teologia para leigos

27 de outubro de 2013

«QUOTIDIE MORIOR»

Escavar o coração da existência


Lucas 18: O fariseu e o cobrador de impostos [publicano] - 9Disse também a seguinte parábola, a respeito de alguns que confiavam muito em si mesmos, tendo-se por justos e desprezando os demais: 10«Dois homens subiram ao Templo para orar: um era fariseu e o outro, cobrador de impostos [publicano]. 11O fariseu, de pé, fazia interiormente esta oração: ‘Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens, que são ladrões, injustos, adúlteros; nem como este cobrador de impostos. 12Jejuo duas vezes por semana e pago o dízimo de tudo quanto possuo.’ 13O cobrador de impostos [publicano], mantendo-se à distância, nem sequer ousava levantar os olhos ao céu; mas batia no peito, dizendo: ‘Ó Deus, tem piedade de mim, que sou pecador.’ 14Digo-vos: Este desceu justificado para sua casa, e o outro não. Porque todo aquele que se exalta será humilhado, e quem se esvazia será erguido.»


Comentário

Na parábola de Domingo passado («o juiz e a viúva» - v.1-8), Jesus quis ensinar os seus discípulos a «esperar activamente». Na parábola deste Domingo, Jesus aponta para a nossa sempre e constante tentação de «preencher vazios». Na parábola da viúva desamparada, Deus não surge a correr a «preencher» o desespero da viúva. Na parábola do fariseu convencido, Jesus assinala a sobranceria com que «preenchemos» inseguranças. As duas parábolas só podem existir porque «Deus tarda».

Deus tarda sempre: Deus tem seus ritmos, ritmos que não aceitam ser vergados, dobrados pelas nossas estratégias. A nossa aflição com os «buracos», os «vazios» (da nossa imagem ou do nosso coração) tem a ver com o que os outros pensam de nós. A aflição de Deus tem a ver com aquilo que o preocupa: a nossa fuga de nós a nós. Neste ponto, a “religião” pode (estou convencido que o é na imensa maioria dos casos) ser uma desculpa – piedosa – para nos evitarmos a nós próprios (cf. o Fariseu desta Parábola). Porquê? Porque todos temos uma inclinação natural para nos culpabilizarmos, para não nos aceitarmos com as nossas deformidades e fragilidades: em suma, não nos aceitamos facilmente com as limitações de que somos feitos. Essa (outra) limitação, tortura-nos, encadeia-nos, agrilhoa-nos, prende-nos por dentro e faz com que, tudo o que fazemos, seja artificial, não genuíno por estar assente na dependência do olhar dos outros. Por isso, alguns de nós nos refugiamos numa religião individual ou numa existência individual (veja o Fariseu, que fala apenas de si e contra os outros; ao passo que o cobrador de impostos fala daquilo que ele faz – de mal – aos outros, a quem extorquia quantidades ilícitas).

Todos começamos mal: a dificuldade em nos aceitarmos (em tudo o que fazemos e somos) faz-nos agressivos. A «agressividade» é algo que usualmente dirigimos contra os que não são como nós: ela produz espírito de caserna, tribal, clã, põe-nos de atalaia. A agressividade começa quando começa a vaga sensação de «buraco na alma»: isso põe-nos, imediatamente, de atalaia. Há quem esteja sempre de atalaia! Todos começamos mal. Nascemos e, mal pomos a língua de fora, tratamos de nos defender da dureza da vida “erguendo-nos”, soltando a língua, fabricando orgulho (Sl 50:19) ou agressividade. Todos começamos mal: «Ó Deus, dou-te graças por não ser como o resto dos homens…». Depois, a Vida encarregar-se-à de nos pôr à prova. Porém, nós nunca deixamos de opôr resistência à Vida: veja, o juiz injusto (Lc 18:4), o fariseu (Lc 18:11), os discípulos (Lc 18:15b), o chefe rico (Lc 18:23), Pedro (Lc 18:28), etc. – um braço-de-ferro constante! Todos começamos mal e muitos permanecemos mal… A existência não tem, inevitavelmente, que ser sempre assim. Temos o dever de encontrar um sentido para a nossa existência, que seja libertador.

