teologia para leigos

9 de janeiro de 2013

ORAÇÃO E LIBERTAÇÃO [BOFF]

Mística e Política:
Contemplativo na Libertação




(…) Creio que nos últimos anos houve uma irrupção vulcânica de Deus no nosso continente latino-americano: Deus privilegiou os pobres como o seu sacramento de auto-comunicação. Nos pobres fez ouvir as suas exigências de solidariedade, de identificação, de justiça e dignidade. E as Igrejas souberam ser obedientes (ob-audire: ser ouvinte) ao apelo de Deus. (…) Esta actuação possui uma nítida dimensão de libertação que nasce como «historificação da fé» que deseja ser adesão ao Senhor presente nos pobres. Lutar com os pobres, fazer corpo com os seus anseios é comungar com o Cristo pobre e viver o seu seguimento.

Esta perspectiva implica ser contemplativo na libertação: contemplativus in liberatione e pressupõe uma nova forma de procurar a santidade e a união mística com Deus. O choque espiritual com a nova manifestação de Deus produziu traços próprios na espiritualidade, tal como ela é vivida e praticada por muitos cristãos comprometidos com a libertação integral dos seus irmãos. (…)

O grande problema que urge esclarecer é como ser contemplativo na libertação; como, nas práticas pastorais e no contacto com o povo pobre, viver um encontro vivo com Deus. (…)


Características principais e desafios desta espiritualidade

Como identificar os traços mais significativos desta contemplação vivida em contexto de libertação?


a)  Oração materializada de [feita da matéria da] acção

A oração libertadora recolhe todo o material da vida comprometida:

as lutas, os esforços colectivos, os erros e as vitórias conquistadas; dão-se acções de graças pelos passos dados;

pede-se, não tanto individualistamente, mas em função de todo um caminhar, pelos que sofrem e pelos que os fazem sofrer;

─ na oração ressoa especialmente a conflitualidade do processo de libertação;

a confissão dos pecados é espontaneamente comunitária; ninguém se esconde por trás de palavras etéreas, mas todos abrem o coração, até pelas razões mais íntimas; é uma oração que reflecte a libertação do coração; sinalizam-se especialmente as incoerências entre o que se professa e o que se vive, a falta de solidariedade e de compromisso.


b)  Oração, expressão da comunidade libertadora

A oração privada tem o seu valor permanente e seguro, mas, nos grupos comprometidos, a oração é essencialmente um partilhar de experiências e práticas iluminadas e criticadas à luz da fé e do Evangelho. A experiência não se limita a uma esplêndida privacidade da alma com o seu Deus, mas ela abre-se ao outro quando esse outro é escutado e quando se comunica com ele. Este conforta aquele, um comenta os problemas do outro, ajudam-se mutuamente nos problemas revelados, não existe «vergonha» sagrada que esconda as visitas e as iluminações divinas. A grande maioria tem alma de livro aberto. Isso já revela o processo de libertação no seio da própria comunidade.


c)   Liturgia como celebração da vida

A liturgia canónica conserva o seu carácter vinculativo e exprime a catolicidade da expressão da nossa fé. Mas, na medida em que as comunidades unem fé e vida, mística e política, inserem cada vez mais na liturgia a celebração da vida partilhada por todos. Neste campo, aflora uma rica criatividade que possui dignidade e sacralidade garantidas pelo sentido apurado que o povo tem do sagrado e do nobre. Aproveitam-se os símbolos significativos do grupo reunido, fazem-se coreografias e, muitas vezes, verdadeiros autos espirituais com expressões corporais próprias do povo.


d)  Oração heterocrítica

A oração libertadora serve muitas vezes de exame crítico das práticas e atitudes dos participantes da comunidade. Sabem criticar-se mutuamente sem melindres e susceptibilidades pessoais. O que importa são os critérios objectivos:[1] o Reino, a libertação, o respeito pelo caminhar do povo. A partir de tais realidades, confrontam-se as práticas dos agentes da pastoral. Há verdadeiras conversões e auxílios que vêm desta sinceridade e lealdade.


e)  Santidade política

A tradição cristã conhece o santo ascético, mestre das suas paixões e fiel observante das leis de Deus e da Igreja. Quase não se conhecem santos políticos e santos militantes. No processo de libertação, criaram-se as condições para um outro tipo de santidade: além de lutar contra as suas próprias paixões (tarefa permanente), luta-se contra os mecanismos da exploração e da destruição da comunidade. Aí emergem virtudes difíceis, mas reais:

solidariedade com os da sua classe,
participação nas decisões comunitárias,
lealdade para com as soluções definidas,
superação do ódio contra as pessoas que são agentes de mecanismos de empobrecimento,
capacidade de ver além dos imediatismos e capacidade de trabalhar por uma sociedade futura que ainda não se vê e da qual talvez não se virá nunca a gozar.


Este novo tipo de ascese possui exigências e renúncias próprias, a fim de manter o coração puro e orientado pelo espírito das bem-aventuranças.


f)    Coragem profética e paciência histórica

Muitos cristãos comprometidos têm a coragem, haurida da fé e da oração, de enfrentar os poderes deste mundo lutando a favor das causas do povo e da sua dignidade pisoteada. Nisso mostram a parrhesia (coragem) apostólica de se arriscarem a sofrer perseguições, prisões, demissões do emprego, torturas e até a eliminação física. Apesar dessa coragem evangélica, têm paciência histórica para com a caminhada lenta do povo, sensibilidade para os seus ritmos, acostumados que estão a sofrer repressões. Têm confiança no povo, no seu valor, na sua capacidade de luta, apesar das suas limitações, equívocos e atraso intelectual. Crêem vivamente na força do Espírito que age nos humildes e sofredores e acreditam na vitória da sua causa e no direito da sua luta. Essa atitude nasce de uma visão contemplativa da história, da qual somente Deus é Senhor.


g)  Atitude pascal

A libertação tem um preço que sempre se paga: a morte e a ressurreição devem ser assumidas com jovialidade e serenidade evangélicas. Sacrifícios, ameaças e situações de martírio real: nada a temer. Tudo isto é assumido como parte do seguimento de Jesus. Existe um forte sentido da Cruz como passo necessário para a vitória. A Ressurreição é vivida como o momento em que a justiça triunfa, em que o povo vence a luta e faz ser vivida mais dignamente a vida. É a Ressurreição de Jesus em marcha como imenso processo de libertação que ganha corpo na história. Isto é celebrado e vivido como força da presença do Espírito no seio da história. (…)

Cada vez mais se criam novas possibilidades objectivas para a emergência dum novo tipo de cristão, cristão profundamente comprometido com a cidade terrestre e, ao mesmo tempo, com a cidade celeste, convicto de que esta depende da forma como nos tivermos engajado na criação daquela.

O céu não é inimigo da terra: começa já na terra. Ambos vivem sob o arco-íris da Graça e do gesto libertador de Deus em Jesus Cristo.

Isto não é mera teologia. É vida e mística de muitos cristãos.

Frei Leonardo Boff, ofm
«Vida segundo o Espírito»
Ed. Vozes, Petrópolis 21983, pp. 172-174.176-182





[1] «Correção fraterna», Act 5:3-4: «Não foi aos homens que tu mentiste, mas a Deus.»