A BOA NOTÍCIA
Chegamos a Nazaré,
ao povoado onde Jesus havia sido criado. Eu fiz a viagem com ele desde
Cafarnaum. Era sábado, dia de descanso. Na primeira hora da manhã os nazarenos apertavam-se
na pequena e dividida sinagoga. Os homens vinham envoltos nos seus mantos de
listas negras e brancas. Alguns entravam mascando tâmaras para matar a fome,
embora isso fosse proibido. As mulheres ficavam à parte, segundo o costume,
atrás da grade trançada. Ali, entre as demais aldeãs, estava também Maria, a
mãe de Jesus.
Todos: “Escuta
Israel / o Senhor é nosso Deus / só ele é o Senhor. / Amarás o Senhor teu Deus
/ com todo o teu coração / com toda a tua alma e com toda a tua força. / Fiquem
gravadas estas palavras que eu te mando hoje...”
Começávamos a
cerimónia rezando em coro a oração da manhã. Depois vinham as dezoito preces
rituais. Quando chegou o momento da leitura, o velho rabino fez um sinal para
Jesus, que estava ao meu lado. Jesus abriu passagem entre os seus vizinhos e aproximou-se
do estrado onde estavam guardados os livros santos... Um jovem abriu a caixa de
madeira de sândalo e tirou os pergaminhos. Naqueles rolos estava escrita, em
letras vermelhas e pretas, a Lei de Deus. Era a Santa Escritura onde os sábios
de Israel, ao longo de mil anos, haviam esquadrinhado cada palavra, detrás de
cada sílaba, a vontade do Senhor. Jesus tomou o livro do profeta Isaías.
Desenrolou o pergaminho, levantou-o ao alto com as mãos e começou a ler aos
tropeções, como lêem os camponeses que não tiveram muita escola...
Jesus: “O espírito do
Senhor está sobre mim. O Espírito do Senhor me chamou e me envia aos pobres
para dar-lhes a boa notícia que tanto esperam: a sua libertação! Os corações
feridos serão curados, os escravos sairão livres, os presos verão a luz do sol.
Venho apregoar o Ano da Graça do Senhor, o Dia da Justiça do nosso Deus: para
consolar a todos os que choram, para pôr sobre suas cabeças humilhadas uma
coroa de triunfo, vestidos de festa em vez de roupa de luto, cantos de vitória
em vez de lamentações.”
Jesus acabou de
ler. Enrolou o pergaminho, devolveu-o ao ajudante da sinagoga e sentou-se em
silêncio. Todos tínhamos os olhos cravados nele, esperando o comentário
daquelas palavras. Jesus também parecia esperar alguma coisa. Com a cabeça
entre as mãos, notava-se que estava muito nervoso. Ficou assim alguns momentos.
Depois pôs-se em pé e começou a falar...
Jesus: “Vizinhos ... eu
... eu ... na verdade, eu não sei falar diante de tanta gente... Perdoem-me
se... se não sei falar como os sacerdotes ou os doutores da Lei... Bem, eu sou
um camponês como vocês e não tenho muitas palavras... De qualquer modo, eu
agradeço ao rabino por me convidar para comentar a Escritura...”
Rabino: “Não fiques
nervoso, rapaz! Diz qualquer coisa que te ocorra. E depois, conta-nos um pouco
o que aconteceu em Cafarnaum, aquela história do leproso... as pessoas andam a
dizer muitas coisas estranhas...”
Jesus: “Bem, vizinhos,
eu queria dizer-lhes que... que estas palavras do profeta Isaías são... são
algo muito grande. Estas mesmas palavras eu ouvi-as do profeta João lá no
deserto. João dizia: «Isto vai mudar. O Reino de Deus aproxima-se». E eu
pensava: sim, Deus traz algo entre as mãos, mas... mas o quê? O que é que tem
de mudar...? Por onde começa o Reino de Deus?... Não sei, mas agora, quando
acabo de ler estas palavras da Escritura, parece-me que compreendi do que se
trata.”
O cheiro de suor
dos nazarenos misturava-se com o incenso queimado e quase não se podia
respirar. O ar quente da sinagoga começou a tomar conta de tudo. Jesus também
suava muitíssimo...
Jesus: “Vizinhos...
escutem-me... eu... eu... anuncio-vos uma alegria muito grande: a nossa
libertação. Nós os pobres, temos passado a vida dobrados sobre a terra, como
animais. Os grandes puseram-nos um jugo muito pesado sobre os ombros. Os ricos
têm-nos roubado o fruto do nosso trabalho. Os estrangeiros apoderaram-se do
país e até os sacerdotes se passaram para o lado deles e ameaçam-nos com uma
religião feita de leis e de medo. E assim estamos, como nossos avós no Egipto,
nos tempos do Faraó. Temos comido um pão amargo, temos bebido já muitas
lágrimas. E tantas pancadas nos deram que chegamos a pensar que Deus já se
esqueceu de nós. Não, vizinhos, o tempo cumpriu-se
e o Reino de Deus está perto, pertíssimo.”
