teologia para leigos

2 de abril de 2015

PRECARIADO E SUICÍDIO GLOBALIZADO [G.STANDING]

O movimento anti-imperial de Jesus







As leituras demasiado impregnadas de teologia institucional transformaram Jesus num profeta que se limitara a chamar à conversão ou a fazer exortações acerca do amor ao próximo e do amor ao inimigo, em suma, a "dar a outra face". Parece, inclusivamente, que Jesus teria afirmado que pobres sempre os haveríamos de ter entre nós, que se deveria pagar o imposto ao império romano e que nunca se deveria misturar religião com política.

A verdade é que Jesus tem um projecto integral para o seu povo, ancorado nas tradições proféticas mais radicais do seu povo, cuja matriz se revela na primeira confederação de tribos conhecida como "Reinado de Yahvé". É por isso que Jesus designará o seu projecto como "Reino de Deus". Trata-se de um projecto revolucionário que implica uma economia de solidariedade baseada no «dom» ou «partilha», o que pressupõe uma política na qual o poder funciona como «serviço» e assenta em relações sociais fraternas.

Para isso, Jesus organiza um movimento que retoma as melhores tradições dos movimentos proféticos e apocalípticos da história do povo de Israel. Deste movimento vão fazer parte homens e mulheres que pertencem aos sectores sociais sujeitos à dominação e à marginalização. Jesus organiza-o no norte da Palestina − na Galileia – e, rapidamente, sobe a Jerusalém, a fim de enfrentar os poderes opressores hegemónicos. É aí, então, que se dá a sua morte, um verdadeiro assassinato político cometido pelo Império Romano, cuja dominação, naquela região, se via ameaçada pela pregação e pela prática propostas por Jesus. À sua morte, segue-se a dispersão de tal movimento, mas rapidamente ele se organiza, dando início a uma outra história.

Recorrendo aos métodos os mais variados acerca das fontes que nos falam da prática e do projecto de Jesus, este livro – "El movimiento antiimperial de Jesús – Jesús en los conflitos de su tiempo" [Set. 2004, por Rubén Dri] – desenterra e põe a nu o enfrentamento do projecto de Jesus com o Império Romano, sobre o qual as narrativas evangélicas tendem a ‘deitar água na fervura’, ao mesmo tempo que fazem com que a culpa pela morte de Jesus caia exclusivamente sobre as autoridades do povo judeu.

Rubén Dri é professor e investigador na Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (Argentina).

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manif. 15 Set. 2012 - Av. Aliados / Porto




PORQUE É QUE
O PRECARIADO ESTÁ A CRESCER

Para compreender porque é que o precariado está a crescer é necessário compreender a natureza da Transformação Global. A era da globalização (1975-2008) foi um período em que a economia se «des-conectou» da sociedade, ao mesmo tempo que financeiros e economistas neoliberais procuravam criar uma economia de mercado global baseada na competitividade e no individualismo.

O precariado cresceu devido às políticas e mudanças institucionais verificadas nesse período. No início, o empenho numa economia de mercado, aberta, levou a uma pressão competitiva sobre os países industrializados por parte dos novos países industrializados (NIC – new industrialized countries, na terminologia inglesa) e da «Chindia» com a sua oferta inesgotável de mão-de-obra barata. O compromisso com princípios de mercado levou inexoravelmente a um sistema de produção global de empresas em rede e a práticas laborais flexíveis.

O objetivo do crescimento económico – tornando-nos a todos mais ricos, dizia-se – foi usado para justificar a inversão do uso da política fiscal como instrumento de redistribuição progressiva. Os impostos diretos elevados, durante muito tempo utilizados para reduzir as desigualdades e para proporcionar segurança económica a pessoas de baixos rendimentos, foram apresentados como desincentivos a trabalhar, a poupar e a investir e também indutores do desvio do investimento e da criação de empregos para o capital estrangeiro; e para uma reorientação da proteção social que, ao passar de uma política de solidariedade social para uma política que consistia em lidar com a pobreza e com as pessoas (considerando a ambas como fracassos sociais), inaugurou uma tendência para o sistema de introdução de uma «condição de recurso» na assistência social, e daí para um sistema de prestações sociais sujeitas ao cumprimento de requisitos, nomeadamente a obrigatoriedade de frequência de ações de formação e a prestação de trabalho considerado de interesse social e não-pago ou pago a baixo salário (sistema esse designado na terminologia anglo-saxónica por work-fare, em oposição ao welfare do Estado Social ou Estado Providência).

Pode resumir-se um aspeto central da globalização numa palavra intimidatória: «mercantilização». Significa tratar tudo como uma mercadoria, a ser comprada e vendida, sujeita às forças de mercado, com os preços estabelecidos pela lei da procura e da oferta, sem «agência» eficaz (sem uma capacidade de resistir). A mercantilização foi alargada a todos os aspetos da vida – a família, o sistema de educação, a empresa, a invalidez, as comunidades profissionais e a política.

