teologia para leigos

31 de março de 2015

PRECARIADO: NOVA AGENDA POLÍTICA [G. STANDING]

e agora, perante a realidade do «precariado»,
Que Fazer? E como?


«Hoje, governantes de direita, social-liberais da esquerda moderna, analistas do espaço mediático, todos se sentem desorientados porque o paradigma que lhes explicava o funcionamento de um "mundo plano" – o seu GPS neoliberaljá não funciona. (…) Mergulhados numa espiral depressiva, precisamos, mais do que nunca, de políticas e de actores políticos inspirados por uma visão do desenvolvimento que seja sustentável nos planos institucional, económico, social e ambiental. Mais concretamente, precisamos de uma alternativa política transformadora que, rompendo com paradigmas do passado, abra uma janela de esperança para o País.»

Jorge Bateira, OPS! Revista de Opinião Socialista (Editorial, p. 5), 03 Março de 2009.



Uma dupla estratégia:
economias orientadas a partir de baixo para a satisfação das necessidades públicas,
e associadas a regulação política.

[…] «Em Jesus o rotundo ‘Não!’ está associado a um ‘Sim!’ igualmente inequívoco: o Reino de Deus já começou entre vós [Lc 17,21]. Ele começa em pequenas comunidades messiânicas, que Jesus designa por sal, luz e fermento [Mt 5,13ss e 13,33]. Estas alternativas-em-ponto-pequeno surgem, precisamente, em estruturas económicas alternativas, ao ponto de, nelas, deixar de haver pobres [Act 2,4ss e 4,32ss]. Seja lá em que contexto tudo isto possa surgir, o certo é que, a novidade pode surgir a partir de baixo.

«Esta perspectiva remete - e esta é a primeira dimensão da estratégia - para um elemento comum a muitos projectos alternativos ao sistema económico actual: a irrupção de espaços económicos locais associados a mercados locais orientados para a satisfação das necessidades, que sejam ecologicamente sustentáveis e que requeiram muita mão-de-obra (U. Duchrow, «Alternativen zur kapitalistischen Weltwirtschaft. Biblische Erinnerung und politische Ansätze zur Überwindung einer lebensdrohenden Ökonomie» [Güterloh 1994] 66ss; trad. deste título do livro: "Alternativas à economia global capitalista. Retrospectiva bíblica e abordagens políticas para a superação de uma economia que ameaça a vida"). Este ponto de vista exige descentralização do fornecimento de energia através de formas de energia renováveis (energia solar, eólica, hidráulica, energia de biomassa) e o desenvolvimento da agricultura ecológica, preferencialmente sob a forma de cooperativas de produtores e de consumidores. Porém, é decisivo o controlo sobre os próprios recursos financeiros, quer seja sob a forma de cooperativas de crédito quer seja por via de um tipo de dinheiro local. Igualmente, os círculos de permuta podem ser uma forma de cortar, localmente, a ligação aos mecanismos do mercado mundial. Numa palavra: nesta primeira fase da estratégia, importa o auto-abastecimento o mais amplo possível das regiões.

«Claro que estas alternativas, que, vistas a médio prazo, são um sinal em pequena escala, devem lutar por conquistar um nível político que lhes dê corpo e que, ao mesmo tempo, atenue – mediante a regulação – os efeitos devastadores do mercado mundial. É aqui que entram todas as propostas que Keynes elaborou com vistas à regulação política nacional e internacional. Porém, sem o acoplamento dessa regulação a uma forte economia eco-social de carácter local e regional, o mecanismo do Capital, por um lado, manterá a sua dominação, e, por outro, não será possível fortalecer, a partir de baixo, a vontade política de impor as opções políticas. É aqui que o modelo bíblico da crítica profética ao mercado e o modelo das regulações jurídicas revelam o seu sentido e o seu vigor. Em termos práticos, esta orientação significa, para as Igrejas e para a teologia de hoje, que, no seio da sociedade civil, elas têm de participar em alianças e começar a edificar um poder alternativo que se oponha ao curso das coisas tal como elas estão. Mantendo em conjunto a rejeição do modelo [através duma forte regulação política anticapitalista nacional e internacional] e as alternativas conseguidas a nível local, realiza-se a segunda parte da dupla estratégia; sem esquecer a esperança focada no Reino de Deus.»

Ulrich Duchrow, «El Cristianismo en el contexto de los mercados capitalistas globalizados», Concilium 270, Abril 1997, pp. 69-70.



«E, porém, parecemos incapazes de conceber alternativas.»

