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I PARTE
A forma como O Preço da Desigualdade foi recebido demonstrou a sua importância. Não só nos Estados Unidos, como no resto do mundo, existe uma preocupação cada vez maior com o aumento da desigualdade e com a falta de oportunidades, e com o modo como estas tendências gémeas estão a transformar as economias, as políticas democráticas e as sociedades. À medida que fui viajando pelos Estados Unidos e pela Europa a discutir o tema da desigualdade, as suas causas e consequências e o que se podia fazer para a contrariar, muitas pessoas partilharam comigo as suas histórias, bem como, aquilo que se estava a passar, as afectava a elas, às suas famílias e aos seus amigos. Contudo, por trás destas histórias havia inúmeros novos dados que tiveram influência sobre os argumentos aqui defendidos. Neste prefácio, quero partilhar os momentos mais impressionantes deste debate sobre a desigualdade, fornecer outros dados que reforçam as minhas conclusões originais e analisar outras mudanças no panorama político e económico. Nos Estados Unidos, o acontecimento mais importante foram as contundentes eleições presidenciais de 2012 e a reeleição de Barack Obama. Na Europa foi a continuação da crise do euro, com os seus profundos efeitos sobre a desigualdade.
No início da minha tournée do livro, em Washington DC, apercebi-me da dimensão da crise dos empréstimos estudantis. Vários estudantes descreveram-me o dilema que enfrentavam: não havia emprego; o melhor uso que podiam dar ao tempo, e a melhor forma de melhorarem as suas perspectivas era inscreverem-se em cursos de doutoramento. Porém, ao contrário de um filho de pais ricos, tinham de ser eles a pagar os cursos com empréstimos estudantis[1]. Já se encontravam amedrontados com o seu actual endividamento, sabendo da quase impossibilidade de ficarem isentos de pagamento, mesmo nas piores circunstâncias. Não queriam contrair ainda mais empréstimos, e a sua sensação de desilusão e de desespero era decepcionante e triste. A sua amargura aumentou à medida que olhavam para os colegas que tinham pais ricos e que podiam aceitar estágios não remunerados para enriquecer o currículo. Os filhos dos norte-americanos comuns não se podem dar a esse luxo. Têm de aceitar quaisquer trabalhos temporários que lhes aparecem mesmo que sejam trabalhos sem futuro algum. Os dados revelados posteriormente apenas confirmam estas impressões. Enquanto, nas escolas e nas universidades públicas, as propinas aumentaram em média um sexto entre 2005 e 2013 – o que se compreende se tivermos em conta os cortes orçamentais – os rendimentos continuaram a diminuir. (Nalguns Estados, como a Califórnia, as coisas estavam ainda pior: as propinas ajustadas à inflação aumentaram 140% nos cursos públicos de dois anos, e cerca de 72% em cursos públicos de quatro anos, entre os anos lectivos de 2007-08 e 2012-13) A progressão parecia quase impossível.
As estatísticas que, porventura, mais ressoaram enquanto me encontrava com grupos de costa a contra-costa, e as que mais surpreenderam o público estrangeiro, foram as relacionadas com a falta de oportunidades nos Estados Unidos. Tanto os norte-americanos como os estrangeiros olhavam para os Estados Unidos como a terra das oportunidades. Uma sondagem efectuada pelo Pew Research Center mostrou que a grande maioria dos norte-americanos – cerca de 87% – concorda que «a nossa sociedade deve fazer o necessário para garantir que todos tenham a mesma oportunidade de serem bem-sucedidos». Mas era óbvio que não tínhamos.
A crise continua a atingir os do meio e os da base
Já passou mais de meia década desde que começou a recessão. O défice de emprego – a diferença entre o número de postos de trabalho actuais e o número de postos de trabalho que haveria caso a economia funcionasse normalmente – continua a crescer. E os rendimentos dos norte-americanos comuns continuam a diminuir. À medida que a depressão económica prevalece – enquanto este livro é editado (2012), mais de cinco anos após o início da Grande Recessão –, as consequências da desigualdade persistente, de uma rede de segurança deficiente e de uma austeridade crescente sentem-se cada vez mais.
Como é evidente, os do topo continuaram a ter o apoio da Reserva Federal. As suas baixas taxas de juro foram implementadas para ajudar a reforçar os preços das acções. Esses preços voltaram aos níveis anteriores à crise (ainda assim, ajustados à inflação, estão ainda mais baixos). Quem teve os recursos e o bom senso para se manter nos mercados recuperou totalmente. Os 5% mais ricos, que detêm mais de dois terços da riqueza, estão novamente no bom caminho. Os do topo continuaram a ficar com uma enorme fatia da riqueza nacional. A própria revista Economist, [13 Outubro de 2012], defensora do mercado livre, o observou: «Nos Estados Unidos a parte da riqueza nacional que vai para os 0,1% do topo (cerca de 16 mil famílias) subiu de pouco mais de 1% em 1980 para os quase 5% actuais – uma fatia ainda maior do que a que os 0,1% do topo detinham na Era Dourada.» Warren Buffett, ele próprio um membro dos super-ricos, que reconheceu os danos da escandalosa desigualdade nos Estados Unidos, usou as páginas do New York Times no Outono de 2012 para sublinhar a divergência através de outras contas: os 400 norte-americanos mais ricos levaram para casa um «salário» por hora de 97 mil dólares em 2009 (o último ano em que o Fisco providenciou dados) – uma taxa que mais do que duplicou desde 1992.
