O objetivo do uso da Bíblia na Pastoral:
revelar a presença de Deus na vida
O objectivo do uso que Jesus fazia da Bíblia não era ajudar os outros a entender a Bíblia, mas sim o de ajudá-los a interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Pois, a Bíblia, o Segundo Livro de Deus foi escrito, não para ocupar o lugar da vida, mas para ajudar o povo a entender a vida e descobrir dentro da vida os sinais dos apelos e da presença da Deus.
1º LIVRO: a criação, a natureza, a vida, o mundo, os fatos, a história
O processo da encarnação e do anúncio da Palavra se desdobra em duas grandes etapas. A primeira etapa começou na criação do universo. Ou seja, a Voz da Palavra ressoa em primeiro lugar, na natureza, no universo, na vida, nos fatos, como diz o salmo: “O céu manifesta a glória de Deus, e o firmamento proclama a obra de suas mãos. O dia passa a mensagem para outro dia, a noite a sussurra para a outra noite. Sem fala e sem palavras, sem que a sua voz seja ouvida, a toda a terra chega o seu eco, aos confins do mundo a sua linguagem” (Sl 19,2-5). O primeiro livro de Deus não é a Bíblia, mas sim a natureza, a criação, o mundo, a vida, a história, os acontecimentos. É através deste Livro da Natureza ou da Vida que Deus quer falar connosco.
De que maneira a natureza é o Livro de Deus? Deus criou as coisas falando. Ele disse: “Luz!” E a luz começou a existir (Gn 1,3). Tudo que existe é a expressão de uma palavra divina. Cada ser humano é uma palavra ambulante de Deus (Gn 1,27). As crianças são palavra de Deus para os pais; os pais são palavra de Deus para as crianças. Mas nós já não nos damos conta de que estamos vivendo no meio do livro de Deus e que cada um de nós é uma página viva deste livro divino.
Há algo que nos impede de reconhecer a presença da Palavra na vida, algo que “sufoca a verdade” (Rom 1,18). O que nos impede? Santo Agostinho diz que foi o pecado, esta nossa mania de querer dominar tudo, de tratar a natureza como mercadoria e de achar que somos donos de tudo. Por isso, as letras do Primeiro Livro de Deus atrapalharam-se e a humanidade já não consegue descobrir a fala de Deus no Livro da Vida. Perdemos o olhar da contemplação, nossa capacidade de admirar (cf. Eclo 42,17.22-25; 43,11.27-28). Por isso, surgiu a segunda etapa da encarnação e do anúncio da Palavra de Deus. Nasceu a Bíblia, o Segundo Livro de Deus.
2º LIVRO: a Bíblia
A Bíblia foi escrita, não para substituir o Livro da Vida, mas sim para ajudar-nos a entendê-lo melhor e a descobrir nele os sinais da presença de Deus. O estudo e a leitura orante da Bíblia nos devolvem o olhar da contemplação e nos ajudam a decifrar e a interpretar o mundo, os acontecimentos, a natureza. Fazem com que o Universo se torne novamente uma revelação de Deus, e volte a ser o que deve ser “O Primeiro Livro de Deus” para nós.
Como é que Deus faz isso? Como é que a Bíblia foi escrita? O texto da Bíblia não caiu pronto do céu. Nasceu ao longo dos séculos, fruto da acção do Espírito de Deus e de um demorado processo de busca. Impelido pelo desejo de encontrar Deus, o povo foi descobrindo os sinais da sua presença escondida na vida, na história, na natureza e, dentro dos critérios da sua cultura, transmitia-os para as gerações seguintes. Assim foi nascendo a Tradição Viva do Povo de Deus, transmitida oralmente de geração em geração. No fim, registaram todas as suas descobertas num livro (cf. Ex 17,14). Este livro é a Bíblia.
A Bíblia traz o resultado da leitura que o povo hebreu fez da vida e da natureza para descobrir nelas a fala e os apelos de Deus. Este Segundo Livro de Deus (a Bíblia), assim dizia Santo Agostinho, ajudou o povo a re-descobrir e a entender melhor o Primeiro Livro de Deus (a Vida, a Natureza). A Bíblia é o resultado da Pastoral que se fazia naquela época para ajudar as pessoas a descobrir Deus na vida.