Tony Judt (1948-2010) «Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos», Edições 70, 2010, ISBN 978-972-44-1632-8.








UMA POLÍTICA DE PARAÍSO



Está na hora de rever a grande trindade — Liberdade, Fraternidade e Igualdade —, desenvolvendo uma agenda progressista a partir da perspetiva do precariado. Um bom começo seria um renascimento da liberdade republicana, da capacidade de agir em conjunto, de uma forma concertada. A liberdade é algo que se revela na ação coletiva. (…)

Para o precariado, o trabalhismo do século XX é pouco atraente. Para a época, o projeto social-democrata foi progressista; mas, com a Terceira Via, chegou a um beco sem saída. Os políticos sociais-democratas temiam mencionar a desigualdade, e temiam ainda mais enfrentá-la; aceitam a falta de segurança de emprego e o trabalho flexível e desprezam a liberdade, ao promover o Estado panóptico[1]. Perderam a credibilidade perante o precariado quando se descreveram a si próprios como «classe média» e tornaram a vida dos não-conformistas cada vez mais difícil e insegura. Está na hora de seguir em frente por outro caminho.

É necessária uma nova política de Paraíso que seja moderadamente utópica e que sinta orgulho em sê-lo. Estamos no momento adequado, uma vez que nos primeiros anos de cada século parece ser habitual surgir uma nova visão progressista. Existiram os românticos radicais do início do século XIX, exigindo novas liberdades, e surgiu uma onda de pensamento progressista no início do século XX, exigindo liberdade para o proletariado industrial. Já é tarde, mas o descrédito do trabalhismo, lado a lado com a falência moral do modelo neoliberal da globalização, representa um momento de esperança para um igualitarismo emancipador orientado para o precariado. (…)

O precariado enfrenta uma insegurança sistemática. Dividir o precariado num precariado «bom» e num precariado «mau» é simplificar demais. No entanto, há quem, no precariado, queira enfrentar as inseguranças com políticas e instituições destinadas a redistribuir a segurança e a oferecer oportunidades para que todos possam desenvolver os seus talentos. Estes, provavelmente jovens na sua maioria, não olham para trás com simpatia e ingenuidade, em busca do tipo de segurança do emprego trabalhista da era pré-globalização.

O precariado «mau», pelo contrário, é alimentado pela nostalgia de uma imaginada Idade de Ouro. Está revoltado e sente-se indignado ao ver os governos a salvar bancos e banqueiros, a dar subsídios às elites favorecidas[2] e à classe dos empregados de colarinho branco com contratos estáveis (salariat), e a permitir que a desigualdade cresça à sua custa. É atraído pelo populismo neofascista, critica os governos e diaboliza os que parecem ser favorecidos pelo Estado. A menos que as aspirações do precariado «bom» sejam tidas em conta, muitos serão arrastados para os círculos do precariado «mau». Se isso acontecer, a sociedade estará ameaçada. E é isso que está a acontecer.

A necessidade mais importante do precariado é a segurança económica, que lhe pode dar algum controlo sobre as suas perspetivas de vida e que lhe pode dar a perceção de que os choques e os riscos a que esteja sujeito podem ser geridos. Isto só pode ser alcançado se a segurança dos rendimentos for garantida. No entanto, os grupos vulneráveis também precisam de «agency», ou seja, [de um organismo], de ter capacidade individual e coletiva para representar os seus interesses. O precariado tem de forjar uma estratégia que tenha em conta este duplo imperativo. (…)

O resgate da educação

A mercantilização da educação deve ser combatida por todos aqueles que estão a se empurrados para o precariado. O espectro das universidades sem professores, assentes em técnicas panópticas, deve ser banido por uma regulamentação democrática e transparente, envolvendo as associações profissionais, e por leis que especifiquem que o ensino superior, bem como outros níveis de ensino, não deve ser um sistema de ensino «sem professor».

A determinação dos conteúdos deve ser devolvida aos profissionais – professores e académicos −, enquanto os «clientes», os estudantes, devem ter uma voz no que respeita à definição da estrutura e dos objetivos da educação. E ao precariado deve dar-se a possibilidade de aceder, numa base contínua, a uma educação libertadora e não a estar sujeito simplesmente a uma preparação de capital humano. Isto não é ser idealista ou ingénuo. É claro que os alunos não sabem o que é melhor para eles. Nenhum de nós sabe. O que é necessário é um sistema de governação que equilibre as forças que moldam o processo. Atualmente, os promotores da mercantilização têm o controlo total. E isso é assustador.

