teologia para leigos

14 de fevereiro de 2011

CONTRA O ESTADO SOCIAL, NARRATIVA NEOLIBERAL

Estar presente

nos serviços públicos:

- protestando

-exigindo

-participando

No período em que agora entramos, vamos ser confrontados com os frutos desta armadilha do «cidadão não participante». Os neoliberais esperam colher agora os resultados do martelamento muito ideológico que têm vindo a fazer, com apoio da generalidade dos meios de comunicação social, sobre a natureza pretensamente ineficiente e insustentável dos serviços públicos, a que se oporiam um mercado naturalmente eficiente e uma iniciativa privada sempre bem sucedida e até mais barata para todos.

O facto de ser hoje claro para muito mais pessoas que esta narrativa é uma ficção, tão perigosa quanto habilmente fabricada, não impede que cada vez que um cidadão a tomou como verdadeira e se retirou dos serviços públicos para os privados se tenha contribuído para fragilizar a sua defesa comum (o mesmo acontecendo, diga-se, cada vez que um cidadão, consciente da dimensão e gravidade do ataque em curso, calou a sua crítica a problemas que observou nesses serviços). Um cidadão praticante ocupa o espaço público, utiliza os serviços públicos; critica para os defender e propõe para exigir mais rigor, qualidade e atenção às finalidades sociais. Um cidadão não participante não está presente nesses espaços; a partir daí os serviços, os seus servidores e seus beneficiários tornam-se esse «outro» que se ignora ou até se hostiliza.

Os que agora atacam o Estado social e os serviços públicos contam com a hipótese de estes frutos tóxicos estarem maduros, mesmo que saibam que não o estarão de forma homogénea em todos os sectores para onde gostariam de deslocar a sua predação (ou aprofundá-la). Na educação, por exemplo, recentemente sofreram até um revés, quando o governo decidiu, e muito bem, pôr um travão nos apoios ao ensino particular, quando este era financiado pelo público através de contratos de associação em locais servidos pela escola pública. Mas no sector da saúde continuam a proliferar modalidades de gestão e prestação de cuidados de saúde que asseguram lucros enormes a grupos privados, sem que eles sejam postos em causa. Seria mais do que tempo para se reflectir, por exemplo, nas vantagens de uma oferta pública de serviços como os meios auxiliares de diagnóstico, por comparação com os gastos que o sector público tem com a sua comparticipação quando são prestados pelo privado. Não se descobriria que, tal como no caso das escolas particulares, é nestas ofertas aos privados que está grande parte do «despesismo» público?

Estes interesses que hoje clamam pelo «emagrecimento» do Estado social têm uma janela estreita para actuar. Com a crise a aprofundar-se, os cidadãos não participantes com cuja cumplicidade eles estão a contar tenderão a reaparecer nos serviços públicos, porque os seus orçamentos deixam de lhes permitir pagar colégios privados, consultórios médicos ou automóvel particular. O mais certo é que se tenha ido a tempo de os hospitais, as escolas e os transportes públicos a que hoje muitos regressam continuarem a oferecer serviços de qualidade. Mas em que patamar estaríamos já como sociedade se uma presença cidadã, exigente e crítica, nunca tivesse deixado de ocupar esses serviços? A crise vai trazer igualmente deslocações de cidadãos que sairão do público, nos serviços já mais pressionados pela liberalização. Os estudantes que agora abandonam o ensino superior público, por falta de apoios sociais ou por incapacidade de pagar as actuais propinas, são uma trágica mas anunciada prova de como foi e é importante defender um ensino superior público universal e gratuito, em vez do que hoje existe e que já perdeu, na década antes da crise, um terço dos seus alunos mais pobres.

A melhor forma de criar músculo cidadão, que é o que pode levar o sangue dos recursos comuns aos sítios onde ele é necessário, é aprofundar a Memória dos direitos que nos melhoraram como civilização, ter hoje uma Prática que defenda os pilares do Estado social e nunca perder de vista os processos democráticos de aferição das finalidades que perseguimos. Isso faz-se nos dias das eleições e nos outros dias todos. Participando. É que, em rigor, o cidadão não participante é uma ilusão. Não existe. Só continuam a chamar-lhe cidadão para ele não descobrir que é um mundo antigo que estão a reconstruir em seu redor. Revoltar-se-ia?

Sandra Monteiro

Le Monde Diplomatique, edição em português, nº 52, Fev. 2011, p.19. [o sub-título original, no jornal citado, é APENAS «Estar presente nos serviços públicos»... - trata-se de um acrescento da responsabilidade do editor do blog]