Aqui está o objectivo mais importante de toda a Pastoral que pode ser resumido da seguinte maneira: com a ajuda e a orientação da Bíblia devemos também nós “escrever a nossa Bíblia”, isto é, devemos imitar o povo de Deus e, como eles, devemos também nós tentar ler a nossa realidade, descobrir nela os apelos de Deus e expressá-los e proclamá-los dentro dos critérios da nossa cultura.
Mística: só trabalha com a Palavra
quem se deixa trabalhar pela Palavra
No fim, sobra uma pergunta: Qual foi a mística que sustentava a Jesus na encarnação e no anúncio da palavra e o mantinha na fidelidade, a vida inteira, até a morte, e morte de cruz? O segredo escondido da vida de Jesus era o Pai. Jesus vivia unido a Ele através da oração. É na oração que ele assimilava e encarnava a Palavra em sua vida. A palavra que Jesus anunciava era a experiência que ele mesmo tinha da palavra. Ele dizia: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes, e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, porque assim foi do teu agrado!” (Mt 11,25-26). Jesus experimentava a presença de Deus nesta sua inserção no meio do povo.
Os primeiros cristãos conservaram uma imagem de Jesus orante que vivia em contacto permanente com o Pai. (Jo 4,34). Em vários momentos ele aparece rezando, sobretudo nos momentos decisivos de sua vida. Eis alguns destes momentos. Você pode completar a lista:
* Aos doze anos de idade, lá no Templo, na Casa do Pai (Lc 2,46-50).
* Na hora de ser baptizado e de assumir a missão, ele reza (Lc 3,21).
* Na hora de iniciar a missão, passa 40 dias no deserto (Lc 4,1-2).
* Na hora da tentação, enfrenta o diabo com a Escritura (Lc 4,3-12).
* Na hora de escolher os Doze, passa a noite em oração (Lc 6,12).
* Na hora de começar a falar da sua paixão (Lc 9,18).
* Na alegria diante dos pequenos: “Pai eu te agradeço!” (Lc 10,21).
* Na cura do surdo-mudo, olhou para o céu e gemeu (Mc 7,34).
* Na hora de ressuscitar Lázaro (Jo 11,41-42)
* Participa das romarias ao Templo nas grandes festas (Jo 5,1).
* Participa das celebrações nas sinagogas aos sábados (Lc 4,16)
* Reza antes das refeições (Lc 9,16; 24,30).
* Procura a solidão do deserto para rezar (Mc 1,35; Lc 5,16; 9,18).
* Rezando, desperta vontade de rezar nos discípulos (Lc 11,1).
* Rezou por Pedro para ele não desfalecer na fé (Lc 22,32).
* A pedido das mães dá a bênção às crianças (Mc 10,16).
* Na crise sobe o Monte para rezar e é transfigurado (Lc 9,28).
* Celebra a Ceia Pascal com seus discípulos (Lc 22,7-14).
* Na hora da despedida reza a oração sacerdotal (Jo 17,1-26).
* Indo para o Horto reza salmos com os discípulos (Mt 26,30).
* Na agonia ele reza: "Triste é minha alma" (Mc 14,34; cf Sl 42,5.6).
* Na angústia pede aos três amigos para rezar com ele (Mt 26,38).
* Ao ser pregado na cruz, pede perdão pelo seu carrasco (Lc 23,34).
* Na cruz: "Meu Deus! Por que me abandonaste?" (Mc 15,34; Sl 22,2).
* Na morte: "Em tuas mãos entrego meu espírito!" (Lc 23,46; Sl 31,6).
* Jesus morre soltando o grito do pobre (Mc 15,37).
Oração é luta ('agónica')
Esta lista mostra como Jesus rezava nos momentos importantes da sua vida: na crise e na tentação, na escolha dos apóstolos e na decisão de ir para Jerusalém, na agonia do Horto e na hora de morrer na cruz, na alegria e na tristeza. Sua vida era uma oração permanente: "Eu a cada momento faço o que Pai me mostra para fazer!" (Jo 5,19.30). A ele se aplica o que diz o Salmo: "Eu (sou) oração!" (Sl 109,4).
Carlos Mesters e Francisco Orofino
I CONGRESSO BRASILEIRO DE ANIMAÇÃO BÍBLICA DA PASTORAL
Goiânia, 8 a 11 de Outubro de 2011
Francisco Orofino, Carlos Mesters