É preciso haver uma inversão do emburrecimento inerente à escolarização do «capital humano». Nos Estados Unidos, os especialistas falam de uma perda da capacidade de ler e de uma «massificação» da síndrome de défice de atenção. Os Estados Unidos não são o único caso onde isso se verifica. Deve voltar a dar-se a primazia à educação libertadora, considerada importante em si mesma; e os que promovem a mercantilização da educação devem ser energicamente combatidos. Não podemos afastá-los por completo, mas deve ser institucionalmente alcançado um equilíbrio que seja favorável à educação libertadora.

Aqueles que querem que as universidades sirvam o empreendedorismo e os negócios e que promovam uma perspetiva de mercado deveriam prestar atenção aos grandes inteletuais do passado. Como dizia o filósofo Alfred North Whitehead, «a universidade é justificada pelo facto de preservar a ligação entre o conhecimento e o entusiasmo da vida, unindo o jovem e o velho no gosto imaginativo de aprender».

Anteriormente, John Stuart Mill, ao falar sobre a sua nomeação para reitor da Universidade de Saint Andrew’s, em 1867, declarou que «as universidades não têm como função ensinar os conhecimentos necessários para preparar os homens para um modo específico de ganhar o seu sustento. O seu objetivo não é formar advogados, médicos ou engenheiros competentes, mas sim seres humanos capazes e cultos». A rejeição comercial deste princípio é algo que o precariado deve ridicularizar e combater. Os filisteus têm de ser travados.

Há ainda uma outra questão mais pragmática. Uma resposta parcial à crescente frustração de estatuto entre os jovens que têm habilitações formalmente superiores às necessárias para os empregos disponíveis seria tornar os títulos académicos em «bens de lazer» (leisure goods) – em vez de os encarar como bens de investimento. As pessoas poderiam ser encorajadas a obter os seus graus académicos durante um prazo mais longo, facilitando as licenças sabáticas a mais pessoas durante o decurso da sua vida adulta e não dando tanta importância a ir directamente da escola secundária para a universidade.

O precariado pode sonhar com uma espécie de «universitização» da vida, um mundo no qual se aprende de forma seletiva e ampla em todos os momentos. Para isso, tem de ter um sentimento de maior controlo sobre o tempo e ter acesso a uma esfera pública que aperfeiçoe o sistema educativo no sentido de um processo deliberativo lento.



Estar ocupado e não apenas trabalhar

«A ideia de que todo o trabalho (labour) é bom por si mesmo tornou-se um dogma do credo da moralidade moderna – uma crença conveniente para aqueles que vivem do trabalho (labour) dos outros.»

William Morris (19885), Useful Work versus Useless Toil


A noção de ocupação (work) deve ser libertada da sua ligação com a noção de emprego (job) e de trabalho (labour). Todas as formas de ocupação (work) devem ser tratadas com igual respeito e não deve, de forma alguma, presumir-se que alguém que não esteja empregado ou a trabalhar a troco de uma remuneração não está a desenvolver um trabalho útil ou que alguém que, num determinado momento, não esteja a trabalhar é um parasita ocioso. Não é a ociosidade que prejudica a sociedade. As pessoas verdadeiramente ociosas ou preguiçosas podem prejudicar-se, se desperdiçam a sua vida. Mas custa muito mais à sociedade controlar e punir essa pequena minoria do que o que ela ganha em forçá-los a ter um qualquer trabalho ou emprego de baixa produtividade. Além disso, a existência de um pouco de ócio não seria mau. Como é possível sabermos se a aparente ociosidade de uma pessoa não é o seu momento de descanso ou de contemplação? Porque é que sentimos a necessidade de presumir e condenar? Algumas das maiores mentes da História tiveram períodos de ociosidade; e qualquer pessoa que tenha lido o ensaio de Bertrand Russelll In Praise of Idleness (Elogio ao Ócio) deveria ter vergonha de exigir aos outros um trabalho (labour) frenético.

Não se deve perder o sentido das proporções. O trabalho (labour) é necessário; os empregos são necessários. Só que não são tudo na vida nem são a finalidade da vida. Outras formas de ocupação (work) e de uso do tempo são igualmente importantes.

