de confiar, apesar de todas as aparências. Ele está sempre connosco, fazendo o possível e o impossível para o nosso bem e para a nossa felicidade. Se alguma coisa falha, a Ele nunca se poderá assacar a mais pequena responsabilidade, porque tudo aquilo que se opõe ao nosso bem opõe-se identicamente ao seu amor por nós (ou mais ainda a Ele se opõe: não é verdade que os pais humanos vivem com muito mais intensidade os males dos filhos do que até os próprios filhos?)

A realidade falhará, já que, como finita que é, terá inevitáveis falhas, e falharemos nós, porque não compreendemos, porque resistimos ou porque nos negamos a.[2] Em última instância, quando ocorre algo que pode ter solução e não a tem, então, é porque não colaboramos com Deus. Só então faz sentido falar de petição, mas, petição de Deus a nós: para que nos deixemos salvar, para que acolhamos o Seu chamamento e a Sua ajuda a fim de conseguirmos fazer o bem aos irmãos necessitados. Não será este o sentido mais genuíno e, no fundo, o específico do «mandamento» do amor?






Examinemos, agora, as nossas orações de petição. Para isso, prescindamos das intenções subjectivas, examinando o que elas dizem em si mesmas e por si mesmas. Partamos de um exemplo entre milhões, que em qualquer domingo nos arriscamos a ouvir nas nossas igrejas:

Pe/ − Para que as criancinhas de África não morram de fome, roguemos ao Senhor.

Re/ − Senhor, escuta e tem piedade.


O que é que objectivamente estamos comprometendo nesta prece e, portanto, estamos individualmente a inculcar no nosso inconsciente e a espalhar no imaginário colectivo?

Procedendo com muita objectividade e falando cruamente (sempre com a ressalva de que não nos estamos a referir a intenções subjectivas e conscientes), é impossível negar que este tipo de prece – Oração de Petição − tem implicações gravíssimas.

Por um lado, o conteúdo destas petições tem como consequência que:

1/ nos apercebemos da existência duma necessidade e que decidimos agir: somos boas pessoas e tratamos de convencer Deus que também o seja;

2/ no entanto, Deus está passivo ou, pelo menos, não suficientemente activo e generoso até àquele momento em que O convençamos, caso sejamos capazes de tal;

Por outro lado, e isto é ainda mais grave, que:

3/ se no domingo seguinte as crianças africanas continuam a morrer de fome, a conclusão lógica é que Deus «não escutou nem teve piedade».

Por fim, e pior ainda, que:

4/ Deus, se quisesse, podia resolver o problema da fome, e, por conseguinte, o das doenças, o dos acidentes, o problema dos assassinatos e o das guerras, e por aí fora. Porém, vá-se lá saber porquê, não resolve.


Será que nos damos conta do que tudo isto significa?

É claro que, inconscientemente, isso não acontece, mas, de modo objectivo, através daquilo que dizemos projectamos uma monstruosa imagem de Deus. Não só ferimos a ternura infinita de um amor que só pensa em ajudar-nos e salvar-nos, como acabamos por dizer, implicitamente, algo que nem sequer do maior canalha dos seres humanos nos atreveríamos a dizer. Como é possível imaginar que, alguém que possuísse tal poder, não eliminaria de um momento para o outro tanto mal e tanto horror da face do mundo? Será Deus um ser tão singular assim capaz de tão grande monstruosidade?

Estou plenamente convicto que ninguém nunca pretendeu afirmar tal coisa e de que na mente de todos não faltam explicações atenuantes e se multipliquem os distinguos e as atenuantes. Mas, a objectividade das frases é inegável, cravando a golpes de martelo nos espíritos a imagem de um «deus» a quem devemos suplicar e convencer, para quem, inclusivamente, se elaboram recomendações e a quem se procura motivar com presentes ou sacrifícios e, ainda por cima, quem não faz caso e, quando o faz, é lá de longe a longe e favorecendo apenas uns quantos… Podem, as subtilezas teológicas, tratar de as justificar, mas basta ver a prática da piedade popular e examinar com cuidado crítico a maior parte das orações – olho, entre os meus papéis, uma pagela com uma «novena irresistível» − para constatarmos a paupérrima imagem de Deus que estamos a transmitir e que estranho comércio se procura estabelecer com Deus.





