«A "Dissertion
on the Poor Laws" [século
XVIII] de Townsend, dez anos mais tarde, centrava-se no teorema das
cabras e dos cães. O cenário é a ilha de Robinson Crusoe no oceano Pacífico,
ao largo da costa do Chile. Nessa ilha, Juan Fernandez desembarcou algumas
cabras que lhe forneceriam carne, se lhe acontecesse tornar a visitar a ilha no
futuro. As cabras multiplicaram-se com uma fertilidade bíblica,
transformando-se numa reserva alimentar vantajosa para os corsários, sobretudo
ingleses, que assediavam os navios mercantes espanhóis. Para combater as
cabras, as autoridades espanholas desembarcaram na ilha um cão e uma cadela
que, também eles, se multiplicaram profusamente, fazendo diminuir o número das
cabras, alimento dos cães. «Restabeleceu-se então uma nova forma de
equilíbrio», escrevia Townsend. «Os animais mais fracos de ambas as espécies foram os
primeiros a pagar a sua dívida à natureza; os mais activos e
vigorosos preservaram a sua vida». E acrescentava: «É a quantidade de alimento que regula o
número da espécie humana».(…)
No entanto, nem a
teoria da selecção natural de Darwin [1809-1882] nem as leis da população de Malthus
[1766-1834] teriam podido exercer uma influência notável sobre a sociedade
moderna se não fizessem suas as máximas que Townsend deduziu das cabras e cães
do seu exemplo e que quis aplicar a propósito da reforma da Lei dos Pobres:
«A fome
amansará os animais mais ferozes, ensinará honestidade e civilidade, obediência
e sujeição, aos mais perversos. Em geral, só a fome pode tocá-los e
aguilhoá-los [aos pobres] fazendo-os
trabalhar, e contudo, as nossas leis disseram que eles nunca
deveriam ter fome. Reconheçamos que as leis diziam também que seriam obrigados
a trabalhar. Mas acontece que a coerção da lei é acompanhada de agitação,
violência e alarido; gera a má vontade e nunca logra produzir um serviço bom e
conveniente – ao
passo que a fome é não só um meio de pressão pacífico, silencioso e constante,
como suscita também - sendo o motivo mais natural de entre os que
impelem à diligência e ao trabalho - os esforços mais vigorosos, e, quando é
saciada pela liberalidade de outrem, estabelece, sobre alicerces seguros e duradouros, a boa
vontade e a gratidão. O escravo tem de ser forçado a trabalhar, mas
o homem livre deve ser deixado ao seu juízo e à sua discrição; deve ser
protegido no pleno gozo dos seus bens, seja estes muito ou pouco, como deve ser
punido quando invade a propriedade do próximo».(…)
Se, para Hobbes
[1588-1679], o homem era o lobo do homem, isso decorria do facto de, fora da
sociedade, os homens se conduzirem como lobos, e não devido à intervenção de
algum traço biológico comum aos lobos e aos homens. Era assim que se consideravam
as coisas, porque, em última análise, ainda ninguém
concebera uma sociedade humana em termos que não a identificassem com a lei nem
com o governo. Mas na ilha
de Juan Fernandez não havia lei nem governo, embora apesar
disso houvesse um equilíbrio entre as cabras e os cães. Este
equilíbrio era mantido pela dificuldade que os cães tinham em apanhar a cabras
que se refugiavam na parte rochosa da ilha e às desvantagens que causava às
cabras terem de se pôr a salvo dos cães. Não era necessário qualquer governo para que se mantivesse
o equilíbrio, constantemente reposto, por um lado, pela pressão
da fome, e, por outro, pela escassez de alimentos. Hobbes sustentara a
necessidade de um déspota porque os homens eram como
animais; Townsend insistia que os homens eram realmente animais e que,
justamente por essa razão, não era necessário mais do que um governo mínimo.»
[Karl Polanyi (1886-1964),
"A
Grande Transformação", Edições 70, Junho 2010, pp. 271-274.