John Maynard Keynes, o maior economista do século XX, previu que, por esta altura, as pessoas nas sociedades ricas não estariam mais de 15 horas por semana nos seus empregos. Antes dele, Karl Marx previu que, uma vez que o nível de produtividade permitisse à sociedade servir as suas necessidades materiais, passaríamos a gastar o nosso tempo a desenvolver as nossas capacidades humanas. No final do século XIX, William Morris, no seu News from Nowhere (Notícias de Lugar Nenhum), previu um futuro em que as pessoas não estariam sujeitas a stresse e em que se ocupavam com aquilo que lhes interessava e que as entusiasmava, onde se inspiravam para respeitar e reproduzir a natureza e prosperavam em associação com os seus vizinhos. Nenhum deles previu a necessidade insaciável de consumo e de crescimento interminável definida por um sistema de mercado que transforma tudo em mercadoria.

Chegou a hora de afirmar que empurrar todas as pessoas para aceitar empregos é a resposta à pergunta errada. Devemos encontrar maneiras de darmos a todos nós a possibilidade de ter mais tempo para as ocupações (works) que não são trabalho (labour) e para o lazer (leisure) que não é entretenimento (play). A não ser que insistamos num conceito mais rico de ocupação (work), vamos continuar a ser levados pela loucura de medir o valor de uma pessoa pelo emprego que ela tem e pela tolice de que a criação de emprego é o sinal de uma economia bem-sucedida.

O precariado tem mais a ganhar. Tem uma quantidade desproporcional de ocupações (works) que não são trabalho (labour) e é forçado a ter muita ocupação (work) que não é nem produtiva nem agradável. Temos que criar melhores estatísticas que revelem a quantidade de ocupação (work) existente, de acordo com o sentido que lhe damos nesta obra. Se o fizermos, poderemos, então, troçar daqueles que afirmam ou deduzem que qualquer indivíduo que não esteja a ocupar um «emprego» identificável é um preguiçoso ou um parasita do sistema. Vamos começar pelas estatísticas sobre o tempo que o precariado gasta em lidar com burocratas estatais e com outros intermediários.


A mercantilização total do trabalho

Ao contrário do que diz a declaração trabalhista «O trabalho (labour) não é uma mercadoria», o trabalho (labour) deveria ser completamente mercantilizado. Em vez de se empurrarem as pessoas para os empregos, ao mesmo tempo que lhes reduzem os salários e que reduzem o salário dos outros trabalhadores – que são afetados pela pressão que elas, deste modo, exercem −, as pessoas deviam ser atraídas para esses empregos por incentivos apropriados. Se há empregos disponíveis, como se diz, e se ninguém os aceita, então faça-se o preço (salário) subir até atingir o valor que, simultaneamente, a pessoa que oferece o emprego ache que esse emprego vale e que ela está disposta a pagar e que seja suficientemente atraente para que as pessoas o aceitem. Deixemos os governos aplicar ao mercado de trabalho as mesmas regras que pretendem aplicar noutros mercados. Para se conseguir realizar uma mercantilização adequada, o preço deve ser transparente e totalmente pago em dinheiro. Isso significa a eliminação gradual dessas imaginosas remunerações complementares em espécie dadas pelas empresas e a sua conversão em benefícios que podem ser comprados por opção de mercado. O respeito pelos princípios da solidariedade social pode ser tratado separadamente. Os benefícios não-monetários, que são, na realidade, remunerações, são uma importante fonte de desigualdade e são contrários aos mercados de trabalho eficientes. O precariado não tem qualquer hipótese de os obter. Eles vão para a classe dos empregados de colarinho branco (salariat) e para um cada vez menor núcleo central de trabalhadores considerados essenciais. Para incentivar a mercantilização, estes benefícios devem ser tributados a uma taxa maior do que as remunerações em dinheiro; hoje em dia, estas remunerações complementares em espécie são, muitas vezes, um meio de evasão fiscal. E os sistemas de pagamento devem ser tornados transparentes ao serem associados à aplicação de competências, esforço e tempo. É relevante que haja estudos que mostram que os trabalhadores ficam mais satisfeitos se lhes for pago um determinado valor por hora de trabalho, que é o método mais transparente de todos.

