O movimento anti-imperial de Jesus
As
leituras demasiado impregnadas de teologia institucional transformaram Jesus
num profeta que se limitara a chamar à conversão ou a fazer exortações acerca
do amor ao próximo e do amor ao inimigo, em suma, a "dar a outra
face". Parece, inclusivamente, que Jesus teria
afirmado que pobres sempre os haveríamos de ter entre nós, que se deveria pagar
o imposto ao império romano e que nunca se deveria misturar religião com
política.
A
verdade é que Jesus tem um projecto integral para o seu povo, ancorado nas tradições
proféticas mais radicais do seu povo, cuja matriz se revela na primeira
confederação de tribos conhecida como "Reinado de Yahvé". É por isso
que Jesus designará o seu projecto como "Reino de Deus". Trata-se de
um projecto revolucionário que implica uma economia de solidariedade baseada no
«dom» ou «partilha», o que pressupõe uma política na qual o poder funciona como
«serviço» e assenta em relações sociais fraternas.
Para
isso, Jesus organiza um movimento que retoma as melhores tradições dos movimentos
proféticos e apocalípticos da história do povo de Israel. Deste movimento vão
fazer parte homens e mulheres que pertencem aos sectores sociais sujeitos à
dominação e à marginalização. Jesus organiza-o no norte da Palestina − na
Galileia – e, rapidamente, sobe a Jerusalém, a fim de enfrentar os poderes
opressores hegemónicos. É aí, então, que se dá a sua morte,
um verdadeiro assassinato político cometido pelo Império Romano,
cuja dominação, naquela região, se via ameaçada pela pregação e pela prática propostas
por Jesus. À sua morte, segue-se a dispersão de tal movimento, mas rapidamente
ele se organiza, dando início a uma outra história.
Recorrendo
aos métodos os mais variados acerca das fontes que nos falam da prática e do
projecto de Jesus, este livro – "El movimiento antiimperial de Jesús – Jesús
en los conflitos de su tiempo" [Set.
2004, por Rubén Dri]
– desenterra e põe a nu o enfrentamento do projecto de Jesus com o Império
Romano, sobre o qual as narrativas evangélicas tendem a ‘deitar água na
fervura’, ao mesmo tempo que fazem com que a culpa pela morte de Jesus caia
exclusivamente sobre as autoridades do povo judeu.
Rubén Dri é professor e
investigador na Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade de Buenos Aires (Argentina).
[CLICAR]
manif. 15 Set. 2012 - Av. Aliados / Porto |
PORQUE É QUE
O PRECARIADO ESTÁ A
CRESCER
Para
compreender porque é que o precariado está a crescer é necessário compreender a
natureza da Transformação
Global. A era da globalização (1975-2008) foi um período em que a
economia se «des-conectou» da
sociedade, ao mesmo tempo que financeiros e economistas neoliberais procuravam
criar uma
economia de mercado global baseada na competitividade e no individualismo.
O
precariado cresceu devido às políticas e mudanças institucionais verificadas
nesse período. No início, o empenho numa economia de mercado, aberta, levou a uma pressão
competitiva sobre os países industrializados por parte dos novos
países industrializados (NIC – new
industrialized countries, na terminologia inglesa) e da «Chindia»
com a sua oferta inesgotável de mão-de-obra barata. O compromisso com princípios de mercado levou
inexoravelmente a um sistema de produção global de empresas em rede
e a práticas laborais flexíveis.
O
objetivo do crescimento económico – tornando-nos a todos mais ricos, dizia-se –
foi usado para justificar a inversão do uso da política fiscal como instrumento
de redistribuição progressiva. Os impostos diretos elevados, durante muito tempo
utilizados para reduzir as desigualdades e para proporcionar segurança
económica a pessoas de baixos rendimentos, foram apresentados
como desincentivos a trabalhar, a poupar e a investir e também indutores do
desvio do investimento e da criação de empregos para o capital estrangeiro; e
para uma reorientação
da proteção social que, ao passar de uma política de
solidariedade social para uma política que consistia em lidar com a pobreza e
com as pessoas (considerando a ambas como fracassos sociais), inaugurou uma
tendência para o sistema de introdução de uma «condição de recurso» na
assistência social, e daí para um sistema de prestações sociais sujeitas ao cumprimento
de requisitos, nomeadamente a obrigatoriedade
de frequência de ações de formação e a prestação
de trabalho considerado de interesse social e não-pago ou pago a
baixo salário (sistema esse designado na terminologia anglo-saxónica por work-fare, em oposição ao welfare
do Estado Social ou Estado Providência).
Pode
resumir-se um aspeto central da globalização numa palavra intimidatória: «mercantilização».
Significa tratar tudo como uma mercadoria, a ser comprada e vendida, sujeita às
forças de mercado, com os preços estabelecidos pela lei da procura e da oferta,
sem «agência» eficaz (sem uma capacidade de resistir). A mercantilização foi
alargada a todos os aspetos da vida – a família, o sistema de educação, a empresa,
a invalidez, as comunidades profissionais e a política.
