99% - 1%
III
PARTE
OS MERCADOS E A
DESIGUALDADE
O Capítulo anterior destacou o papel
desempenhado pelo rent-seeking na criação do alto nível de desigualdade
norte-americano. Outra via usada para explicar a desigualdade enfatiza as forças abstractas de mercado. Deste ponto de
vista, é uma questão de pouca sorte para a classe média e para a classe média
baixa que as forças de mercado tenham agido como agiram, com os trabalhadores
comuns a verem os seus salários reduzidos, e os hábeis banqueiros a verem os
seus rendimentos voar. Segundo esta perspectiva, está nela implícita a ideia de
que quando interferimos com as maravilhas do mercado, fazemo-lo por nossa
própria conta e risco, ou seja, é preciso ser sempre muito cauteloso em
qualquer tentativa de «corrigir» o mercado.
(…) A nossa hipótese é: as forças de
mercado são reais, mas são moldadas através de processos políticos. Os mercados são moldados por leis, regulamentos e
instituições. Qualquer lei, qualquer regulamento e qualquer acordo
institucional tem consequências distributivas, e a forma como temos moldado a
economia de mercado norte-americano funciona em benefício dos que estão no topo
e em desvantagem dos restantes.
Há outro factor determinante quando
se analisa a desigualdade social e que abordaremos neste Capítulo. Como vimos
anteriormente, o Governo condiciona as forças de mercado. Mas estas
também são influenciadas pelas instituições sociais e pelas normas da
sociedade. De facto, a política amplifica e
reflecte em larga medida as normas sociais. Em muitas sociedades, os
mais desfavorecidos são na sua grande maioria grupos que, de uma forma ou de
outra, sofrem de discriminação. O alcance desta discriminação está intimamente
ligado às normas sociais. Veremos como as mudanças nas normas sociais – que
definem, por exemplo, o que é uma remuneração justa – e nas instituições, como
os sindicatos, têm ajudado a configurar a distribuição dos rendimentos e da
riqueza nos Estados Unidos. Porém, essas normas e
instituições sociais, como os mercados, não existem no vazio: também
elas são, em parte, condicionadas pelos 1% do topo. (…)
De volta ao papel do
Estado
Esta narrativa à volta das
transformações do mercado e do contributo das forças de mercado para uma
crescente desigualdade ignora o papel que o Estado desempenha na configuração
do dito mercado. Grande parte dos empregos que não foram mecanizados (e que
provavelmente não serão tão cedo) pertencem ao sector público, à área do
ensino, à saúde e por aí adiante. Se tivéssemos
decidido pagar mais aos nossos professores, poderíamos ter atraído e mantido
melhores professores, e isso poderia ter melhorado o desempenho
económico global a longo prazo. Permitir que os
salários da função pública descessem foi uma decisão pública.[1]
Contudo, o papel mais importante do
Estado é o de definir as regras básicas do jogo, através de leis como as que incentivam ou desencorajam a
sindicalização, normas de gestão
empresarial que alimentem o discernimento dos gestores, e leis da concorrência que limitem a extensão das
rendas de monopólio. Como comentámos no início desta secção, quase todas as
leis têm consequências distributivas,
que fazem com que alguns saiam beneficiados à custa dos outros, como é hábito.[2]
Estas consequências distributivas costumavam ser os efeitos mais importantes da
política ou do programa governamental.[3]
(…)
1. Liberalização
financeira
Durante as últimas três décadas, as
instituições financeiras norte-americanas têm defendido com veemência a livre
mobilidade de Capital. De facto, tornaram-se os paladinos dos direitos do Capital contra os direitos
dos trabalhadores ou até dos direitos
políticos.[4]
Os direitos simplesmente especificam a que têm direito os variados
intervenientes económicos. Por exemplo, entre os direitos adquiridos pelos
trabalhadores está o direito a unir-se, a sindicalizar-se, a encetar
negociações colectivas e o direito à greve. Muitos Estados não
democráticos restringem estes direitos de forma severa, mas até os Estados
democráticos os limitam. Do mesmo modo, também os donos do Capital podem ter
direitos. O mais fundamental direito dos donos do Capital é que não sejam
privados das suas propriedades. Porém, repito, até numa sociedade democrática
estes direitos estão restringidos; sob o direito de desapropriação, o Estado
pode tirar a propriedade de alguém para fins públicos, mas tem de haver o devido
processo legal e a compensação apropriada. Em anos recentes, os donos do Capital exigiram mais direitos, como
o de se movimentarem livremente para dentro e para fora dos países. Em
simultâneo, argumentaram contra as leis
que os podem tornar mais responsáveis pelos abusos aos direitos humanos noutros
países, tal como o Estatuto Alien Tort,
que permite às vítimas desse abusos mover acções dentro dos Estados Unidos.