No caminho trilhado em busca da eficiência do mercado, foram desmanteladas as barreiras à mercantilização. Um dos princípios neoliberais consistia em considerar que era necessário estabelecer regulamentações que impedissem os interesses coletivos de constituírem barreiras à concorrência. A era da globalização não foi uma era da desregulamentação, mas sim uma era da rerregulamentação, na qual foi introduzido um maior número de regulamentações do que em qualquer outro período da História. Nos mercados de trabalho do mundo, a maior parte da nova regulamentação foi diretiva, dizendo às pessoas o que podiam e o que não podiam fazer, e o que tinham que fazer para poder ser beneficiárias da política do Estado.

O ataque a instituições coletivas abrangia as empresas como instituições sociais, os sindicatos como representantes dos trabalhadores, as ordens e associações profissionais como corporações de ofícios e profissões, a educação como uma força para a libertação relativamente ao interesse pessoal egoísta e ao espírito mercantil excessivamente centrado nos lucros, a família como uma instituição de reciprocidade e de reprodução social e o funcionalismo público como uma estrutura guiada por uma ética de serviço público.

Esta combinação estilhaçou os esquemas de emprego e criou uma fragmentação de classes, tornada mais acentuada pela servicialização do trabalho e do emprego associada a um declínio na produção industrial e a uma deriva para os serviços. Este capítulo analisa este quadro, não exaustivamente mas com suficiente detalhe para entender porque é que o precariado se está a tornar numa classe global.


A transformação global

Desde os anos 70 do século XX que a economia mundial se tornou uma economia integrada, na medida em que a evolução de uma parte do mundo afeta quase instantaneamente o que acontece noutras partes do mundo. Na década de 1970, os movimentos numa bolsa de valores só eram acompanhados por movimentos idênticos noutras bolsas numa minoria de casos; hoje, estes movimentos estão inter-relacionados e vão geralmente no mesmo sentido. Na década de 1970, o comércio era uma pequena parte do rendimento nacional em muitos países e ocorria principalmente no caso dos produtos complementares; hoje envolve bens e serviços que fluem em todas as direções, sendo uma parte crescente desse fluxo composto apenas por frações constituintes de bens e serviços, transaccionando-se muitas delas no interior das próprias redes multinacionais, de forma a produzir o bem ou o serviço final. Os custos de trabalho relativos associados a esses movimentos tornaram-se uma parte muito mais importante no processo que envolve as transações comerciais a nível mundial do que eram antes.

O capital e o emprego a ele associado estão a fluir dos países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE) para as economias de mercado emergentes. E isso vai continuar a acontecer. O capital por pessoa na China, Índia, Indonésia e Tailândia é 3% do capital por pessoa nos Estados Unidos. A produção nessas economias vai aumentar durante muitos anos, simplesmente através da construção de mais máquinas e infra-estruturas. Entretanto, os países industrializados estão a tornar-se economias rentistas, em que os salários médios reais não vão aumentar nem ser um meio de reduzir as desigualdades.

As economias emergentes vão continuar a ser um fator primordial para o crescimento do precariado. Não se verificará a inversão deste aspeto da globalização. Para aqueles que se preocupam com a desigualdade e a insegurança económica nos países ricos de hoje, é uma loucura imaginar que recuar para o protecionismo seja uma resposta eficaz ao choque financeiro de 2008 e à crise económica subsequente. Lamentavelmente, porém, como veremos, a maneira como os governos reagiram à crise apenas intensificou as inseguranças e desigualdades que sustentaram a própria crise.


O surgimento da «Chindia»

A globalização marcou o surgimento daquilo a que podemos chamar a «Chindia», que alterou profundamente a vida social e económica em todo o lado. A combinação de China e Índia não é totalmente acertada, pois são países com culturas e estruturas diferentes. No entanto, para aquilo que nos propomos analisar, a «Chindia» é uma metáfora curta e conveniente.

Antes da globalização, os mercados de trabalho das economias abertas ao comércio e ao investimento tinham cerca de mil milhões de trabalhadores e pessoas à procura de emprego (R. Freeman, 2005[1]). No ano 2000, a força de trabalho destes países tinha aumentado para mil milhões e quinhentos mil trabalhadores. Entretanto, a China, a Índia e os países do ex-bloco soviético tinham entrado na economia global, somando mais mil milhões e quinhentos mil trabalhadores a este número. Assim, a oferta de trabalho nas economias globalizadas triplicou. Os recém-chegados vieram com pouco capital e com salários muito baixos, alterando a relação capital-trabalho no mundo e enfraquecendo a capacidade de negociação dos trabalhadores fora da «Chindia». Desde 2000, outros países emergentes aumentaram a oferta, incluindo o Vietname, a Indonésia, o Camboja e a Tailândia, com o Bangladesh e outros a entrar em cena. Tornou-se popular um novo termo, «China mais um» («China plus one»), o que implica que as multinacionais vão proteger a sua estratégia tendo instalações pelo menos num outro país para além da China. O Vietname, com 86 milhões de habitantes, é um dos principais candidatos, uma vez que os salários reais se mantiveram constantes durante duas décadas. Em 2010, um trabalhador têxtil do Vietname ganhava 100 dólares americanos por mês, o que corresponde a uma minúscula fração dos salários praticados nos Estados Unidos ou na Alemanha, por exemplo.