O velho Ananias,
dono do lagar e do moinho de azeite, dono das terras que marginavam a colina de
Nazaré e se estendiam até Caná, levantou o seu bastão como se fosse um longo
dedo acusador:
Ananias: “Escuta aqui,
rapaz, filho da Maria, que loucura é essa que estás a dizer? Queres explicar-me
o que é que tem de mudar? A quem te estás a referir?”
Jesus: “Tudo tem que
mudar, Ananias. Deus é um pai e não quer ver os seus filhos tratados como
escravos, nem mortos de fome. Deus pega o nível, como o pedreiro, para nivelar
o muro: nem ricos, nem pobres, todos iguais; nem faraós nem escravos, todos
irmãos; Deus desce do andaime do céu e põe-se do nosso lado, os espezinhados
deste mundo. Não ouvimos sempre dizer que Deus ordenou o Ano da Graça? Não
acabamos de escutar isso?... Deus quer que a cada cinquenta anos haja um ano de
trégua. Que a cada cinquenta anos se rasguem todos os títulos de propriedade,
todos os papéis de dívidas, todos os contratos de compra e venda. E que a terra
seja dividida em partes iguais entre todos. Porque a terra é de Deus, e de Deus
também tudo o que existe nela. Que não haja diferenças entre nós. Que a ninguém
sobre e a ninguém falte. Isso foi o que Deus ordenou a Moisés há mil anos, e no
entanto está à espera porque ninguém o cumpriu. Nem os governantes, nem os
proprietários de terra, nem os usurários quiseram cumprir o Ano da Graça. E já
é hora de que ele se cumpra!”
Todos estávamos em silêncio, com a boca
aberta, assombrados
de quão bem se expressava o filho do operário José, o filho da camponesa
Maria...
Um vizinho: “Essas palavras
soam bonitas, Jesus. Mas com palavras não se come. «Libertação, libertação...!» Mas, para quando, diga-me, para a outra
vida, para depois da morte...?
Jesus: “Não, Esaú. Na
outra vida seria muito tarde. O Ano da Graça é para esta vida. O Reino de Deus
começa nesta terra.”
Outro vizinho: “Quando então?
Quando os ricos amolecerem o coração e repartirem connosco o dinheiro que têm
acumulado?”
Jesus: “As pedras não se
amolecem por dentro, Simeão. Faz falta um martelo.”
Suzana: “Quando então,
Jesus, quando é que se vai cumprir essa profecia que você acaba de ler?”
Jesus: “Hoje, Suzana.
Hoje mesmo. Hoje vamos começar. Claro que não é luta apenas para um dia. Uma rocha não
se rompe com uma martelada só. Talvez passemos outros mil anos como Moisés. Ou
dois mil. Mas nós também cruzaremos o Mar Vermelho e seremos livres. Hoje pomo-nos
em marcha!”
Jesus já não tremia. Com as suas duas mãos, grandes e
calejadas, agarrou-se fortemente à borda do estrado e respirou fundo como quem
toma impulso para dar um salto... Ia dizer algo importante.
Jesus: “Eu queria
dizer-lhes... Eu sinto na minha garganta, apertadas como flechas na mão de um
guerreiro, as vozes de todos os profetas que falaram antes de mim, desde Elias,
aquele valente do Carmelo, até ao último profeta que temos visto entre nós:
João, filho de Zacarias, a quem aquela raposa do Herodes mantém preso em
Maqueronte. Vizinhos, a paciência de Deus
esgotou-se! Esta Escritura que vos acabo de ler não é para amanhã: é
para hoje. Vocês não percebem? Está-se a cumprir diante de vocês.”
O velho rabino coçou o cocuruto com ar
preocupado...
Rabino: “O que é que tu
queres dizer com isso de que se está a cumprir diante dos nossos olhos? Diante
dos meus olhos eu tenho o Livro Santo da Lei, bendito seja o Altíssimo. E junto
do Livro estás tu, a comentar o que leste nele.”
Jesus: “Eu faço minhas
as palavras que estão escritas neste Livro... Perdoem se lhes falo assim,
vizinhos, mas...”
Jesus deteve-se.
Olhou-os a todos lentamente como que pedindo permissão para dizer o que ia
dizer...
Jesus: “Quando o profeta
João me baptizou no Jordão, eu senti que Deus me chamava para proclamar esta
boa notícia. E por isso, eu quero hoje...”
