Oração
A oração é um fenómeno fundacional. Antes da existência pessoal, os pré-humanos encontravam-se imersos no mundo sem o saber, inconscientes, sem consciência de si mesmos, sem se poderem diferenciar da realidade exterior e dos outros indivíduos da sua espécie. Somente, quando se torna pessoa consciente de si, capaz de se comunicar de modo estruturado e simbólico, é que o ser humano descobre e cria a oração.
A oração descobre-se: não é algo que o ser humano possa criar a seu bel-prazer, quando quer, mas trata-se de uma realidade ou experiência superior que lhe sobrevém, experiência de ter sido chamado e de ter nascido desse chamamento, certeza de se encontrar animado por um mistério que ele não pode controlar, pois o precede, o faz ser e o supera.
A oração, ao mesmo tempo, cria-se como experiência à medida que os seres humanos vão criando, à medida que vão percorrendo, de maneira organizada e surpreendente, em busca de si mesmos, em busca do sentido e da profundidade da sua própria realidade, bem como em busca da sua missão no mundo.[1] Neste sentido, podemos dizer que os seres humanos são a sua própria oração, entendida esta como palavra e experiência primeira de comunicação.
A oração pressupõe que o ser humano não está feito, não se encontra concluído a partir de fora de si mesmo, não está definido por um tipo de lei que, de lá de cima, dita o que ele é e o que faz. O ser humano não está feito: deve fazer-se. Não sabe onde ir: tem de procurar a meta e descobrir o caminho que o levará até lá.
Ora, no imenso caminho do seu ser e do tornar-se humano, o ser humano não está sozinho: pode dialogar e dialoga com o mistério da realidade que nele habita ─ o divino ─ dialogando consigo mesmo e com os outros, em simultâneo.
Esse diálogo pessoal e criador ─ esse protodiálogo ─ constitui um dos elementos principais da vida humana e é o princípio e o conteúdo de qualquer oração, pelo menos da oração cristã.
A oração, vista de fora, poderá dizer-se que se trata duma estratégia, duma astúcia da própria humanidade que se obriga a dialogar consigo mesma, de maneira que toda a oração seria experiência e criação subjectiva do crente que julga que dialoga com Deus e com o divino, quando, na verdade, apenas dialoga consigo mesmo. A oração seria, então, apenas um exercício psicológico de tomada de consciência da realidade [exterior] ou um exercício de interiorização psicológica, mas sem qualquer valor religioso nem abertura para Deus.
Não é fácil optar entre essas duas posturas, uma que poderíamos chamar de racionalista (na oração não há nada de divino) e outra sobrenaturalista (a oração é sinal e manifestação de Deus). Não queremos discuti-las aqui, mas queremos situar-nos num plano prévio, descrevendo e precisando os seus valores. Seja qual for o seu sentido final, a oração foi e continua sendo um grande valor humano, uma experiência radical da nossa história. Assim a estudaremos, invocando os seus tipos e níveis. Introduzindo, e condensando outros trabalhos sobre o tema, distinguimos quatro níveis (natureza, interioridade, história, comunhão inter-humana) que permitem conhecer melhor a experiência orante da humanidade. A partir deles poderemos propor melhor o desafio da oração neste tempo de diálogo e de crise do sistema, no começo do terceiro milénio.
ORAÇÃO NATUREZA
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1. Oração da natureza
(…) A natureza onde nos encontramos, a própria realidade que somos, é um facto prévio, misterioso, sem razões que a justifiquem; de tal forma é assim que nós não a podemos dominar nem explicar, mas apenas descobrirmo-nos imersos nela. (…)
De algum modo, parecemos perdidos dentro dum fluxo de mudanças incessantes do macro e do micro-cosmos, das estrelas e dos átomos. Sentimo-nos como breve instante do grande redemoinho da vida que gira sem cessar, indiferente aos nossos choros e razões. Mas, penetrando num nível de profundidade superior, descobrimos que, na sua raiz, esse mundo é bom, é uma realidade sacra que nos fundamenta: podemos confiar no seu poder, na sua força, descobri-lo e venerá-lo na sua verdade divina, tal como os mitos e os ritos o mostram. (…)
Mitos e ritos constituem a «oração primeira», a forma sob a qual homens e mulheres puderam reconciliar-se com a natureza, no seu sentido mais profundo. (…)
2. Oração da interioridade
As religiões do Oriente (hinduísmo, budismo) costumam chamar-se místicas ou da interioridade, porque, superando o carácter sagrado do cosmos, descobrem e veneram o divino na própria profundidade da vida humana. Para elas, a oração já não é exercício de imersão cósmica (em mito e rito), mas meditação transcendental, quer dizer, imersão na raiz sagrada do próprio ser, superando assim as imagens e as formas do mundo exterior.
