teologia para leigos

10 de abril de 2015

PRECÁRIOS EM PORTUGAL 1 [FLEXIBILIDADE & DESPEDIMENTO FÁCIL]

«A "Dissertion on the Poor Laws" [século XVIII] de Townsend, dez anos mais tarde, centrava-se no teorema das cabras e dos cães. O cenário é a ilha de Robinson Crusoe no oceano Pacífico, ao largo da costa do Chile. Nessa ilha, Juan Fernandez desembarcou algumas cabras que lhe forneceriam carne, se lhe acontecesse tornar a visitar a ilha no futuro. As cabras multiplicaram-se com uma fertilidade bíblica, transformando-se numa reserva alimentar vantajosa para os corsários, sobretudo ingleses, que assediavam os navios mercantes espanhóis. Para combater as cabras, as autoridades espanholas desembarcaram na ilha um cão e uma cadela que, também eles, se multiplicaram profusamente, fazendo diminuir o número das cabras, alimento dos cães. «Restabeleceu-se então uma nova forma de equilíbrio», escrevia Townsend. «Os animais mais fracos de ambas as espécies foram os primeiros a pagar a sua dívida à natureza; os mais activos e vigorosos preservaram a sua vida». E acrescentava: «É a quantidade de alimento que regula o número da espécie humana».(…)

No entanto, nem a teoria da selecção natural de Darwin [1809-1882] nem as leis da população de Malthus [1766-1834] teriam podido exercer uma influência notável sobre a sociedade moderna se não fizessem suas as máximas que Townsend deduziu das cabras e cães do seu exemplo e que quis aplicar a propósito da reforma da Lei dos Pobres: «A fome amansará os animais mais ferozes, ensinará honestidade e civilidade, obediência e sujeição, aos mais perversos. Em geral, só a fome pode tocá-los e aguilhoá-los [aos pobres] fazendo-os trabalhar, e contudo, as nossas leis disseram que eles nunca deveriam ter fome. Reconheçamos que as leis diziam também que seriam obrigados a trabalhar. Mas acontece que a coerção da lei é acompanhada de agitação, violência e alarido; gera a má vontade e nunca logra produzir um serviço bom e conveniente – ao passo que a fome é não só um meio de pressão pacífico, silencioso e constante, como suscita também - sendo o motivo mais natural de entre os que impelem à diligência e ao trabalho - os esforços mais vigorosos, e, quando é saciada pela liberalidade de outrem, estabelece, sobre alicerces seguros e duradouros, a boa vontade e a gratidão. O escravo tem de ser forçado a trabalhar, mas o homem livre deve ser deixado ao seu juízo e à sua discrição; deve ser protegido no pleno gozo dos seus bens, seja estes muito ou pouco, como deve ser punido quando invade a propriedade do próximo».(…)

Se, para Hobbes [1588-1679], o homem era o lobo do homem, isso decorria do facto de, fora da sociedade, os homens se conduzirem como lobos, e não devido à intervenção de algum traço biológico comum aos lobos e aos homens. Era assim que se consideravam as coisas, porque, em última análise, ainda ninguém concebera uma sociedade humana em termos que não a identificassem com a lei nem com o governo. Mas na ilha de Juan Fernandez não havia lei nem governo, embora apesar disso houvesse um equilíbrio entre as cabras e os cães. Este equilíbrio era mantido pela dificuldade que os cães tinham em apanhar a cabras que se refugiavam na parte rochosa da ilha e às desvantagens que causava às cabras terem de se pôr a salvo dos cães. Não era necessário qualquer governo para que se mantivesse o equilíbrio, constantemente reposto, por um lado, pela pressão da fome, e, por outro, pela escassez de alimentos. Hobbes sustentara a necessidade de um déspota porque os homens eram como animais; Townsend insistia que os homens eram realmente animais e que, justamente por essa razão, não era necessário mais do que um governo mínimo

[Karl Polanyi (1886-1964), "A Grande Transformação", Edições 70, Junho 2010, pp. 271-274. ISBN 978-972-44-1660-1; HISTÓRIA (com 554 páginas) DA GRANDE TRANSFORMAÇÃO DA CIVILIZAÇÃO EUROPEIA DO MUNDO PRÉ-INDUSTRIAL PARA A ERA DA INDUSTRIALIZAÇÃO, E AS MUDANÇAS QUE A ACOMPANHARAM AO NÍVEL DAS IDEIAS, DAS IDEOLOGIAS E DAS POLÍTICAS SOCIAL E ECONÓMICA…]