ISBN 978-972-44-1660-1; HISTÓRIA (com 554 páginas) DA GRANDE TRANSFORMAÇÃO DA
CIVILIZAÇÃO EUROPEIA DO MUNDO PRÉ-INDUSTRIAL PARA A ERA DA INDUSTRIALIZAÇÃO, E
AS MUDANÇAS QUE A ACOMPANHARAM AO NÍVEL DAS IDEIAS, DAS IDEOLOGIAS E DAS
POLÍTICAS SOCIAL E ECONÓMICA…]
A
questão da pobreza era assim que era equacionada há não muito mais do que dois
séculos… Não nos admiremos, pois, que algumas destas filosofias tenham sido retomadas
há algumas décadas atrás e algumas destas ideias, há muito poucos anos, tenham
sido transformadas em legislação social aqui neste nosso querido país-tipo-ilha de Juan Fernandez… [vide,
Isabel Jonet: “os portugueses têm de se convencer de que têm de deixar de comer
bifes todos os dias…”; “os portugueses têm de se convencer de que têm de voltar
a lavar os dentes com apenas um copo de água e uma escova…”; “os portugueses vão
ter de empobrecer mesmo; a austeridade é uma inevitabilidade”]
Adivinhe que bispo português
esquerdista veio ao pão-de-ló e às cavacas de Fafe… «afinfar-lhe» no austeritarismo.
Ah, … não é português!? É que pelo discurso… até parecia!
AS FACES PRECÁRIAS DE FLEXIBILIDADE
Por
Ana Maria Duarte[1]
A flexibilidade aparece, nas últimas
décadas, como um dos principais vocábulos e instrumentos de «modernização» das empresas.
As apreciações dominantes sobre a evolução do trabalho apresentam-na como a
expressão de uma necessidade histórica, capaz, só ela, de libertar
o trabalho da «rigidez» que esteve na base da crise do modelo de
produção e de consumo taylorista-fordista. O argumento
fundamental passa por se afirmar que, nas condições actuais da globalização dos
mercados, de acréscimo da competitividade e de desenvolvimento de novas
tecnologias da informação e da comunicação, a viabilidade das economias
(e das empresas) dependerá da capacidade dos seus agentes para introduzirem agilidade
e elasticidade
nos processos produtivos, no sistema organizacional e no sistema de emprego, de
forma a conseguir-se uma sincronização instantânea da produção e do consumo.
A flexibilização tende, assim, a surgir, para empresários e governantes, como a
solução para as dificuldades económicas e sociais com que a maior parte dos
países europeus se defronta (quebra de crescimento económico, desemprego
maciço, etc.).
O sucesso do tema não pode, entretanto, ser
dissociado da construção em seu torno de uma verdadeira ideologia[2],
preconizada pela perspectiva económica (neo)liberal que assim procura legitimar
um conjunto heterogéneo de transformações, algumas das quais com significado
bastante diverso daquele que é amplamente propalado. De imperativo económico e
necessidade incontornável, a flexibilidade transmuta-se discursivamente numa
essência e num ideal dos tempos actuais. Deixa de ser apenas um meio de
garantia da competitividade e passa a adquirir um
estatuto de crença, sendo encarada, sob todas as suas formas, e por
natureza, como positiva e fonte de eficácia económica.
Ora, esta elaboração quase mitológica da
flexibilidade necessita ser questionada. Primeiro, porque não
é possível falar em flexibilidade como um conjunto de práticas homogéneas, que
se moveriam no mesmo sentido e partilhariam o mesmo significado. Não existe uma
definição inequívoca de flexibilidade. Trata-se de uma noção extensa[3]
que pode abarcar ou remeter para aspectos tão diversos como o enfraquecimento
das estruturas hierárquicas, a polivalência e a rotação de tarefas (flexibilidade
funcional ou organizacional); a diversificação e imprevisibilidade
dos horários de trabalho e a individualização dos salários (flexibilidade
temporal ou financeira); a mobilidade geográfica e a subcontratação
(flexibilidade
produtiva ou geográfica); e as novas formas de emprego, como o
trabalho temporário, o trabalho a termo certo, etc. (flexibilidade numérica ou contratual).
Na prática, existem complementaridades e sobreposições entre estas diferentes
formas, e os empregadores têm-nas utilizado, umas mais do que outras, para
reduzir custos, em particular os custos de trabalho, transferindo os riscos para os
trabalhadores e para as empresas subcontratadas.