A Vida é uma “busca”, uma peregrinação, um processo em que se é desafiado a aprender a perder (Lc 15:8) para ganhar (v.9), ganhar aquilo que muita falta faz à Felicidade humana, e que é a Vida Comunitária («Alegrai-vos comigo, porque encontrei»). Comunidade Vital em que cada um se entrega totalmente aos outros sem esperar nada em troca.

É no afã pelos outros e na debilidade (Fl 2:7-8; Mt 2:13), que se concretiza a Encarnação do Deus de Jesus. Também será aí, no afã pelos outros e na debilidade nossa,  nessa condição de serviço (koinonia), de escravos um dos outros, que resplandecerá o tesouro que todos trazemos escondido em nós (2Cor 4:7) e que nem imaginamos! Isto pressupõe um “processo”, um processo de «nekrósis» (‘morte lenta, contínua’, por oposição a thánatos, que é estado-de-cadáver). Nada fácil, esta lentidão kenótica de Deus em nossos corpos ágeis, ansiosos, agitados! A nossa agitação e a nossa ansiedade não serão já reflexo duma procura por mais radicalidade?

S. Francisco de Assis encontrou o sentido da sua existência no “quotidie morior” -  «a chaque jour quelque chose tombe…» (a cada dia, deixar cair algo…). Trata-se de um processo de desprendimento, de desapossessão, de amor descendente (v.14), de Kenosis (Fl 2:7 - «esvaziou-se»=kenosis), de «descimento que ergue» para a luz (Jo 3:14; Jo 12:32; 34b). Este desprendimento contínuo não levará àquilo que Ignacio Ellacuría chamava «civilização da pobreza»? O poeta e teólogo dinamarquês Huub Oosterhuis [1933-], exprime-se assim: «pernoitamos na sombra uns dos outros, acordamos na primeira luz, como se alguém nos tivesse chamado pelo nome (Jo 20:16)

Na vida social e pastoral, o olhar precisa de tempo para se prender. Doutro modo, não despontará o amor ao pobre, apenas a constatação de que existe pobreza. No espaço comunitário, se não houver tempo para ver e ouvir o outro, não haverá Deus («Digo-vos: Este desceu justificado para sua casa, e o outro não»). É por isso que algumas celebrações se podem assemelhar a um ajuntamento de crentes, mas não a assembleias.

«A religião depende do «Templo» (v.10) e da «casa» (v.14). Quando a fé se torna eclesial e social (o «Templo»), a presença dos outros fragiliza-a. Na verdade, graças a uma oração que se concentra em Deus e em si mesmo, o publicano consegue revelar o seu verdadeiro ser e isso permite, a Deus, ser Ele próprio. O publicano não teve vergonha de ter vergonha. Vai, agora, confiante, consciente de que não tem mais nada a oferecer para além do seu fracasso [a fragilidade]. Este é o motivo por que recebe o essencial, o reconhecimento e a capacidade de se poder sentir firme sobre os seus pés. Pode descer”, mais uma vez, à sua casa (v.14), reencontrar a realidade profana, reencontrar a sua condição pessoal, as relações familiares e afectivas. É ele próprio ainda e, no entanto, tudo mudara graças ao olhar elogioso de Deus.» (François Bovon)

S. Paulo, em 2 Cor 6:9-10, escreve:

«(…) agonizantes
e, no entanto, eis-nos com vida;
condenados
e, no entanto, livres da morte;
tristes, nós que estamos sempre alegres;
pobres, nós que enriquecemos a muitos;
nada tendo
e, no entanto, tudo possuindo.»



Ao contrário da nossa constante tentação de «preencher vazios» (de alma, de auto-imagem), façamos, antes, espaços, ocos, vazios, «buracos» no peito uns dos outros para que o pobre se possa aí anichar (2 Cor 7:2). Não se pode amar o pobre à distância… Lembremo-nos que «pernoitamos na sombra uns dos outros». A presença da oração do pobre na minha oração fragiliza a minha oração. A nossa libertação (‘elevação’) está na nossa configuração com os pobres (descimento, ‘escondimento’; Ch. de Foucauld) e não na nossa Oração: «pobres, nós que enriquecemos a muitos». Se fizermos da nossa fragilidade e pobreza o nosso estandarte, todos olharão para o oco da nossa debilidade e nele intuirão o perfume de vida que à vida conduz (2 Cor 2:16).