No
caminho trilhado em busca da eficiência do mercado, foram desmanteladas as
barreiras à mercantilização. Um dos princípios neoliberais consistia em
considerar que era necessário estabelecer regulamentações que impedissem os
interesses coletivos de constituírem barreiras à concorrência. A era da
globalização não foi uma era da desregulamentação, mas sim uma
era da rerregulamentação, na qual foi introduzido um maior número de
regulamentações do que em qualquer outro período da História. Nos
mercados de trabalho do mundo, a maior parte da nova regulamentação foi
diretiva, dizendo às pessoas o que podiam e o que não podiam fazer, e o que
tinham que fazer para poder ser beneficiárias da política do Estado.
O
ataque a instituições coletivas
abrangia as empresas como instituições sociais, os sindicatos como representantes
dos trabalhadores, as ordens e associações profissionais como
corporações de ofícios e profissões, a educação como uma força para a libertação relativamente
ao interesse pessoal egoísta e ao espírito mercantil excessivamente centrado nos
lucros, a família
como uma instituição de reciprocidade e de reprodução social e o funcionalismo
público como uma estrutura guiada por uma ética de serviço público.
Esta
combinação estilhaçou os esquemas de
emprego e criou uma fragmentação de
classes, tornada mais acentuada pela servicialização do trabalho e do
emprego associada a um declínio na produção industrial e a uma deriva para os
serviços. Este capítulo analisa este quadro, não exaustivamente mas com
suficiente detalhe para entender porque é que o precariado se está a tornar
numa classe global.
A transformação global
Desde
os anos 70 do século XX que a economia mundial se tornou uma economia
integrada, na medida em que a evolução de uma parte do mundo afeta quase instantaneamente o que
acontece noutras partes do mundo. Na década de 1970, os movimentos
numa bolsa de valores só eram acompanhados por movimentos idênticos noutras
bolsas numa minoria de casos; hoje, estes movimentos estão inter-relacionados e
vão geralmente no mesmo sentido. Na década de 1970, o comércio era uma pequena
parte do rendimento nacional em muitos países e ocorria principalmente no caso
dos produtos complementares; hoje envolve bens e serviços que fluem em todas as
direções, sendo uma parte crescente desse fluxo composto apenas por frações
constituintes de bens e serviços, transaccionando-se muitas delas no interior
das próprias redes multinacionais, de forma a produzir o bem ou o serviço
final. Os custos de trabalho relativos associados a esses movimentos
tornaram-se uma parte muito mais importante no processo que envolve as
transações comerciais a nível mundial do que eram antes.
O
capital e o emprego a ele associado estão a fluir dos países da Organização
para a Cooperação e Desenvolvimento Económicos (OCDE) para as economias de mercado
emergentes. E isso vai continuar a acontecer. O
capital por pessoa na China, Índia, Indonésia e Tailândia é 3% do capital por
pessoa nos Estados Unidos. A produção nessas economias vai aumentar
durante muitos anos, simplesmente através da construção de mais máquinas e
infra-estruturas. Entretanto, os países industrializados estão a tornar-se economias
rentistas, em que os salários médios reais não vão aumentar nem ser
um meio de reduzir as desigualdades.
As
economias emergentes vão continuar a ser um fator primordial para o crescimento
do precariado. Não se verificará a inversão deste aspeto da globalização. Para
aqueles que se preocupam com a desigualdade e a insegurança económica nos
países ricos de hoje, é uma loucura imaginar que recuar para o protecionismo seja uma resposta eficaz
ao choque financeiro de 2008 e à crise económica subsequente. Lamentavelmente,
porém, como veremos, a maneira como os governos reagiram à crise apenas
intensificou as inseguranças e desigualdades que sustentaram a própria crise.
O surgimento da «Chindia»
A
globalização marcou o surgimento daquilo a que podemos chamar a «Chindia», que alterou
profundamente a vida social e económica em todo o lado. A combinação
de China e Índia não é totalmente acertada, pois são países com culturas e
estruturas diferentes. No entanto, para aquilo que nos propomos analisar, a
«Chindia» é uma metáfora curta e conveniente.
Antes
da globalização, os mercados de trabalho das economias abertas ao comércio e ao
investimento tinham cerca de mil milhões de trabalhadores e pessoas à procura
de emprego (R.
Freeman, 2005[1]). No ano
2000, a força de trabalho destes países tinha aumentado para mil milhões e quinhentos
mil trabalhadores. Entretanto, a China, a Índia e os países do ex-bloco soviético
tinham entrado na economia global, somando mais mil milhões e quinhentos mil
trabalhadores a este número. Assim, a oferta de trabalho nas economias
globalizadas triplicou. Os recém-chegados vieram com pouco capital e com
salários muito baixos, alterando a relação capital-trabalho no mundo e
enfraquecendo a capacidade de negociação dos trabalhadores fora da «Chindia».