Do ponto de vista da economia pura,
são muitos os ganhos de eficiência para a produção mundial através da livre
mobilidade laboral, muito maiores que os ganhos de eficiência através da
mobilidade do Capital. As diferenças no retorno do Capital são minúsculas em
comparação com as diferenças na rentabilidade laboral.[5]
Mas os mercados financeiros têm alimentado a globalização, e embora os agentes
financeiros embandeirem constantemente em arco os ganhos de eficiência, o que
na realidade têm em mente é outra coisa: um conjunto de regras que beneficiam o
seu grupo e aumentam a sua vantagem sobre os trabalhadores. A ameaça de saída de Capital, na eventualidade de
os trabalhadores se tornarem demasiado exigentes em relação aos seus direitos e
salários, mantém os ordenados dos trabalhadores
baixos.[6] A
concorrência entre países para atrair o investimento assume variadas formas,
não só a descida dos salários e o enfraquecimento das protecções aos
trabalhadores. Existe uma mais vasta «corrida para a base» que tenta garantir
que as regulações empresariais se mantenham fracas e os impostos baixos. Numa
área, a das finanças, isto provou ser
especialmente dispendioso e especialmente crítico para o crescimento da
desigualdade. Os países enveredaram por uma corrida
a fim de terem o sistema financeiro menos regulado, evitando assim
que as empresas financeiras fujam para
outros mercados. No Congresso
norte-americano há quem se preocupe com as consequências desta desregulação,
mas se sinta impotente. Se os Estados Unidos não consentissem nesta des-regulação,
perderiam postos de trabalho e uma indústria importantíssima. Contudo, se
olharmos para trás, esta política tem sido um erro. As perdas para o país
provocadas pela crise que resultou de uma regulação inadequada foram de superior
magnitude em relação ao número de empregos na área financeira que foram salvos.
Não surpreende que, embora há uma
década dominasse a ideia de que todos beneficiariam dos livres movimentos de
Capital, depois da Grande Recessão muitos observadores passaram a ter dúvidas
em relação a isso. Estas preocupações vêm não só dos países em vias de
desenvolvimento, como também de alguns dos maiores defensores da globalização.