Felizmente, as boas intenções suprem muitas coisas e a linguagem tem outras dimensões para além da lógica e da objectividade, de tal sorte que nem tudo depende dela. Porém, é conveniente que se não chegue à contradição entre tão distintas dimensões (é certo que até uma blasfémia pode chegar a ser uma «oração», mas não creio que tal modo de orar seja recomendável…). Muito menos se pode jogar com questões tão delicadas: aquilo que, num ambiente mais sacral, pode ser aceitável, numa cultura secular pode tornar-se deletério.

Até porque existe um outro factor importante: estas ideias, pronunciadas «a partir de dentro» e levadas a sério constituem uma ajuda inestimável para purificar a nossa imagem de Deus. Porém, estas ideias, hoje em dia, podem ser manuseadas por qualquer televisão ou jornal para um ataque à fé. Será um ataque formidável, de eficácia devastadora, já que está carregado de razões objectivas. E, nessa altura, de nada valerão as prudências pastorais ou os distinguos teológicos.

Para cada de um de nós, tudo isto é muito claro. Estamos de tal forma mergulhados na oração de petição que nem sequer damos conta de nada, mas, quando escutada pela primeira vez, faz saltar espontâneas resistências. Resistências que, além do mais, parecem ter apoios e garantias muito sérias nas Escrituras. Não só as petições abundam nas Escrituras, como o próprio Jesus parece recomendá-las encarecidamente: «pedi e ser-vos-á dado» (Mt 7:7; Lc 11:9).

Tal facto, é inegável, mas também ele exige interpretação. Antes de mais nada, basta ver que, tomado à letra, converter-se-ia numa enorme falsidade: mesmo garantidas quanto ao conteúdo e pela liturgia, quantas petições são outorgadas? E, por outro lado, quando tudo é examinado com minúcia, ressalta a extrema cautela de Jesus – apesar daquele tempo e daquela cultura – em falar do tema:

«Nas vossas orações, não sejais como os gentios, que usam de vãs repetições, porque pensam que, por muito falarem, serão atendidos. Não façais como eles, porque o vosso Pai celeste sabe do que necessitais antes de vós lho pedirdes.» (Mt 6:7-8)

Marcos, por seu lado, cita uma frase significativa e muito estranha, que até nos própios manuscritos causou problemas:

«Por isso, vos digo: tudo quanto pedirdes na oração crede que já o recebestes e haveis de obtê-lo.» (Mc 11:24)

Finalmente, a exegese mostra que, na exortação a pedir, a verdadeira ênfase não está em pedir muito, mas em confiar muito. A famosa parábola do «amigo inoportuno» pertence às parábolas «de contraste» que insistem no «quanto mais» da bondade e do amor de Deus, bondade que supera o pensável e o imaginável: se é inconcebível que um amigo falte com a hospitalidade, «quanto mais Deus!». Impossível que Ele nos falte: a segurança é absoluta! (Para ver a força de tudo isto, leia-se Lc 11:5-13; 7:7-11; e também a parábola do juiz iníquo: Lc 18:1-8)[3]

A aplicação é óbvia: se alguma coisa pode resumir tudo o que até agora dissemos é precisamente esta confiança sem limites, de tal modo que a aparente infidelidade à letra acaba por revelar-se como  a mais profunda fidelidade ao espírito.