Que me falta ser/fazer para poder enriquecer mais os que clamam a mim?

«Em verdade, em verdade vos digo: se o grão de trigo, lançado à terra, não morrer, fica ele só; mas, se morrer, dá muito fruto. Quem se ama a si mesmo, perde-se…» (Jo 12:24)




(Domingo – Tempo Comum, 27 Out 2013)



2 Coríntios 7:2 – versões…


1.   BÍBLIA DOS MONGES DE MAREDSOUS [Bélgica] - «Acolhei-nos dentro do vosso coração.»

2.   LA BIBLE DE JÉRUSALEM - «Faite-nous place en vos cœurs.»

3.   DIFUSORA BÍBLICA - «Dai-nos um lugar nos vossos corações.»

4.   BÍBLIA DO PEREGRINO [Luís Alonso Schökel, Ed. Paulus, Brasil] - «Dai-nos lugar.»

5.   Santiago Guijarro - «Dadnos cabida en vuestro corazón.»

6.   Juan Mateos / L. Alonso Schökel [Cristiandad, 1987] - «Hacednos un hueco







Deus ama o homem real


«Ser configurado com aquele que se fez homem, significa ser um verdadeiro homem. O homem deve poder ser homem. Toda a sobre-humanidade [F. Nietzsche, “Assim falava Zaratustra”], todo o esforço por ir além do homem em si, toda a heroicidade, todo o ser semidivino fica aquém do homem; porque não é verdadeiro.

«O homem real não é objecto de desprezo, nem de deificação, mas um objecto do amor de Deus. A multiformidade e riqueza da criação de Deus não é aqui violentada por uma falsa uniformidade, pela constrição do homem a submeter-se a um falso ideal, a um tipo, a uma determinada imagem humana. O homem real pode, na liberdade, ser a criatura do seu criador.

«Ser conformado com aquele que se fez homem significa poder ser o homem que na realidade é; a aparência, a hipocrisia, o esforço espasmódico, o constrangimento para ser algo de diferente, de melhor, de mais ideal, do que aquilo que se é, são aqui postos de lado. Deus ama o homem real. Deus tornou-se um homem real.

«Ser configurado com o crucificado significa ser um homem julgado por Deus. (…) O homem morre quotidianamente a morte do pecado. Traz humildemente no corpo e na alma as cicatrizes, as chagas que o pecado lhe inflige. Não se pode elevar acima de nenhum outro homem ou pôr-se diante dele como um modelo, pois reconhece-se a si mesmo como o maior dos pecadores. Pode perdoar o pecado dos outros, mas nunca o seu. (…)

«O homem novo vive no mundo como qualquer outro; muitas vezes, só em poucas coisas se distingue dos outros homens. Não tem de se evidenciar, mas deve apenas evidenciar Cristo por amor dos seus irmãos. Transfigurado na figura do ressuscitado, traz em si apenas o sinal da cruz e do juízo. Na medida em que voluntariamente o traz, demonstra ser aquele que recebeu o Espírito Santo e [demonstra] estar unido a Jesus Cristo num amor e numa comunhão incomparáveis.

«A figura de Jesus Cristo ganha forma no homem. Este não obtém nenhuma figura própria e autónoma, mas aquilo que lhe dá figura e o mantém na nova figura é sempre a figura do próprio Jesus Cristo. Portanto, o que no homem ganha forma, não é nenhum remendo, nenhuma repetição da sua figura, mas a sua própria figura. De novo, o homem não é reconfigurado numa figura que lhe é estranha - na figura de Deus -, mas na sua própria figura, que lhe pertence e lhe é essencial. O homem torna-se homem, porque Deus se fez homem. Mas o homem não se torna Deus.

«Em Cristo foi de novo criada a figura do homem diante de Deus

[Dietrich Bonhoeffer, ÉTICA, Assírio & Alvim, Teofanias/6, 2007, pp. 64-66]