De facto, até o FMI (Fundo Monetário
Internacional, a agência internacional responsável por assegurar a estabilidade
financeira global) já reconheceu os perigos
de uma não onerada e excessiva integração financeira[7]:
um problema num país pode rapidamente espalhar-se a outro. Na verdade, os medos
de contágio motivaram resgates a bancos da
magnitude de dezenas e centenas de mil milhões de dólares. A
resposta a doenças contagiosas é a «quarentena», e, por fim, na primavera de
2011, o FMI reconheceu o desejo de uma resposta análoga nos mercados
financeiros. Essa resposta traduziu-se no controlo de Capital, ou na limitação
do volátil movimento de Capital além-fronteiras, sobretudo durante a Crise.[8]
A ironia é que durante
as crises financeiras quem suporta os custos são os trabalhadores e as pequenas
empresas. As crises
vêm acompanhadas por altas taxas de desemprego que fazem baixar os salários,
pelo que os trabalhadores sofrem a dobrar. Em crises anteriores, o FMI (como é habitual, com o apoio do Tesouro dos
EUA) não só insistiu em levar a cabo enormes cortes orçamentais nos países com
problemas, convertendo crises em recessões e
depressões, como também exigiu liquidações de activos, altura em que
os agentes financeiros atacaram a matar. No meu anterior livro, Globalization and Its Discontents, descrevi como
a Goldman Sachs foi uma das vencedoras
da crise financeira asiática de 1997, assim como da crise de 2008. Quando nos
interrogamos como é possível que as agências financeiras enriqueçam tanto,
parte da resposta é simples: ajudaram a redigir uma série de regras que as
beneficiavam, mesmo nas crises que elas ajudaram a criar.[9]
2. Globalização do
comércio
Os efeitos da globalização do
comércio não têm sido tão dramáticos quanto os das crises associadas ao Capital
e à liberalização do mercado financeiro, mas têm, não obstante, operado lenta e
firmemente, sobretudo nos países mais desenvolvidos. A ideia básica é simples:
o movimento de bens é um substituto para o movimento de pessoas. Se os Estados
Unidos importam mercadorias que requerem trabalhadores não qualificados, reduz
a procura de trabalhadores não qualificados para produzirem essas mercadorias
nos Estados Unidos, e isso reduz os salários dos trabalhadores não
qualificados. Os trabalhadores norte-americanos podem competir ao aceitar
salários cada vez mais baixos, ou através de uma maior qualificação.[10]
Este efeito surgiria, independentemente de como geríssemos a globalização,
desde que conduzisse a mais comércio.
Contudo, a forma como a globalização
tem sido gerida tem conduzido a salários ainda mais baixos, visto que o poder
de negociação dos trabalhadores foi destruído. Com o Capital altamente móvel –
e com as tarifas baixas –, uma empresa pode simplesmente comunicar aos seus
trabalhadores que, caso estes não aceitem menores salários e piores condições
laborais, ela fecha e vai para outro lado. Para vermos como uma globalização assimétrica pode afectar o poder de
negociação, imaginemos, por um momento, como seria
o mundo caso houvesse livre mobilidade laboral, mas nenhuma mobilidade de
Capital.[11]
Os países competiriam para atrair trabalhadores. Prometeriam boas
escolas e
um bom ambiente, assim como impostos baixos sobre os trabalhadores. Isto
podia ser financiado pelos impostos altos sobre o Capital. Mas não é esse o
mundo em que vivemos, e isso acontece, em parte, porque os 1% não querem que assim seja.
(…)
Joseph E. Stiglitz, Prémio Nobel da Economia de 2001.
[1]
Na Direita, alguns comparam os salários do sector
público com os do sector privado de uma forma pouco ajustada com a
educação – ou seja, não tendo em conta as diferenças no nível de educação entre
os sectores público e privado – e queixam-se de que os salários da função
pública são demasiado altos. Mas os pagamentos por sector, ajustados à educação
(ou seja, tendo em conta as diferenças educacionais entre os dois sectores),
são bastante mais baixos que o privado. Alguns defendem que pensões mais
generosas (e com menos risco), entre outros benefícios compensam o sector
público nesta diferença. Munnell, et al., descobriu que os trabalhadores do
sector público gozam de um «modesto» prémio de 4%
mesmo com os benefícios. A.
Munnell, J. P. Aubry, J. Hurwitz e L. Quimby, «Comparing
Compensation: State-Loval versus Private Sector Workers», Center
for Retirement Research of thee Boston College, nr. 20, Setembro de 2011.
[2]
Por tradição, muitos economistas não têm estado confortáveis em lidar com estas
mudanças distributivas, devido à dificuldade de efectuar comparações
interpessoais. Os economistas costumam focar-se no equilíbrio da «eficiência à Pareto», em que ninguém vive melhor
sem fazer alguém viver pior, ou em «melhorias à
Pareto», em que alguém passa a viver melhor mas ninguém é lesado.