Um vizinho: “Toma cuidado com
o que dizes, Jesus! Quem pensas que és? Do modo como falas parece que te estás a
comparar com o profeta Elias e com João o baptizador!”
Jesus: “Eu não me
comparo com ninguém. Eu só anuncio a libertação para nós, os pobres.”
Um ancião, com uma
dupla corcunda como os camelos soltou uma gargalhada!
Um velho: “Médico, cura-te
a ti mesmo!”
Jesus: “Por que me diz
isso de médico cura-te a ti mesmo?”
Velho: “Como por quê?
Porque se nós estamos mal, tu estás pior!... De que miséria é que nos vai
tirar, se tu és o maior esfarrapado de Nazaré? Olha a tua mãe aí, atrás da
grade... Vamos, dona Maria, não se esconda, que todos a conhecemos aqui. E teu
pai José, que descanse em paz, quem foi? Um pobre diabo como todos nós. E olha
aqui teus primos e tuas primas... Pelos cabelos de Abraão, de que é que tu vai livrar-nos
se não tens nem um tostão no bolso?”
Uma vizinha: “Eu acho que a droga
subiu à cabeça desse moreno!”
Rabino: “Esperem, irmãos,
deixem-no falar. Deixem-no falar!”
Vizinho: “Chega de
palavreado! Faz um milagre!”
Vizinha: “Isso mesmo, um
milagre!”
Vizinho: “Conta-nos o que
aconteceu em Cafarnaum! Se é que aprendeste alguma bruxaria para limpar
leprosos e curar as viúvas com febres ruins!”
Vizinha: “Foi você, dona
Maria quem ensinou seu filho a fazer esses truques?”
Rabino: “Um momento, um
momento!... Jesus, tu estás a ouvir o que eles dizem? Eles têm razão, filho! Tu
vens falar-nos de libertação? Começa aqui no teu lugarejo, pois uma boa
caridade começa em casa.”
Vizinho: “Se tu curaste os
leprosos de Cafarnaum, cura os daqui!”
Vizinha: “Vamos, de que
estás à espera?... Olha como tenho as pernas cheias de feridas!...”
Jesus: “A história
repete-se, vizinhos. A história repete-se. Nos tempos do profeta Elias havia
muitas viúvas necessitadas, mas Elias foi enviado à cidade de Sarepta, uma
terra estrangeira. E nos tempos de Eliseu havia muitos leprosos em Israel e o profeta
curou a Naaman o sírio, que também era um estrangeiro.”
Vizinho: “Ei, espera: o que
estás a querer dizer com isso?”
Jesus: “Nada, somente que
o mesmo sempre se repete. Que nenhum profeta é bem recebido na sua terra. Está
bem, eu vou de volta para Cafarnaum.”
Os nazarenos começaram a vaiar e a
assobiar Jesus...
Vizinho: “É melhor que tu
te voltes mesmo para Cafarnaum... Nunca se viu charlatão maior que tu...”
Todos: “Charlatão!...
Embusteiro!... Tirem-no daí!... Fora, fora!...”
Os homens com os
punhos fechados, lançaram-se sobre o estrado onde estava Jesus, enquanto as
mulheres gritavam por trás da grade. A barafunda tinha começado e as velhas
pedras da Sinagoga estremeceram com a gritaria dos Nazarenos.
Comentários
Em Nazaré, na aldeia
onde tinha sido criado, Jesus faz a primeira proclamação pública da boa notícia
que Deus anuncia aos pobres. Neste texto aparece, sobre a base duma promessa feita
setecentos anos antes pelo profeta Isaías, um
resumo do que será a vida de Jesus e do que é, em essência, o Evangelho:
Libertação
para os oprimidos.
Esta é uma passagem básica e central para a compreensão da fé cristã. Na actual Nazaré,
conserva-se uma pequena sinagoga construída sobre os restos da do tempo de
Jesus. Aquela deve ter sido uma construção ainda menor da que vemos hoje, pelo
fato de a aldeia ter tão poucos habitantes. Como todas as sinagogas, estava
orientada de tal forma que, ao rezar, o povo olhava para o Templo de Jerusalém,
centro religioso do país.
Na sinagoga, as
mulheres não se misturavam com os homens. A elas estava destinado um lugar
separado por uma grade. Tampouco na sinagoga as mulheres podiam ler em público
as Escrituras nem fazer seu comentário.
Quando o povo se
reunia aos sábados na sinagoga começava a oração sempre com a recitação da “Shemá”
(“Escuta, Israel...”, Dt 6,4-9), uma das preces preferidas da piedade judaica.
Depois vinham outras 18 preces rituais que precediam a leitura das Escrituras.
