teologia para leigos

24 de janeiro de 2013

ORAÇÃO-TESTEMUNHO: O EVANGELHO DOS POBRES [ARRUPE]

Padre Arrupe sj
no Brasil de D. Hélder


Rio de Janeiro



Não sendo a Europa a principal preocupação do padre Arrupe (…), este empreendeu em Abril de 1968 mais uma viagem importante à América Latina, desta vez ao Brasil, onde esteve um mês.

No meio da pobreza e das lacerantes injustiças sociais do Noroeste, movimentava-se um pequeno bispo de olhar doce e batina puída, a quem várias vezes tinham assaltado a casa e cujo secretário fora assassinado. Era D. Hélder Câmara, o Bispo Vermelho, uma pessoa cuja mentalidade não diferia muito da do padre Arrupe. No Brasil, país quase tão grande como a Europa, preparava-se o terreno para as famosas comunidades de base [CEB’s] e a corrente que seria conhecida como teologia da libertação.

À chegada ao Brasil, ainda no aeroporto, Arrupe falou do imenso potencial do país. Aqui passou uma semana reunido com os provinciais da América Latina, para estudo e reflexão. Depois, Arrupe e os provinciais dirigiram uma importante Carta aos Jesuítas latino-americanos em que voltava a exprimir com clareza o seu pensamento.

A carta começava por constatar a situação de injustiça que assolava o continente americano. «As populações urbanas e rurais crescem em ritmo acelerado e as indígenas são alvo de discriminação racial. Tanto os que se opõem às transformações inovadoras, necessárias, como os que desesperam de soluções pacíficas, alimentam uma dialéctica de violência». A seguir referiam-se à época em que viviam como sendo um momento da história da salvação, e acrescentavam: «Por isso, queremos dar prioridade a este problema da nossa actividade apostólica; mais ainda, queremos conceber a totalidade do nosso apostolado em função dele.» Para isso, diziam-se dispostos a trabalhar com quem quer que fosse, independentemente de ideologias e de regimes políticos, para uma sociedade mais justa, mais livre e mais pacífica. Conscientes da profunda renovação que isto pressupunha, reconheciam que era preciso romper com algumas atitudes do passado e confessavam querer evitar qualquer atitude de isolacionismo ou de dominação. «Queremos adoptar na sociedade uma atitude de serviço à Igreja, rejeitando a imagem de autoridade que frequentemente nos é atribuída».

Aparecia depois a palavra-chave: libertação. «As nossas acções devem ter por objectivo a libertação dos indivíduos de qualquer forma de servidão ou opressão. Queremos que os nossos esforços convirjam para a construção de uma sociedade em que as pessoas estejam integradas e na posse de todos os seus direitos de igualdade e liberdade, não apenas políticos, mas também culturais e religiosos.»

Na Carta referia-se ainda a renúncia a atitudes típicas das classes privilegiadas e às relações preferenciais dos jesuítas com as mesmas. Os provinciais, conscientes da inevitabilidade das reacções que esta prática suscitaria, diziam: «Não as provocaremos com atitudes sectárias, mas continuaremos a pregar o evangelho dos pobres, qualquer que sejam as reacções», e comprometiam-se a promover transformações arrojadas que renovassem radicalmente as estruturas, rejeitando atitudes violentas, que não são legítimas se se inspiram na utopia, na frustração e no ódio e não na reflexão e no amor cristão. O documento continuava propondo medidas concretas, como, orientar o apostolado para a massa enorme e crescente de desamparados, animar e aperfeiçoar as acções educativas em favor da promoção dos mais desfavorecidos, dar testemunho de pobreza e empenhar os alunos nas questões sociais, despojando-os de objectivos individualistas com que desejassem ser educados.

No fim, os Provinciais diziam estar conscientes de que esta renovação não podia ser concluída a curto prazo.

A Carta dos Provinciais jesuítas da América Latina correu como um rastilho de pólvora pelos telexes e foi amplamente divulgada pelos meios de comunicação. (…) Arrupe aproveitou a ida ao Brasil para visitar vinte cidades. (…)



favela... a Betânia de Jesus!



Mas nas viagens, Arrupe nunca se ficava pelos contactos oficiais e pelos contactos com os jesuítas. Da sua experiência no Brasil há este eloquente testemunho:

«Há alguns anos, quando visitava uma província de jesuítas na América Latina, fui convidado a celebrar missa num dos lugares mais pobres da zona, uma favela em que viviam cerca de cem mil pessoas. Viviam no meio da lama, já que a favela ficava num vale que alagava sempre que chovia…

«A missa foi celebrada numa espécie de abrigo em mau estado e sem porta, com cães e gatos a entrar e a sair. A eucaristia começou com cânticos, acompanhados por um guitarrista que não era exactamente um virtuoso. Mas o resultado era maravilhoso. O cântico repetia: “Amar é dar-se… Como é belo viver para amar e como é grande ter para dar”. À medida que o cântico progredia eu sentia um nó a crescer-me na garganta. Tive de fazer um grande esforço para continuar a missa. Aquela gente, que parecia não ter nada, estava disposta a dar-se, a transmitir a alegria e a felicidade. Quando ergui a hóstia para a consagração, percebi, no meio de um imenso silêncio, a alegria do Senhor quando está entre os que ama. Jesus disse: “Fui enviado para pregar a boa nova aos pobres” e “felizes os pobres”…

«Enquanto dava a comunhão, ia observando aqueles rostos secos, duros, queimados pelo sol, em que havia lágrimas a rolar como pérolas. Acabavam de se encontrar com Jesus, o seu único consolo. As minhas mãos tremiam.