A mercantilização adequada tem de ser feita de uma forma progressiva. Considere-se, por exemplo, a prática clássica de licença de maternidade paga, a partir da perspectiva da equidade social e da posição do precariado. Se uma mulher é uma empregada de colarinho branco, com contrato efetivo, pode receber o salário e o subsídio de maternidade por parte do empregador, sendo a maior parte do salário paga pelo governo. No Reino Unido, as mulheres recebem, por lei, um subsídio de maternidade que pode ir até às 39 semanas e têm uma licença paga que pode ir até um ano. Existe também uma licença de paternidade de duas semanas; e cada um dos pais pode pedir dias de dispensa sem vencimento até a criança atingir os cinco anos. Tendo em conta que os empregadores são compensados pelo Estado pela maior parte do custo da maternidade e da paternidade pagas, trata-se de um benefício regressivo, que favorece os empregados efetivos relativamente ao precariado. Mesmo que esse benefício seja atraente para um trabalhista, quantos trabalhadores com baixa remuneração é que estão em posição de o receber? Só em 2009 é que a Comissão para a Igualdade dos Direitos Humanos no Reino Unido propôs a diminuição do tempo de emprego suficiente para ter direito a esse benefício. Mas muitas mulheres que fazem parte do precariado estão desempregadas durante parte da sua gravidez. Por estarem grávidas têm menos probabilidades de conseguir um novo emprego e, portanto, não terão acesso aos benefícios da licença de maternidade. O precariado deve ter os mesmos direitos que todos os outros. A universalidade dos direitos é importante.

Isto leva à seguinte exigência: os empregos devem ser tratados como instrumentais, como uma transação comercial correta. Aos que defende que o emprego é a principal fonte de felicidade e que as pessoas que mostram relutância em participar nas delícias proporcionadas pelos empregos devem ser coagidas a fazê-lo para serem felizes durante muito tempo, deve-lhes ser dito para se meterem na sua vida. Para a maioria do precariado, os empregos não são o caminho para o nirvana. Dizer que são a fonte de felicidade é fazer dos empregos algo que eles nunca pretenderam ser. Nunca foi para isso que foram criados. Os empregos são criados porque alguém quer que uma determinada coisa seja feita. Ou, pelo menos, é para isso que eles devem ser criados. Deixemo-los ser devidamente mercantilizados. Se esta é a regra de uma economia de mercado livre, então que se aplique a todas as mercadorias.


Liberdade profissional

O precariado quer desenvolver um sentido de profissão, sobrepondo formas de ocupação (work) e de trabalho (labour), de modo a facilitar o desenvolvimento, a satisfação e o sentido de realização pessoais. As exigências do trabalho (labour) e dos empregos estão a aumentar, assim como muitas formas valiosas de ocupação (work) estão a ser feitas em circunstâncias subótimas e stressantes; por isso, o tempo de entretenimento (play) está a fazer encolher o tempo de lazer (leisure). Um dos ativos importantes da sociedade servicializada é o tempo.

Em vez de tratarmos os empregos como instrumentais, é-nos dito para os tratarmos como o aspeto mais importante da nossa vida. (…)

Guy Standing, prof. na School of Oriental and African Studies (Universidade de Londres, UK).





[1] Expressão ligada a Jeremy Bentham (séc. XVIII). «Bentham deu a esta ideia uma direção assustadora, num projeto para uma prisão ideal. Um guarda que via tudo estaria colocado numa torre central a observar os prisioneiros encerrados nas suas celas, situadas num edifício circular. O guarda podia vê-los, mas eles não o podiam ver. O poder do guarda residia no facto de os prisioneiros não poderem saber se estavam ou não a ser observados e, desse modo, com medo, atuarem como se ele os estivesse a observar. Bentham usou a expressão «uma arquitetura de escolha» para dizer que as autoridades podiam induzir os prisioneiros a comportarem-se da maneira desejada.
O fundamental para Bentham residia no facto de, aparentemente, ser dado o poder de escolha ao prisioneiro. Mas, se ele não fizesse a escolha certa, que era trabalhar arduamente, seria deixado a «definhar, a comer pão duro e a beber a sua água, sem uma alma com quem falar». E os prisioneiros deveriam estar isolados para impedir que formassem «uma concertação de vontades». Ele percebeu, tal como os neoliberais iriam perceber mais tarde, que a existência de uma ação coletiva colocaria em risco o projeto panóptico.
Foi uma ideia que Michel Foucauld abordou nos anos 70 do século XX como uma metáfora para produzir «corpos dóceis». Bentham acreditava que a sua conceção panóptica poderia ser usada em hospitais, hospícios, escolas, fábricas, casas de correção e em todas as instituições sociais. Esta conceção foi adotada em todo o mundo amplificada inadvertidamente pelas cidades empresariais do século XXI. O pior caso até agora verificado é o de Shenzhen, onde seis milhões de trabalhadores são observados através de câmaras em circuito fechado de televisão (CCTV) em todo o lado, para onde quer que se desloquem, e onde uma base de dados detalhada monitoriza o seu comportamento e caráter, inspirada em tecnologia desenvolvida pelo exército norte-americano.» (pp. 236-237 deste livro)