Note-se que desta maneira não renunciamos a nenhum modo nem a nenhuma dimensão da oração: tudo aquilo que vivemos e experienciamos ante Deus, tudo quanto necessitamos e desejamos, podemos expressá-lo sem recorrer à petição, com a vantagem de que o expomos com a máxima verdade, já que não ferimos o infinito respeito que Deus nos merece pelo seu amor e iniciativa absolutos. Além do mais, educamos o nosso interior e catequizamos o ambiente que nos rodeia. Continuando com o nosso exemplo, imaginemos quão distinto seria o clima eclesial se a prece fosse mais ou menos assim:

Pe/ − Senhor, na nossa preocupação para com a fome das crianças em África, reconhecemos a petição do teu amor compadecido, o qual nos chama a que, superando o nosso egoísmo, colaboremos contigo ajudando-os generosamente.

Re/ − Senhor, queremos escutar-te a Ti e ter piedade dos nossos irmãos.

Podíamos formulá-la num texto mais feliz, mas serve este apenas para evidenciar a direcção que se lhe quer dar. (…)

O esforço por criar novas fórmulas reveste, hoje em dia, uma urgência muito especial (…). Na inevitável travessia pelo deserto que isso implica, as pessoas com criatividade neste campo poderiam oferecer-nos a todos nós um inestimável serviço. Seria, sem dúvida, uma bela oferta da Vida Religiosa à Igreja e ao mundo, nesta hora em que tão necessário é descobrir de novo o rosto autêntico de Deus, tal como outrora brilhou na palavra e na vida de Jesus de Nazaré.

Andrés Torres Queiruga

«Por el Dios del mundo en el mundo de Dios – Sobre la esencia de la Vida Religiosa»
Ed. Sal Terræ, Santander, 2000, col. Servidores y Testigos, nº 72, pp.97-108.

[a pedido da Assembleia dos Superiores Provinciais da CONFER espanhola; previamente editado na Confer. Revista de Vida Religiosa]




[1] Para uma fundamentação mais detalhada remeto para o último capítulo do meu livro Recuperar la creación. Por una religión humanizadora. Sal Terræ, Santander 19982, pp. 247-294 (uma visão prévia pode encontrar-se em: «Mas allá de la oración de petición»: Iglesia Viva 152 (1991), 157-193.
[2] Está à vista que aludo, aqui, ao problema do Mal. Também, quanto a isto, é preciso quebrar ideias feitas: o Mal é o inevitável, já que, dada a finitude da criatura, pensar que ela possa ser perfeita equivale a pensar um «círculo-quadrado» (dito assim literalmente, ainda que, a complexidade do real não é assim tão clara como o é a simplicidade desta figura geométrica: ser círculo implica inevitavelmente não poder ser quadrado). Deus é omnipotente, mas o ser finito «deu o que tinha a dar». Por isso, Deus não nos «envia» nem «quer», e, propriamente dito, nem sequer «consente» no Mal. O Mal é produzido inevitavelmente pelas contradições das criaturas, mas Ele, Deus, luta ao nosso lado contra o Mal, sempre a nosso favor. Procurei desenvolver mais amplamente estas ideias em outras obras, cf. Recuperar la salvación, Sal Terræ, Santander, 19952, c. 2, pp. 87-155; Creo en Dios Padre, Sal Terræ, Santander, 19985, pp. 109-149; «El mal inevitable: Replanteamiento de la Teodicea»: Iglesia Viva 175/176 (1995), 37-69; «Replanteamiento actual de la teodicea: Secularización del mal, “Ponerología”, “Pisteodicea”, em (M. Fraijó – J. Massiá [eds.]) Cristianismo e Illustración, UPCO, Madrid 1995, pp. 241-292.
[3] Joachim Jeremias, As parábolas de Jesus, Edições Paulinas, S. Paulo, 1976, p. 148s. J. Jeremias chama, de facto, a atenção para o «contraste» entre o começo (da missão) e o resultado final, mas também para o «ocultamento»: no mínimo já está (contido) o máximo! Cf. a parábola do grão de mostarda, da colheita que cresce por si própria, etc. «É uma peça central da pregação de Jesus esta confiança inabalável: a hora de Deus vem (p. 155); mesmo que ocultamente, − estejamos certos − já vem a caminho! [Nota do Tradutor]