A questão da pobreza era assim que era equacionada há não muito mais do que dois séculos… Não nos admiremos, pois, que algumas destas filosofias tenham sido retomadas há algumas décadas atrás e algumas destas ideias, há muito poucos anos, tenham sido transformadas em legislação social aqui neste nosso querido país-tipo-ilha de Juan Fernandez… [vide, Isabel Jonet: “os portugueses têm de se convencer de que têm de deixar de comer bifes todos os dias…”; “os portugueses têm de se convencer de que têm de voltar a lavar os dentes com apenas um copo de água e uma escova…”; “os portugueses vão ter de empobrecer mesmo; a austeridade é uma inevitabilidade”]








Adivinhe que bispo português esquerdista veio ao pão-de-ló e às cavacas de Fafe… «afinfar-lhe» no austeritarismo. Ah, … não é português!? É que pelo discurso… até parecia!






AS FACES PRECÁRIAS DE FLEXIBILIDADE

Por Ana Maria Duarte[1]


A flexibilidade aparece, nas últimas décadas, como um dos principais vocábulos e instrumentos de «modernização» das empresas. As apreciações dominantes sobre a evolução do trabalho apresentam-na como a expressão de uma necessidade histórica, capaz, só ela, de libertar o trabalho da «rigidez» que esteve na base da crise do modelo de produção e de consumo taylorista-fordista. O argumento fundamental passa por se afirmar que, nas condições actuais da globalização dos mercados, de acréscimo da competitividade e de desenvolvimento de novas tecnologias da informação e da comunicação, a viabilidade das economias (e das empresas) dependerá da capacidade dos seus agentes para introduzirem agilidade e elasticidade nos processos produtivos, no sistema organizacional e no sistema de emprego, de forma a conseguir-se uma sincronização instantânea da produção e do consumo. A flexibilização tende, assim, a surgir, para empresários e governantes, como a solução para as dificuldades económicas e sociais com que a maior parte dos países europeus se defronta (quebra de crescimento económico, desemprego maciço, etc.).

O sucesso do tema não pode, entretanto, ser dissociado da construção em seu torno de uma verdadeira ideologia[2], preconizada pela perspectiva económica (neo)liberal que assim procura legitimar um conjunto heterogéneo de transformações, algumas das quais com significado bastante diverso daquele que é amplamente propalado. De imperativo económico e necessidade incontornável, a flexibilidade transmuta-se discursivamente numa essência e num ideal dos tempos actuais. Deixa de ser apenas um meio de garantia da competitividade e passa a adquirir um estatuto de crença, sendo encarada, sob todas as suas formas, e por natureza, como positiva e fonte de eficácia económica.

Ora, esta elaboração quase mitológica da flexibilidade necessita ser questionada. Primeiro, porque não é possível falar em flexibilidade como um conjunto de práticas homogéneas, que se moveriam no mesmo sentido e partilhariam o mesmo significado. Não existe uma definição inequívoca de flexibilidade. Trata-se de uma noção extensa[3] que pode abarcar ou remeter para aspectos tão diversos como o enfraquecimento das estruturas hierárquicas, a polivalência e a rotação de tarefas (flexibilidade funcional ou organizacional); a diversificação e imprevisibilidade dos horários de trabalho e a individualização dos salários (flexibilidade temporal ou financeira); a mobilidade geográfica e a subcontratação (flexibilidade produtiva ou geográfica); e as novas formas de emprego, como o trabalho temporário, o trabalho a termo certo, etc. (flexibilidade numérica ou contratual). Na prática, existem complementaridades e sobreposições entre estas diferentes formas, e os empregadores têm-nas utilizado, umas mais do que outras, para reduzir custos, em particular os custos de trabalho, transferindo os riscos para os trabalhadores e para as empresas subcontratadas.