Mas poucas mudanças de políticas são desse género. Geralmente, uns ganham e
outros perdem. Um equilíbrio eficiente de Pareto, de modo como é aprendido em
cursos de economia elementares (e porventura depois esquecido), pode não ser
muito desejável, porque deixou muita gente na mais pura subsistência.
[3]
Há várias centenas de anos, na Inglaterra e na Escócia, os grandes
proprietários anexaram a terra comum (os «baldios»). Alguns economistas
defenderam que isto era desejável, uma vez que evitava o problema do sobrepastoreio, um problema que era chamado de
«tragédia das terras comuns». Mas muito maiores que o efeito de eficiência eram
os efeitos distributivos: muitos
perderam os seus sustentos e ficaram empobrecidos. Como o economista /
cientista político Eleanor Ostrom, vencedor do
Prémio Nobel, assinalou, existem outras formas de evitar a tragédia
das terras comuns e de garantir que os recursos são bem geridos – por exemplo,
simplesmente regulando o número de ovelhas que podem pastar. Estas
formas podem ser igualmente eficientes, mas com bem melhores consequências
sociais. A verdadeira tragédia das terras comuns foi que, com a privatização
dos nobres, milhares de pessoas tornaram-se indigentes e tiveram que migrar
para as cidades britânicas ou para outros lados. Um sistema
de direito de utilização – permitindo que cada família pastasse,
digamos, dez ovelhas – teria prevenido o problema do sobrepastoreio, assim como
mais miséria dos camponeses. Em quase todas as sociedades onde a água é muito
escassa (como os indígenas do Deserto do Atacama) ou que dependam da irrigação,
desenvolveram esquemas regulatórios complexos de distribuição de água, equilibrando equidade e eficiência – e com
apenas um uso limitado dos preços. Para uma discussão mais aprofundada destas
questões, ver J. Stiglitz, «Making Globalization
Work», capítulo 4 (Edição portuguesa das Edições ASA).
[4]
A Declaração Universal dos Direitos Humanos,
adoptada pelas Nações Unidas a 10 de Dezembro de 1948, reconheceu tanto os direitos
económicos como os direitos políticos, mas os direitos económicos identificados referiam-se ao cidadão comum.
«(1) Toda a pessoa tem direito a um nível de vida suficiente para lhe assegurar
e à sua família a saúde e o bem-estar, principalmente quanto à alimentação, ao
vestuário, ao alojamento, à assistência médica e ainda quanto aos serviços
sociais necessários, e tem direito à segurança no desemprego, na doença, na
invalidez, na viuvez, na velhice ou noutros casos de perda de meios de
subsistência por circunstâncias independentes da sua vontade. Declaração
Universal dos Direitos Humanos, disponível em http://www.un.org/en/documents/udhr/index.shtml#a25.