Simbolizando a velocidade da mudança, há 40 anos o Japão era a segunda maior economia do mundo, atrás dos Estados Unidos, e, em 2005, em termos de dólares, o produto interno bruto (PIB) da China era ainda metade do PIB japonês. Em 2010, a China ultrapassou o Japão e aproximou-se dos Estados Unidos. A Índia está a aproximar-se, crescendo prodigiosamente todos os anos.

O crescimento da China tem sido liderado por investimentos estatais, nomeadamente em infra-estruturas, e pelo investimento direto estrangeiro. As multinacionais apressam-se, utilizando delegações por toda a China. Enfiaram centenas de milhares de trabalhadores em parques industriais construídos à pressa, alojando-os em dormitórios, forçando-os a trabalhar tão intensivamente que a maioria deles se vai embora ao fim de três anos. Podem passar a imagem de um proletariado industrial, mas são tratados como uma força de trabalho itinerante e descartável. A pressão para aumentar os salários cresceu, mas estes são tão baixos que vão permanecer durante muito tempo uma pequena fração dos salários praticados nos países ricos industrializados, o mesmo acontecendo com os custos unitários de trabalho, especialmente porque a produtividade está a aumentar drasticamente.

A China tem contribuído para a desigualdade do rendimento mundial de várias maneiras. Os seus salários baixos exercem pressão sobre os salários do resto do mundo e aumentam as diferenças salariais. A China manteve os seus próprios salários extremamente baixos. À medida que o crescimento aumentou, a parte dos salários no rendimento nacional baixou durante 22 anos consecutivos, passando de um índice já baixo de 57% do PIB, em 1983, para apenas 37%, em 2005. O que faz com que a China seja a grande economia mais «capitalista» da História.

A Foxconn, a maior empresa de fabrico por subcontrato no mundo, é o perfeito exemplo da convivência das multinacionais com os abusos praticados nos parques industriais que surgiram na China. Uma subsidiária da Hon Hai Precision Industry Company, de Taiwan, emprega 900 mil pessoas na China. Metade dessas pessoas estão a viver e a trabalhar na Foxconn City, em Shenshen, com os seus edifícios de quinze andares, cada um dedicado a um cliente, como a Apple, a Dell, a HP, a Nintendo e a Sony. A Foxconn City expandiu-se através de uma estratégia de contratação de migrantes rurais para áreas urbanas, com salários lamentavelmente baixos, esperando manter uma rotatividade de 30 a 40% por ano, à medida que grupos sucessivos de trabalhadores vão ficando completamente exaustos.

Os seus acordos de trabalho ajudaram a aumentar o precariado global. Os baixos salários e a intensidade de trabalho (incluindo 36 horas extras por mês), que, tardiamente, chamaram a atenção do mundo devido a uma onda de suicídios e tentativas de suicídio em 2009 e 2010, forçaram as empresas doutros lugares a cortar salários e optar por trabalho flexível para tentarem ser competitivas.

Esses suicídios tiveram um efeito. Após o surgimento de publicidade adversa e de greves não oficiais, a Foxconn aumentou os salários. Mas um dos resultados desse aumento foi cortar com o alojamento e a alimentação gratuitos, bem como cortar nas extensas instalações recreativas. A reacção imediata da Foxconn para com os suicídios foi paternalista. Cercaram os edifícios com redes para apanhar as pessoas se estas saltassem, contratarem conselheiros para os trabalhadores angustiados, trouxeram monges budistas para os acalmar e pensaram em pedir aos trabalhadores para assinarem documentos de compromisso em como não iriam suicidar-se. Celebridades de Silicon Valley, na Califórnia, expressaram a sua preocupação. Mas não tinham razões para estarem surpreendidas. Tinham ganho milhares de milhões de dólares com os produtos a custo ridiculamente baixo.

A Foxconn é uma metáfora para a globalização. Vai mudar o seu modelo, aumentar os salários nas suas áreas principais, cortando benefícios dados pela empresa, deslocando mais produção para zonas de menor custo, e passará a contratar trabalhadores cada vez mais precários. O grande motor do outsourcing vai ele próprio recorrer a outsourcing. No entanto, a Foxconn e o modelo de desenvolvimento chinês aceleraram mudanças no resto do mundo no sentido de uma estrutura em que o precariado se tornará o centro das atenções.

Guy Standing
«O precariado – a nova classe perigosa», Editorial Presença, p. 59-64. ISBN 978-972-23-5301-4







[1] What Really Ails Europe (and America): The Doubling of the Global Workforce

How are workers from emerging markets changing the global economy?
Richard Freeman