teologia para leigos

10 de fevereiro de 2011

CIDADANIA, SAÚDE DEMOCRÁTICA E BEM-ESTAR

DO ESTADO SOCIAL

O cidadão não praticante

por Sandra Monteiro

Memória, prática, finalidade. A cidadania faz-se da conjugação destas três dimensões. Nas noites eleitorais e nos dias que se lhes seguem, vai sendo comum que os valores elevados da abstenção suscitem comentários preocupados, senão indignados, com o alheamento demonstrado pelos cidadãos num momento em lhes era pedido que usufruíssem de um direito fundador das democracias, exprimindo através do voto o sentido da sua escolha. As eleições presidenciais de 23 de Janeiro último não foram excepção, tanto mais que a abstenção chegou aos 53,37%, sendo a maior de sempre em eleições presidenciais ou legislativas.
Nesses dias descobre-se, mais uma vez, que um número crescente de cidadãos, se tivesse chegado às urnas, teria votado sozinho; que não se sentiria acompanhado pela memória, ou pela presença física, de todos os homens e mulheres que antes dele deram o melhor de si, e até a vida, para pôr fim a décadas (e séculos) de regimes não democráticos. Mas o que foi feito a seguir para tornar a memória e a história parte fundamental da identidade dos cidadãos?

Nesses dias descobre-se também que o cidadão atomizado, que só se identifica com o seu presente, mais facilmente faltará à chamada… desse mesmo presente. Preguiça e desinteresse são invocados para explicar a inacção de quem não entendeu que, em dia de eleições, o exercício do voto é de facto exercício − do que faz músculo cidadão. Mas o que é feito a seguir para que essa prática faça parte da ginástica quotidiana de que depende a saúde das democracias?

Nesses dias descobre-se, por último, que o cidadão com fraca memória e fraca prática de democracia tem mais tendência para não participar nas escolhas em que se joga o nosso futuro colectivo, como se lhe fosse indiferente que na sociedade vingassem projectos tão distintos quanto, por exemplo, o que defende que o contrato de base da democracia tem como finalidade o bem comum e por isso exige um Estado social assente na prestação de serviços públicos universais e de qualidade e, por outro lado, o que defende um Estado mínimo e assistencialista, por ser o que melhor assegura a interesses privados todas as formas de predação dos recursos públicos. Mas o que é feito a seguir para fortalecer em cada um a impressão de que as suas escolhas importam e têm consequências na definição de finalidades partilhadas, ainda por cima quando, sejam mais ou menos vencedores nas urnas, os projectos e as políticas que se instalam são mais orientados para a criação de clientes, passivos e isolados, do que de cidadãos, sujeitos de acção colectiva?

A abstenção é um sintoma de uma doença que começou muito antes dos dias em que se fala nela, mesmo que por sua vez actue sobre a doença, agravando-a. Quando se repara no problema da abstenção já é tarde e a discussão torna-se bastante estéril. Porque o acto de ficar em casa e não votar é apenas uma pequena parte de um imenso empreendimento, central ao projecto do neoliberalismo, que consiste em construir cidadãos não praticantes. O objectivo deste empreendimento não é sequer, como a abstenção poderia fazer crer, criar um vazio de acção. É retirar a acção da esfera da cidadania e encaminhá-la para campos em que ela vá favorecer os interesses e lucros privados que, por estarem em contradição com a prossecução do bem comum, precisam, em democracia, do consentimento participante de cidadãos não participantes.
Na fase austeritária da democracia em que nos encontramos, isso é visível, por exemplo, nos dispositivos habilmente montados para tornar as famílias dependentes do crédito, mesmo para os bens de consumo mais essenciais. Com isso consegue-se assegurar os tremendos lucros dos bancos, mascarar as responsabilidades políticas pela situação e ainda amortecer na opinião púbica soluções que exigem que se enfrente o sistema financeiro e se abandone essa posição de refém-raptor que tem sido, neste sequestro colectivo que continua impune, a dos governos europeus.
As raízes desta armadilha programada são, contudo, identificáveis muito antes da eclosão desta crise. Dela fazem parte décadas de culto ao individualismo, como racionalidade suprema na gestão da vida, ou de culto à juventude, com a correlativa desvalorização dos mais velhos. As consequências existenciais deste processo podem demorar a sentir-se, mas os seus efeitos na corrosão do princípio da solidariedade intergeracional são já reconhecíveis em muitos discursos, propostas e práticas relacionados com o mundo do trabalho e com a segurança social.

No período em que agora entramos, vamos ser confrontados com os frutos desta armadilha do cidadão não participante. Os neoliberais esperam colher agora os resultados do martelamento muito ideológico que têm vindo a fazer, com apoio da generalidade dos meios de comunicação social, sobre a natureza pretensamente ineficiente e insustentável dos serviços públicos, a que se oporiam um mercado naturalmente eficiente e uma iniciativa privada sempre bem sucedida e até mais barata para todos.

Le Monde Diplomatique, edição em português, nº 52, Fev. 2011, p.19.