Implicitamente, foi
percebido que as pessoas cuja sobrevivência estava em risco não podiam exercer, e não exerceriam, os seus direitos
políticos. Nos anos da Guerra Fria,
os da Esquerda [nos Estados Unidos] salientavam a importância destes
direitos económicos, enquanto o Governo norte-americano centrava a sua actuação
nos direitos políticos. Ironicamente, quando os direitos económicos foram por
fim discutidos, foram os direitos do Capital, e não os dos trabalhadores e dos
cidadãos; direitos de propriedade,
direitos de propriedade intelectual e os direitos
do Capital com livre mobilidade entre fronteiras. Contudo, noutros
países, tem havido um reconhecimento cada vez maior dos direitos económicos dos
cidadãos comuns, por exemplo, na Constituição da África do Sul, onde até o
direito à habitação é aceite. Ver Capítulo 2, Carta
dos Direitos dos Estados Unidos, Secção 26: «26 (1) Todos têm o
direito ao acesso a uma habitação adequada. (2) O Estado deve tomar medidas
legais razoáveis, entre outras, dentro dos
recursos disponíveis, para alcançar a realização progressiva deste direito. (3) Ninguém pode ser
despejado de sua casa, ou ver a sua casa demolida, sem ordem judicial efectuada
depois de ter em conta todas as circunstâncias
relevantes», disponível em http://www.info.gov.za/documents/constitution/1996
(...). O Supremo Tribunal da Índia reconheceu os direitos à educação; em 2002,
através da 86ª Emenda à Lei, o Artigo 21 (A) foi incorporado na Constituição
para tornar a educação um direito fundamental para as crianças, e os direitos ao ar sem poluição (dentro do Artigo
21). Também reconhece direitos fundamentais, em particular o Direito à Vida
garantido pelo Artigo 21. Em todo o mundo (fora dos Estados Unidos), a
abordagem baseada em direitos tem recebido uma cada vez maior atenção. Ver, por
exemplo, o trabalho efectuado pela organização da ex-presidente da Comissão
das Nações Unidas para os Direitos Humanos (e ex-presidente da Irlanda) Mary Robinson, Realizing
Rights, disponível em http://www.realizingrights.org/.
[5]
Isto ignora, contudo, as muitas consequências
sociais, entre outras, da migração laboral, tanto para o país que o
migrante abandona como para o país aonde chega.
[6]
Como é óbvio, alguns, talvez muitos, dos que defendem a liberalização dos
mercados financeiros olham apenas para o aumento directo
na sua rentabilidade a partir da sua capacidade de investir em sítios onde os
retornos são maiores. Não pensam nos efeitos
sistémicos da liberalização assimétrica dos salários.
[7]
A integração dos mercados financeiros implica não só a livre circulação de
Capital além-fronteiras, mas também a livre circulação de instituições
financeiras além-fronteiras. Para uma discussão mais aprofundada destas
matérias, ver Capítulo 5 [recomenda-se
VIVAMENTE a compra deste livro, editado
pela BERTRAND…].
[8]
Há um problema que se assemelha a este e que pertence ao domínio do desenho dos
circuitos eléctricos. Circuitos mais
integrados estão sujeitos a colapsos sistémicos – um problema num
único pequeno ponto, como uma subestação em Ohio, pode mandar abaixo toda a
Costa Este. A resposta é a criação de disjuntores eficazes para
isolar ou pôr de quarentena o problema.
[9]
Os bancos gastam demasiado dinheiro em fazer lóbi,
tanto pelas regulações como pelos resgates que servem os seus interesses. Os
gastos em lóbis em 2009 cresceram 12% desde 2008, atingindo os 29,8 milhões de dólares entre os oito bancos e
empresas de private equity que gastaram a maior parte para influenciar a
legislação, e grande parte do aumento aconteceu nos últimos três meses quando
o Congresso votou propostas de lei de reforma financeira. Ver «Banks Step Up
Spending on Lobbying to Fight Proposed Stiffer Regulations», Los
Angeles Times, 16 de Fevereiro de 2010. Como exemplo da influência dos
lobistas dos bancos, a Reserva Federal estabeleceu um máximo de 24 cêntimos à
quantia que os bancos podem cobrar aos comerciantes de venda a retalho pelas
transações com cartão de débito em Junho de 2011, uma quantia que era um
múltiplo de estimativas razoáveis do custo de transação, e quase o dobro de 12 cêntimos provisoriamente propostos
pela Reserva Federal em Dezembro de 2010. Ver «Fed Halves Debit Card
Bank Fee», New York Times, 29 de Junho de 2011, disponível em: http://www.nytimes.com/2011/ (...).
[10]
Os países em vias de desenvolvimento também têm muitas queixas contra a
globalização, que noutro lado já discuti. Por exemplo, queixam-se, com todo o
direito, de que os acordos comerciais não são justos: o poder negocial está todo do lado dos países desenvolvidos.