Por outro lado, é importante questionar a noção idealizada de flexibilidade, porque as situações e práticas que em seu nome são implementadas não têm necessariamente consequências positivas para os trabalhadores nelas envolvidos. Aliás, sem afastar a possibilidade de existirem aspectos positivos na flexibilidade – porque são várias as suas faces – a questão que aqui queremos realçar é a de que ela encerra em si mesmo contradições e limitações geradoras de novas formas de insegurança, de injustiça e de sofrimento no mundo do trabalho.

Isto acontece, desde logo, porque as actuais práticas de flexibilidade são baseadas dominantemente em esquemas de flexibilidade numérica e temporal, recorrendo-se muito pouco à flexibilidade funcional. Ou seja, para ajustarem os níveis de emprego às necessidades da produção e do mercado, as empresas têm recorrido, de forma estrutural, aos despedimentos e às modalidades de emprego ditas «atípicas», registando-se uma expansão considerável do trabalho temporário, dos contratos a termo, do trabalho a tempo parcial e do «trabalho independente». Se não, vejamos: ainda que com situações diferenciadas nos vários países, na "Europa dos 15", a proporção de trabalhadores com contratos a termo era, em 2007, de 14,8 por cento. Portugal, é, àquela data, o segundo país com mais trabalhadores com contratos a termo (22,4 por cento), logo a seguir à Espanha, e aquele onde se observou o maior aumento entre 1992 e 2007 (Employment in Europe, 2008). A principal razão pela qual a maioria das pessoas tem um trabalho temporário é o facto de não conseguir encontrar um emprego permanente. A situação é maioritariamente vivida como um constrangimento e não como uma opção, e agrava-se na geração dos mais velhos.


Solidariedades estilhaçadas

Também no âmbito de um estudo numa empresa industrial, pudemos constatar esta mesma progressão dos contratos a termo, a par com uma redução significativa de trabalhadores permanentes. Passa-se de uma situação, em 2002, em que o número de contratados a termo era irrelevante (3 em 600) para uma percentagem de 16 por cento dos efectivos em 2005 (cerca de 100 trabalhadores). A estes juntam-se 53 temporários (recrutados através das agências de trabalho temporário) e um número também crescente de subcontratados. Tal tem conduzido a uma segmentação no interior da fábrica entre os trabalhadores efectivos e trabalhadores com estatutos precários, fazendo com que antigas solidariedades sejam estilhaçadas e projectos colectivos em torno de problemas laborais sejam inviabilizados, como aconteceu com o caso das paralisações da produção em 2006, promovidas pela Comissão de Trabalhadores contra as discriminações salariais. Tiveram uma fraca adesão e não contaram, como já era esperado, com a participação dos contratados e dos temporários, que, receosos de represálias, não quiseram comprometer perante a administração a sua expectativa de uma contratação permanente.

Estes trabalhadores, ao entrarem de forma maciça na empresa ao mesmo tempo que dezenas de antigos trabalhadores são afastados, tendem a ser encarados, pelos «da casa», como uma ameaça. Além de se encontrarem numa situação incerta quanto ao (…).


[in «Precários em Portugal», Edições 70 / Le Monde Diplomatique, ISBN 978-972-44-1695-3.]


[pp. 10]









[1] Socióloga e investigadora do Centro de Investigação em Ciências Sociais (CICS), Universidade do Minho.
[2] Ver, por exemplo, Luc Boltanski e Eve Chiapello, «Le nouvel esprit du capitalisme», Gallimard, Paris, 1999. Para estes autores, o tema da flexibilidade, juntamente com outros, tais como a autonomia, os projectos, a competência e o desenvolvimento pessoal, é um dos pilares fundamentais de uma «nova configuração ideológica do capitalismo».
[3] Por isso, uma das formas mais usuais de analisar tem sido através da construção de tipologias, como a que aqui utilizamos e nos é proposta por Anneke Goudswaard e Mathieu Nanteuil, «Flexibility and Working Conditions. A Qualitative and Comparative Study in Seven EU Member States. A Summary», European Foundation for the Improvement of Living and Working Conditions, 2000. Para um maior desenvolvimento da questão, ver Ana Maria Duarte, «Trabalho, Flexibilidade e Precariedade no Contexto Europeu: Precisões Analíticas e Evidências Empíricas», Cadernos de Ciências Sociais, nº 25-26, Junho de 2008, pp. 7-54.