Por outro lado,
é importante questionar a noção idealizada de flexibilidade, porque as
situações e práticas que em seu nome são implementadas não têm necessariamente
consequências positivas para os trabalhadores nelas envolvidos. Aliás, sem
afastar a possibilidade de existirem aspectos positivos na flexibilidade –
porque são várias as suas faces – a questão que aqui queremos realçar é a de
que ela
encerra em si mesmo contradições e limitações geradoras de novas formas de
insegurança, de injustiça e de sofrimento no mundo do trabalho.
Isto acontece, desde logo, porque as
actuais práticas de flexibilidade são baseadas dominantemente em esquemas de
flexibilidade numérica e temporal, recorrendo-se muito pouco à flexibilidade
funcional. Ou seja, para ajustarem os níveis de emprego às necessidades da
produção e do mercado, as empresas têm recorrido, de forma estrutural, aos
despedimentos e às modalidades de emprego ditas «atípicas»,
registando-se uma expansão considerável do trabalho temporário, dos contratos a
termo, do trabalho a tempo parcial e do «trabalho independente». Se não,
vejamos: ainda que com situações diferenciadas nos vários países, na "Europa
dos 15", a proporção de trabalhadores com contratos a termo era, em 2007,
de 14,8 por
cento. Portugal, é, àquela data, o segundo país com mais
trabalhadores com contratos a termo (22,4 por cento), logo a seguir à Espanha, e aquele onde se
observou o maior aumento entre 1992 e 2007 (Employment in Europe, 2008). A principal razão pela qual a maioria
das pessoas tem um trabalho temporário é o facto de não conseguir encontrar um
emprego permanente. A situação é maioritariamente vivida como um constrangimento e não como uma opção, e
agrava-se na geração dos mais velhos.
Solidariedades estilhaçadas
Também no âmbito de um estudo numa empresa
industrial, pudemos constatar esta mesma progressão dos contratos a termo, a
par com uma redução significativa de trabalhadores permanentes. Passa-se de uma
situação, em 2002, em que o número de contratados a termo era irrelevante (3 em 600) para uma
percentagem de 16 por cento dos efectivos em 2005 (cerca de 100 trabalhadores). A
estes juntam-se 53
temporários (recrutados através das agências de trabalho temporário) e
um número também crescente de subcontratados. Tal tem conduzido a uma segmentação no interior da fábrica
entre os
trabalhadores efectivos e trabalhadores com estatutos precários,
fazendo com que antigas solidariedades sejam estilhaçadas e projectos
colectivos em torno de problemas laborais sejam inviabilizados, como
aconteceu com o caso das paralisações da produção em 2006, promovidas pela
Comissão de Trabalhadores contra as discriminações salariais. Tiveram uma fraca
adesão e não contaram, como já era esperado, com a participação dos contratados
e dos temporários, que, receosos de represálias, não quiseram
comprometer perante a administração a sua expectativa de uma contratação
permanente.
Estes trabalhadores, ao entrarem de forma
maciça na empresa ao mesmo tempo que dezenas de antigos trabalhadores são
afastados, tendem a ser encarados, pelos «da casa», como uma ameaça. Além de se
encontrarem numa situação incerta quanto ao (…).
[in «Precários em Portugal», Edições 70 / Le Monde Diplomatique, ISBN 978-972-44-1695-3.]
[pp.
10]
[1]
Socióloga e investigadora do Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS),
Universidade do Minho.
[2] Ver, por
exemplo, Luc Boltanski e Eve Chiapello, «Le nouvel esprit
du capitalisme», Gallimard, Paris, 1999. Para estes autores, o
tema da flexibilidade, juntamente com outros, tais como a autonomia, os
projectos, a competência e o desenvolvimento pessoal, é um dos pilares
fundamentais de uma «nova configuração ideológica do capitalismo».
[3] Por isso,
uma das formas mais usuais de analisar tem sido através da construção de
tipologias, como a que aqui utilizamos e nos é proposta por Anneke Goudswaard e
Mathieu Nanteuil, «Flexibility and Working Conditions. A Qualitative and
Comparative Study in Seven EU Member States. A Summary», European Foundation for the
Improvement of Living and Working Conditions, 2000. Para um maior
desenvolvimento da questão, ver Ana Maria Duarte, «Trabalho, Flexibilidade e
Precariedade no Contexto Europeu: Precisões Analíticas e Evidências Empíricas»,
Cadernos de Ciências Sociais, nº
25-26, Junho de 2008, pp. 7-54.