Orar é superar o pensamento objectivo e penetrar na profundidade sagrada da nossa vida, permitindo que se desenvolva e se manifeste. Deus não se encontra fora, não está acima (num céu separado), nem tampouco é o mundo. Por isso, não podemos sair para o encontrar, pois ao fazê-lo perdemo-nos e perdemos a nossa base. O divino está dentro de nós: orar é descobri-lo, segundo um diálogo de rotura, passividade e acção. (…)
Buscar é deixar-se encontrar, descobrindo que sou desde o princípio o que sou (quem sou), porque me fazem ser, porque em mim habita a verdade, a luz que ilumina, e a vida que vive em mim. Esta oração de interioridade pode ser entendida como diálogo com o mistério, por outras palavras, como descoberta de que somos transparência do mistério. (…)
Por isso nem sequer posso dizer que tenho um diálogo, pois não tenho com quem dialogar: não existe um “outro” diante de mim, nem deus nem ídolo: em mim só existe a realidade sagrada.
Assim, orar é viver em transparência de intimidade, na linha da meditação transcendental que é um meditar que não medita, pois não conhece nem quer mediações, intermediações ou figuras, mas simplesmente deixa que o divino seja (deixa que ele aconteça, superando todas as representações do mundo, todas as figuras e pessoas da história).
Por isso, o interior da oração está vazio, tal como o Santo dos Santos no templo de Jerusalém: na câmara secreta da minha vida não há nada nem ninguém. Mas, ao mesmo tempo, esse vazio é plenitude que supera todas as possíveis figuras e formas, todos os valores e temores da história. (…)
«Eu vi a opressão, eu ouvi os seus gritos e sofrimentos...» [Êxodo] |
3. Oração da história
O modelo anterior parece arrancar-nos do mundo e das suas lutas, tal como mostra de forma impressionante a Bagavad-Gita, manual de oração hindu: o cavaleiro combate na grande guerra das tribos deste mundo, como a obrigação do seu Estado lhe impõe, mas internamente vive em eterna liberdade, em pura paz, sem desejos nem combates, habitado pelo Grande Senhor divino que se encontra acima de todas as batalhas.
Pois bem, contra isso, a religião israelita começou quando descobriu Deus precisamente na batalha da história: Deus não se encontra fora mas dentro da própria guerra ajudando a combater e a vencer os crentes, para quem a oração pertence ao crescimento consciente da história humana, entendida como tempo de manifestação divina.
No lugar onde antes habitava em nós a interioridade transcendente (sem forma), emerge e fala-nos uma pessoa, o Deus que actua e dialoga connosco, tornando-nos capazes de escutar a sua voz e de lhe responder ao longo do próprio caminho da história. Surge assim uma oração que se introduz na própria natureza não para sacralizá-la (como a oração cósmica), mas para descobrir nela o caminho de Deus e para o percorrer, segundo um processo aberto, até à reconciliação final da humanidade.
Eis os seus momentos fundamentais:
► Chamamento. O que antes era meditação sem objecto (imersão no mistério sem tempo e sem figura) torna-se encontro pessoal, onde se escuta a voz de Deus. Claro que o orante procurará penetrar no seu próprio interior, mas o centro da sua vida já não é o seu esforço humano, nem o vazio divino, mas o Deus pessoal que Se revela, chamando-o à Vida, abrindo-lhe um Caminho, pedindo-lhe uma Resposta. É o que surge nos grandes testemunhos da oração profética: no chamamento de Moisés, de Isaías ou de Jeremias (Ex 3-4; Is 6; Jr 1), no baptismo de Jesus (Mc 1:9-11) ou nas diversas experiências orantes do Profeta (Corão 74:1-7; 93; 94; 96:1-5).
► Caminho. A mesma oração que escuta suscita uma resposta, de maneira que se expressa e se ratifica numa acção pessoal. O orante já não se introduz no silêncio sem palavras, no vazio sem figuras (onde orar é não fazer e permanecer no divino), mas escuta a voz do Deus que o envia para que Lhe cumpra o mandato. Assim, o diálogo religioso torna-se compromisso histórico:[2] com a ajuda de Deus, dentro da guerra do mundo, o orante põe-se ao serviço da paz. Não penetra em si para perder-se em Deus, mas para Lhe escutar a voz e pôr-se em movimento tornando-se profeta ou mensageiro, criador da história, como muito bem souberam [e fizeram] os criadores monoteístas: Moisés, Jesus e Maomé.