O lugar mais sagrado da sinagoga encontrava-se na parede que se orientava para
Jerusalém. Ali se guardavam os pergaminhos da Thora (Lei), onde estavam escritos os livros que hoje lemos na
Bíblia (Antigo Testamento). Não eram livros como os actuais, mas pergaminhos
enrolados. Eram guardados em caixas de madeira lavradas artisticamente. Jesus,
como todos os israelitas de seu tempo, falava em aramaico. O aramaico
é uma língua do mesmo tronco linguístico que o hebraico,
e ainda é falado em algumas aldeias da Síria. Era utilizado em todo o país de
Israel como língua familiar e popular desde uns cinco séculos antes do
nascimento de Jesus. A partir daquela época, o hebraico limitou-se a ser a
língua dos doutores da Lei.
Em hebraico também
se escreviam as Escrituras. O rolo em que Jesus leu na sinagoga era escrito em
hebraico. Daí a dificuldade de Jesus, nada familiarizado com essa língua culta
e, como camponês, homem de pouca leitura. O costume era que qualquer dos homens
presentes na sinagoga lesse um fragmento da Escritura e depois o comentasse
segundo a sua inspiração, diante dos conterrâneos. Essa era uma missão dos leigos,
não exclusiva dos rabinos.
O texto que Jesus
lê e comenta é Isaías 61,1-3. A decisão com que Jesus fala do Reino de Deus, da
libertação, incomoda os seus vizinhos, que nem aceitam nem podem acreditar que
um pobre coitado saído de entre eles possa vir libertá-los de alguma coisa. É
muito frequente que tenhamos resistência em admitir como “salvador” alguém próximo,
simples e busquemos sinais grandiosos, salvadores que venham de
fora, que sejam extraordinários, superiores, diante de quem rendamos admiração.
Mas o plano de Deus
é o contrário. Ele
revela-se no mais pobre, no mais humilde. O ano da Graça era uma
instituição legal muito antiga que remontava aos tempos de Moisés. Chamava-se
também Ano do
Jubileu, porque era anunciado pelo toque de um instrumento chamado,
em hebraico, “yobel”.
Esse Ano da Graça
devia cumprir-se a cada cinquenta anos. Ao chegar essa data, as dívidas deviam
ser anuladas, as propriedades adquiridas deviam voltar aos seus antigos donos
(com a finalidade de evitar acumulações excessivas), os escravos deviam ser
postos em liberdade. Essa lei era uma forma de proclamar que o único dono da terra é Deus. E do ponto de vista
social essa lei ajudava a manter unidas as famílias com um património
suficiente para uma vida digna.
Era também um memorial da
igualdade original que havia quando os filhos de Israel chegaram à
Terra Prometida, quando nada era de ninguém e tudo era de todos (Lv 25, 8-18).
No mesmo sentido ia também o Ano Sabático,
que devia ser celebrado a cada sete anos.
Estas instituições
legais eram entendidas como leis de libertação.
Assim
o proclama Jesus. E, fiel à tradição de seu povo, Jesus refere-se ao Ano da
Graça como ponto de partida para iniciar uma mudança urgente no país, dada a grande diferença que existia entre pobres e
ricos. Em Nazaré, na sinagoga do seu povoado, Jesus dá um passo
importante na maturação da sua consciência. Ao aplicar a si mesmo a frase de Isaías
“O espírito do Senhor está sobre mim” era uma forma de reconhecer-se profeta na
linha de todos os profetas que o haviam precedido.
Depois da
ressurreição, a Igreja Primitiva acumulou sobre Jesus títulos para descrever a sua
missão: “Senhor”, “Filho de Deus”, “Cristo”... A história a que recorrem os
evangelhos deixa ver, no entanto, que o título com que foi aclamado
unanimemente pelo povo, e por seus discípulos, foi o de profeta.
O profeta define-se
em oposição
à instituição. Jesus não deve ser considerado como um teólogo ou mestre profissional. Mesmo que Ele fosse um mestre mais radical do que
os demais, estaria enquadrado pela instituição. Não podia sê-lo. Faltava-lhe o
que os mestres do seu tempo tinham - os estudos teológicos. A
formação dos mestres era rigorosa,
durava muitos anos, começava desde a infância.
Quando denominaram
Jesus de “rabi” (mestre, senhor)
estavam a aplicar a ele um tratamento que no seu tempo era familiar e corrente
e que não deve ser traduzido como mestre
no sentido de teólogo. Pelo contrário: Jesus foi acusado de ensinar sem ter autoridade
(Mc 6,2). Quando fala na sinagoga não o faz tampouco como teólogo ou como mestre,
mas como profeta leigo.
Jose
Ignacio, Maria Lopez VIGIL
(cf. Mateus 13, 53-58; Marcos 6,1-6; Lucas
4,16-28)