teologia para leigos

25 de abril de 2015

«ACORDAI» ABRIL... PRECÁRIOS [M. LOFF]

A quem (não) interessa o 25 de Abril?
Público, 25/04/2015

Não admira que estremeçam quando se lhes canta a Grândola. Ou que se assustem quando alguém, com música de Lopes Graça, grita “Acordai!” numa cerimónia pública.








Serve de alguma coisa os portugueses comemorarem, em anos como os que vivemos, a Revolução e a Liberdade? Ou que os italianos, hoje mesmo, comemorem 70 anos da Libertação de Itália do fascismo e da ocupação nazi? Ou que os franceses façam festas de rua cada 14 de Julho para comemorar a sua Revolução? Ou, já agora, que os arménios reivindiquem estes dias, pela centésima vez, o reconhecimento do genocídio perpetrado pelos turcos?

Servem os feriados cívicos para alguma coisa mais além de propiciar descanso aos cidadãos? Ou serão eles irrelevantes, inscritos e desinscritos no calendário ao gosto do regime de turno, que convoca sessões solenes, desfiles militares e finge que defende os valores que eles encarnam, ou, pelo contrário, que decreta o seu fim e, com ele, o fim da vigência dos seus valores. Foi o que fez o ex-ministro Álvaro-chamem-me-Álvaro, que acabou com a República e com a Restauração da Independência, num dos gestos mais coerentes deste Governo.

A lengalenga que por aí nos vendem é a de que devíamos esvaziar de conteúdo “político” todas estas datas. A direita, que não poderá nunca partilhar o significado do 25 de Abril (uma mudança pela via da rutura e não pela da negociação entre elites; construir a democracia em rejeição de uma ditadura classista, do colonialismo e de uma guerra perdida que se combateu em nome de valores que a direita ainda hoje partilha), até já propôs uma solução para este seu problema. Cavaco, que, enquanto primeiro-ministro, adotou sempre uma propaganda que renegava do 25 de Abril como uma “tentativa totalitária comunista”, veio dizer há um ano que a data não “devia servir de arma de arremesso na luta política”. E há onze anos o Governo de Durão quis descafeinar o 25 de Abril, dizendo que ele não teria aberto caminho a uma revolução mas sim a uma evolução, uma forma de o enterrar definitivamente como um acontecimento sem o qual a história teria sido a mesma. [1]

É certo que vivemos neste presentismo arrogante que sustenta a treta anti-histórica de que, para resolver os problemas do presente, o conhecimento (a consciência?) do passado é praticamente irrelevante. Os pragmáticos de cada geração fingem estar convencidos de que todos os problemas do presente são diferentes dos do passado, o que lhes permite apresentar como novas soluções que são velhas e gastas – e que, claro, não teriam apoio significativo se se consolidasse um mínimo de consciência pública sobre as consequências que elas provocaram no passado. Os liberais austeritários de 2015 percebem bem do que estou a falar: saber mais de 1929 ajudaria a que 2008 não tivesse acontecido. Como saber que a ascensão de Hitler ao poder, com o apoio da mesma direita que praticava a austeridade de 1929-33 que lhe abriu as portas do poder, ajudaria a perceber o papel que hoje desempenham as direitas extremas e as que se dizem democráticas, partilhando o poder, como há 80 anos, sem grandes problemas de convivência.

É provável que uma grande parte dos portugueses ache que, além do dia de descanso, já não serve de nada comemorar o 25 de Abril – uns porque, percebendo o pouco que resta da herança da Revolução nas suas vidas, entendem que deixou de valer a pena; outros porque desprezam simplesmente os rituais cívicos, que lhes parecem uma velharia (mas depois festejam empenhadamente um S. Valentim ou um Halloween, por exemplo...). Coisas dessas dou de barato.






Quem me faz sorrir é os que se fazem passar por arautos do senso comum, desvalorizando um 25 de Abril que “já não interessa a ninguém...”. Nestes casos, não é que o 25 de Abril nem “interesse nada” a quem tal diz: o que ele produz é incómodo, o que é bem diferente. É o caso de David Justino, um ex-ministro do PSD, presidente do Conselho Nacional de Educação e assessor de Cavaco na Presidência da República, que criticava quem andava nas manifestações contra este Governo e o seu padrinho presidencial “à procura de sinais no tempo de hoje idênticos ao do tempo de pré-revolução de 1974” (PÚBLICO, 6.12.2013), isto é, que encontrava no presente opressivo de hoje muito do que havia no passado sob a ditadura. É o caso de Fátima Bonifácio, que garante saber de boa fonte que “o fascismo nada diz [a toda uma geração de jovens] e o antifascismo ainda menos” (PÚBLICO, 27.3.2013), e, portanto, para quê falar dele? Sim, para quê esta insistência no 25 de Abril de “muito falar de fome, de Salazar (...), da revolta... enfim[, do] costume como se não tivessem passado 40 anos”?, pergunta Helena Matos, que sintetiza as leis da nossa democracia como textos inúteis “precedid[os] de magníficas peças introdutórias onde, após se desenhar um mundo de trevas herdado do passado, se traça o luminoso resultado que todo aquele articulado [legal] vai produzir no imediato”. Para ela, veja-se bem, o 25 de Abril, afinal, teria criado “um país de papel (...) até que chegou 2011 e a crise amarrotou o país de papel. (...) Quatro décadas depois, o país das promessas no papel começou a esboroar-se” (Observador, 19.4.2015). Mais do que simplesmente a enésima versão da famosa tirada de Passos de que “a crise é uma oportunidade” – neste caso para, de uma vez por todas, construirmos um futuro descontaminado de 25 de Abril –, o que é extraordinário nesta alucinante reinvenção da história é reduzir-se a papel e promessas as liberdades e os direitos constitucionais (e os direitos sociais incluídos, ao trabalho, à saúde, à educação, à segurança no desemprego e na velhice), o fim da guerra, a paz e o reconhecimento do direito à autodeterminação das colónias, o salário mínimo, a igualdade entre homens e mulheres, a emancipação das minorias religiosas, étnicas, de orientação sexual, o aumento da escolaridade obrigatória e das legítimas expectativas de vida dos portugueses que as nunca tinham podido concretizar... Tudo papel, tudo irrealista, tudo herança de um 25 de Abril que já não interessa a ninguéme, por favor, deixemos de falar dele de uma vez por todas!

Não admira que estremeçam quando se lhes canta a Grândola. Ou que se assustem quando alguém, com música de Lopes Graça, grita “Acordai!” numa cerimónia pública. Não admira que, como Cavaco (sempre ele...), nos peçam consenso, que não desfaçamos o que eles fizeram – isto é, que queiramos refazer o caminho da democracia que nos garantem ser “de papel”. Aquela onde “o povo é quem mais ordena”.


[1] Discuto estas questões no livro Ditaduras e Revolução. Democracia e Políticas da Memória (Almedina, 2014), que coordenei com Filipe Piedade e Luciana Castro Soutelo.

FONTE:


Idosos portugueses são dos mais pobres da Europa
[Vídeo-SIC]