Pensemos, por exemplo, nos «Acordos de Comércio
Livre», que os Estados Unidos têm com muitos outros países do mundo.
Estes acordos não são realmente acordos de comércio livres. Se fossem, teriam
algumas páginas de extensão, com cada um dos lados a concordar em eliminar as suas tarifas, as suas barreiras não-tarifárias e
os seus subsídios. Mas os acordos têm centenas de páginas, porque na verdade são acordos de comércio administrado,
e administrados em benefício de interesses especiais. São acordos onde
exércitos de indústrias insistem numa forma de tratamento favorável, ou outra.
As empresas focam-se
naturalmente em regras que lhes aumentem os lucros. Quando a liberalização
comercial lhes ajuda nos lucros, são-lhe favoráveis, mas quando faz o oposto,
opõem-se. E, na maioria das vezes, o representante comercial norte-americano e
os ministros do comércio de outros países desenvolvidos representam os
interesses das empresas dos seus países. Abrir o comércio é, contudo, apenas
uma parte dos objectivos das negociações comerciais. Hoje, muita atenção está
centrada em convencer outros países a abrirem os seus mercados a investimento
estrangeiro e a protegerem os investimentos que lá são feitos – ou seja, darem
condições que aumentem a mobilidade laboral além-fronteiras. Resumindo, grande
parte do foco centra-se em aumentar os lucros das companhias, em vez de se
focarem no aumento de postos de trabalho nos seus países. E isto não surpreende
ninguém, aspecto que é a fonte donde vêm as
contribuições para campanhas eleitorais e para os lóbis. (Não é por acaso que, por vezes, o representante comercial
dos Estados Unidos tenha sido o gestor de campanha do presidente).
Todos acreditam que as
exportações são boas, mas que as importações são más. (Tal posição, claro, é intelectualmente incoerente.)
As nossas empresas afirmam que se uma outra firma as prejudica, então deve
estar a «jogar sujo». Deve estar a vender bens abaixo do custo, ou a serem
subsidiadas pelo seu Governo. As empresas norte-americanas usam estes
argumentos para defenderem a imposição de deveres para «nivelar o campo de
jogo». Quando os acordos comerciais internacionais previnem a imposição de
tarifas, os Estados Unidos (entre outros países) começam a usar de forma
agressiva aquilo que é chamado de barreiras não-tarifárias, e sobretudo o dumping
de deveres. Mas a questão é que muitas
indústrias norte-americanas não são as mais eficientes do mundo.
Muitas não investiram o que deviam, tanto em pessoas como em máquinas, e é por
isso que os seus custos são mais elevados. Para uma discussão sobre a
importância da inovação na indústria automóvel norte-americana, e de que modo
as empresas norte-americanas se juntaram contra os concorrentes estrangeiros,
ver McKinsey & Company, «Increasing Global Competition and Labor Productivity:
Lessons from the US Automotive Industry», um relatório do McKinsey
Global Institute, 2005, disponível em: http://www.mckinsey.com/
[11]
No início da sua história, os Estados Unidos tinham tais condições, e de facto
um processo diferente se desenrolava. Os territórios e os novos estados
ocidentais da União competiam por colonos contra os estados mais antigos da
costa leste. Isto conduziu no país inteiro a uma expansão dos direitos de voto,
do direito a concorrer a cargos políticos, e da educação pública, o que por sua
vez contribuiu para a vasta expansão da literacia nos Estados Unidos (em
relação ao que era antes, e ao que era na Europa). Ver S. Engerman e
K. Sokoloff, «Factor Endowments,
Inequality, and Paths of Development among New World
Economies», Economia 3, nr. 1 (2002), pp. 41-109; e ver S. Engerman e K. Sokoloff,
«The Evolution of Suffrage Institutions in the New World»,
Journal of Economic History, 65, nr. 4 (Dezembro de 2005), pp. 891-921.