► Plenitude escatológica. Sendo palavra de Deus e resposta activa do homem, a oração mostra-se como experiência e fonte de realização histórica. Deus já não se expressa na sacralidade do mundo, nem na simples vida interior, extra-mundana, mas sim na tarefa histórica da comunidade crente e orante que abre a sua utopia de futuro a partir da própria palavra partilhada, acolhida e respondida.
A oração transforma-se, assim, em testemunho de utopia, veículo e fonte de esperança, como exemplarmente mostra o Pai-Nosso: “Venha a nós o vosso reino”. Nessa linha, judeus, cristãos e muçulmanos pedem a Deus a chegada da própria salvação, pedem que se cumpra a Sua vontade na terra, comprometendo-se eles próprios a cumpri-la[3]. (…)
Esta oração da história torna o homem capaz de um diálogo social: introduzindo o homem em si mesmo, ao mesmo tempo que o abre para o divino, que se expressa e actua na história dos homens. O orante introduz-se na profundidade misteriosa de Deus (como fazem, por exemplo, os Salmos da Bíblia), descobrindo nela a presença dos outros com os quais tem de assumir o mesmo caminho. O que poderia parecer existência solitária torna-se consciência solidária, comunicação de consciências: orar é assumir (reassumir) pessoalmente o caminho salvador da história, reviver como própria a libertação do êxodo judaico, aceitar o destino do povo, centralizado em Jesus ou Maomé, e caminhar com os outros (os irmãos) para o futuro da liberdade.
4. Oração comunitária
Seguindo a linha anterior, a oração torna-se em si mesma comunitária, torna-se a prática do encontro sagrado com os outros, no mínimo, com os membros da própria Igreja. A própria oração partilhada fundamenta e delimita um grupo de pessoas que juntas descobrem Deus e que cultivam a Sua presença na oração. Assim se unem entre si ─ em linha de mistério ─ a presença criadora de Deus e o compromisso de acção histórica com a vinculação comunitária.
Os orantes descobrem que não vivem simplesmente no mundo (o carácter mundano é-lhes secundário). Tampouco habitam num interior sagrado (a interioridade individual é derivada e enganosa), nem são mero elo de uma história que os leva para lá da liberdade final, mas querem habitar desde já em dimensão de graça partilhada, em diálogo de pão e palavra. (…)
Assim se vinculam os dois principais traços da confissão cristã: amar a Deus e amar ao próximo (cf. Mc 12:28-34). Eles definem a oração que é diálogo com Deus, sendo diálogo de amor e comunicação inter-humana. Ao unir-se a Deus, o orante relaciona-se com o seu povo, em oração partilhada. Toda a oração é, de alguma forma, comunhão inter-humana. De forma especial, é-o a oração da história formulada pelos cristãos:
► Comunidade exterior, religiões da natureza. O ser humano antigo vivia ao nível de personalidade corporativa, mais do que como pessoa individual: existia apenas vida privada e não oferecimento da oração de cada um aos membros do conjunto. A consciência orante, reflectida pelo mito e actualizada pelo rito, pertencia ao conjunto do clã ou grupo religioso. Não havia um “eu” forte, nem oração pessoal estrita. Por isso, o princípio é a oração comum, a consciência colectiva.
► Comunidade interior, religiões místicas. Elas buscam um tipo de unidade fundada na contemplação de cada um, para além dos poderes cósmicos ou para além dos desejos de cada um. Nesta linha se situam os orantes hindus reunidos em ashram ou os membros da sangha, monges do budismo, que partilham de alguma forma a oração e se constituem numa comunhão de libertos; mas, no fundo, cada um está isolado e deve assumir e realizar a sós o seu caminho. Hindus e budistas puderam suscitar uma tolerância orante, uma compaixão universal que brota da sua condição de seres perdidos no mundo. Mas a essência da sua oração continua sendo individual: não implica uma comunicação no amor mútuo e na palavra partilhada.
► Comunidade comunitária, cristianismo. Somente uma oração fundada na história comum e centrada no encontro pessoal com Deus e com os outros pode apresentar-se verdadeiramente como realidade comunitária. A própria experiência de Deus expressa-se mediante o encontro com os outros, de maneira que a interioridade religiosa (vinculação pessoal ao mistério) traduz-se como interioridade partilhada, amor comunitário. No cristianismo, isto é muito claro quando ele identifica a oração suprema com a eucaristia, a qual é palavra e pão partilhado.
Orar é falar juntos, é falar-se [é dizeres-te], dando a vida uns aos outros e, assim, partilhando-a de modo criativo, gratuito. (…)
Entendida assim, a oração não é algo que se acrescenta à vida (como algo mais, como um momento que se acrescenta aos restantes), mas a forma radical de vida humana, que é experiência de comunicação. (…)
Xabier Pikaza
[14 pp.]