Desde 2000, outros países emergentes aumentaram a oferta, incluindo o Vietname,
a Indonésia, o Camboja e a Tailândia, com o Bangladesh e outros a entrar em
cena. Tornou-se popular um novo termo, «China mais um» («China plus one»), o que implica
que as multinacionais vão proteger a sua estratégia tendo instalações pelo
menos num outro país para além da China. O Vietname, com 86 milhões de
habitantes, é um dos principais candidatos, uma vez que os salários reais se
mantiveram constantes durante duas décadas. Em 2010, um trabalhador têxtil do
Vietname ganhava 100 dólares americanos por mês, o que corresponde a uma
minúscula fração dos salários praticados nos Estados Unidos ou na Alemanha, por
exemplo.
Simbolizando
a velocidade da mudança, há 40 anos o
Japão era a segunda maior economia do mundo, atrás dos Estados Unidos,
e, em 2005, em termos de dólares, o produto interno bruto (PIB) da China era
ainda metade do PIB japonês. Em 2010, a China ultrapassou o Japão e
aproximou-se dos Estados Unidos. A Índia está a aproximar-se, crescendo
prodigiosamente todos os anos.
O
crescimento da China tem sido liderado por investimentos estatais, nomeadamente
em infra-estruturas, e pelo investimento direto estrangeiro. As multinacionais
apressam-se, utilizando delegações por toda a China. Enfiaram centenas de milhares de
trabalhadores em parques industriais construídos à pressa, alojando-os em dormitórios,
forçando-os a trabalhar tão intensivamente que a maioria deles se vai embora ao
fim de três anos. Podem passar a imagem de um proletariado industrial, mas são
tratados como uma força de trabalho itinerante e descartável. A pressão para
aumentar os salários cresceu, mas estes são tão baixos que vão permanecer
durante muito tempo uma pequena fração dos salários praticados nos países ricos
industrializados, o mesmo acontecendo com os custos unitários de trabalho,
especialmente porque a produtividade está a aumentar drasticamente.
A
China tem contribuído para a desigualdade do rendimento mundial de várias
maneiras. Os seus salários baixos exercem pressão sobre os salários do resto do
mundo e aumentam as diferenças salariais. A China manteve os seus próprios
salários extremamente baixos. À medida que o crescimento aumentou, a parte dos
salários no rendimento nacional baixou durante 22 anos consecutivos,
passando de um índice já baixo de 57% do PIB, em 1983, para apenas 37%, em 2005.
O que faz com que a China seja a grande economia mais
«capitalista» da História.
A
Foxconn,
a maior empresa de fabrico por subcontrato no mundo, é o perfeito exemplo da
convivência das multinacionais com os abusos praticados nos parques industriais
que surgiram na China. Uma subsidiária da Hon Hai Precision Industry Company, de Taiwan,
emprega 900 mil pessoas na China. Metade dessas pessoas estão a viver e a trabalhar na Foxconn City,
em Shenshen, com os seus edifícios
de quinze andares, cada um dedicado a um cliente, como a Apple, a Dell, a
HP, a Nintendo e a Sony. A Foxconn City expandiu-se através de uma
estratégia de contratação de migrantes rurais para áreas urbanas, com salários
lamentavelmente baixos, esperando manter uma rotatividade de 30 a 40% por ano,
à medida que grupos sucessivos de trabalhadores vão ficando completamente
exaustos.
Os
seus acordos de trabalho ajudaram a aumentar o precariado global. Os baixos
salários e a intensidade de trabalho (incluindo 36 horas extras por mês), que,
tardiamente, chamaram a atenção do mundo devido a uma
onda de suicídios e tentativas de suicídio em 2009 e 2010, forçaram
as empresas doutros lugares a cortar salários e optar por trabalho flexível
para tentarem ser competitivas.
Esses
suicídios tiveram um efeito. Após o surgimento de publicidade adversa e de
greves não oficiais, a Foxconn aumentou os salários. Mas um dos resultados
desse aumento foi cortar com o alojamento e a alimentação gratuitos, bem como
cortar nas extensas instalações recreativas. A reacção imediata da Foxconn para
com os suicídios foi paternalista. Cercaram os edifícios com redes para
apanhar as pessoas se estas saltassem, contratarem conselheiros
para os trabalhadores angustiados, trouxeram monges budistas para os acalmar
e pensaram em pedir aos trabalhadores para assinarem documentos de compromisso
em como não iriam suicidar-se. Celebridades de Silicon Valley, na Califórnia, expressaram
a sua preocupação. Mas não tinham
razões para estarem surpreendidas. Tinham ganho milhares de milhões de dólares
com os produtos a custo ridiculamente baixo.
A
Foxconn é uma metáfora para a globalização. Vai mudar o seu modelo, aumentar os
salários nas suas áreas principais, cortando benefícios dados pela empresa,
deslocando mais produção para zonas de menor custo, e passará a contratar
trabalhadores cada vez mais precários. O grande motor do outsourcing vai ele próprio
recorrer a outsourcing.
No entanto, a
Foxconn e o modelo de desenvolvimento chinês aceleraram mudanças no resto do
mundo no sentido de uma estrutura em que o precariado se tornará o
centro das atenções.
Guy
Standing
«O
precariado – a nova classe perigosa», Editorial Presença, p. 59-64. ISBN
978-972-23-5301-4
[1] What Really Ails Europe (and America): The Doubling of the Global Workforce
How are workers from
emerging markets changing the global economy?