Os que se encontram no meio e na base da pirâmide social, que têm grande parte da sua riqueza em imobiliário, não se saíram tão bem. Os dados recentemente divulgados mostram que no período da recessão, entre 2007 e 2010, a riqueza média – a riqueza da classe média – caiu cerca de 40%, de volta aos níveis vistos no início da década de 1990. Toda a acumulação de riqueza neste país foi para o topo. Se a base tivesse partilhado do aumento da riqueza nos Estados Unidos, a sua riqueza nas suas duas últimas décadas teria subido cerca de 75%. Os dados mais recentes também mostram que os da base sofreram ainda mais do que a classe média. Antes da crise, a média de riqueza dos 25% da base era de 2300 dólares negativos. Depois da crise, caiu seis vezes mais, para 12.800 dólares negativos.
Não surpreende que a persistente depressão económica tenha conduzido a um contínuo enfraquecimento dos salários: só entre 2010 e 2011, os salários reais diminuíram em cerca de 1% para os homens e mais de 3% para as mulheres. O mesmo aconteceu com os rendimentos do comum dos norte-americanos. Ajustados à inflação, os rendimentos médios por agregado familiar em 2011 (o ano mais recente de que existem dados disponíveis) foram de 50 054 dólares, um número inferior aos 50 661 dólares em 1996.
No Capítulo 1 descrevo como as famílias com poucas qualificações têm vindo a sofrer muito mais com a crise, suportando um marcante decréscimo nos seus padrões de vida.
Estas preocupantes tendências na desigualdade de rendimentos e de riqueza foram superadas por provas ainda mais preocupantes em relação à desigualdade na saúde. Uma vez que a assistência médica melhorou, a esperança média de vida aumentou – em média, nos Estados Unidos, cerca de dois anos entre 1990 e 2000. Mas para os norte-americanos mais pobres não houve qualquer progresso, e para as mulheres pobres a esperança média de vida tem, na verdade, vindo a descer.
Hoje, as mulheres nos Estados Unidos, têm a esperança média de vida feminina mais baixa entre os países desenvolvidos. O nível de escolaridade, que costuma estar ligado à riqueza e à raça, é um grande e crescente preditor de vida. Mulheres brancas não hispânicas com curso universitário têm uma esperança de vida que é cerca de dez anos superior à das mulheres negras e brancas não hispânicas sem o ensino secundário completo. As mulheres brancas não hispânicas sem a escolaridade obrigatória perderam cerca de cinco anos de esperança de vida entre 1990 e 2008. O declínio de três anos na esperança de vida dos homens brancos sem o ensino secundários completo, durante o mesmo período, era apenas um pouco menos dramático.
Decréscimos nos rendimentos e decréscimos no nível de vida costumam ser acompanhados de vários problemas sociais – malnutrição, abuso de drogas e deterioração de vida familiar, o que prejudica a saúde e a esperança de vida. De facto, estes declínios na esperança de vida costumam ser considerados mais reveladores do que os próprios números dos rendimentos. Nos anos seguintes à queda da Cortina de Ferro [Muro de Berlim], na Rússia, os rendimentos caíram. Mas o indicador mais fidedigno da gravidade da situação talvez tenha sido facultado por dados que mostravam uma queda dramática na esperança de vida. Não surpreende que os especialistas em saúde tenham comparado os recentes declínios nos Estados Unidos com o que aconteceu na Rússia. Michael Marmot,[2] director do Institute of Health Equity, em Londres, e um especialista na relação entre rendimentos e saúde, observou que «a queda de cinco anos para as mulheres brancas rivaliza com a catastrófica queda de sete anos para as mulheres russas nos anos após o colapso da União Soviética».
(…)
Joseph E. Stiglitz
Prémio Nobel da Economia 2001
in «O Preço da Desigualdade», 2013.
ÍNDICE da obra «O PREÇO DA DESIGUALDADE»
Capítulo 1 – O problema dos 1% nos Estados Unidos
Capítulo 2 – Rent-seeking e a formação de uma sociedade desigual
Capítulo 3 – Os mercados e a desigualdade
Capítulo 4 – Porque importa
Capítulo 5 – Democracia em jogo
Capítulo 6 – 1984 está à porta
Capítulo 7 – Justiça para todos? De que modo a desigualdade está a destruir o Estado de Direito
Capítulo 8 – A batalha do orçamento
Capítulo 9 – Uma política macroeconómica e um banco central por e para os 1%
Capítulo 10 – O caminho para a frente: outro mundo é possível