«A homilia foi curta e consistiu sobretudo num diálogo. Contaram-me coisas que não seriam ditas em discursos importantes, coisas simples, mas profundas e sublimes, coisas humanas. Uma velhinha disse-me: “O senhor é o superior destes padres, não é? Pois então, mil vezes obrigada. Vocês, jesuítas, deram-nos este grande bem que tanta falta nos fazia, a missa.” Um miúdo disse: “Padre, saiba que estamos muito agradecidos a estes padres por nos terem ensinado a amar os inimigos. Há uma semana arranjei uma faca para matar um rapaz que detestava. Mas, depois de ouvir o padre a pregar o evangelho, em vez de o matar ofereci-lhe um gelado.”

«No fim, um tipo corpulento, com ar de delinquente e que quase metia medo, disse-me: “Venha a minha casa, tenho um presente para si.” Fiquei indeciso, mas, o jesuíta que estava comigo, disse: “Vá, padre, é gente muito boa”. Então, fomos a casa dele, uma barraca estragada, onde me convidou a sentar numa cadeira desengonçada. Aí sentado, eu podia ver o pôr-do-sol. O matulão disse-me: “Veja, senhor, que bonito!” Ficamos em silêncio alguns minutos. O Sol desapareceu. Então, o homem disse: “Não sabia como havia de agradecer tudo o que fazem por nós, não tenho nada para dar, mas pensei que gostaria de ver o pôr-do-sol. Gostou, não gostou? Adeus”. E estendeu-me a mão. Na ida, pensei: “Não é fácil encontrar um coração assim." Já ia a sair da viela quando uma mulher, muito pobremente vestida, se aproximou e me beijou a mão. Olhou para mim, emocionada, e disse: “Padre, reze por mim e pelos meus filhos. Também assisti à missa tão bonita que o senhor celebrou. Devo voltar para casa, mas não tenho nada para dar aos meus filhos… Reze por mim, que ele há-de ajudar-nos.” E correu para casa.

«As coisas que aprendi naquela missa com os pobres! Que diferença das grandes recepções dadas pelos poderosos!»[1]


A viagem [ao Brasil] foi um sucesso. Na volta, Arrupe fez escala em Porto Rico, e esteve hora e meia no aeroporto em Barajas, que serve Madrid. Aqui, em conversa com os jornalistas, falou da falta de fé e da necessidade de pessoas, de verdadeiros intelectuais, que reflectissem sobre a época que se vivia e principalmente sobre o Terceiro Mundo. Recordando uma pergunta que lhe tinham feito em Porto Rico, disse que a promoção humana bem entendida, naturalmente enformada pela caridade, tem um valor apostólico de primeira categoria e é um aperfeiçoamento da obra da redenção.[2] (…)








Arrupe confessa que, por volta de 1973, viu uma nova luz na sua vida. “Naquele ano vi claramente que uma coisa completamente nova estava a começar. Estava intimamente seguro, não tinha dúvidas de que ia enveredar por um caminho novo. Que experiência tão bonita!” Quando disse isto, levou a mão ao peito. (…)


[porém…]


(…) o cardeal Villot[3] dirigiu outra carta ao padre Arrupe, na qual afirmava: “Na ordem das coisas temporais, a promoção humana e o progresso social não devem ser exaltados acima do razoável, o que prejudicaria o significado essencial que a Igreja dá à evangelização ou o anúncio do Evangelho”.[4]

[in ‘PEDRO ARRUPE’, por Pedro Miguel Lamet, Tenacitas 2003, ISBN 978-972-8758-77-6, pp. 310-314.369-370. Preço: cerca de 28 euros]






[1] Itinéraire, p. 45. Para as declarações no Brasil, ver, por exemplo, as edições de 16, de 17 e de 28 de Abril de 1968 do diário bilbaíno La Gaceta del Norte.
[2] Ver Jornal ABC, de 21 de Maio de 1968.
[3] Jean-Marie, Cardeal Villot (Saint-Amant-Tallende, 11 de outubro de 1905Roma, 9 de março de 1979) foi um cardeal francês da Igreja Católica Romana. Nasceu em 11 de Outubro de 1905. Nomeado Cardeal Secretário de Estado da Santa Sé durante o papado de Paulo VI, em 1969, manteve-se até à morte dele e permaneceu no início da curtíssima era de João Paulo I, apesar da sua substituição se efectivar no dia 29 de setembro de 1978. A morte perene deste último permitiu que se mantivesse em funções durante os primeiros meses do papado de João Paulo II até à sua morte em 9 de março de 1979.
[4] Carta de 2 de Maio de 1975.