teologia para leigos

24 de outubro de 2013

O PREÇO DA DESIGUALDADE 2/4 [J. STIGLITZ]

99% - 1%





II PARTE

RENT-SEEKING e A FORMAÇÃO DE UMA SOCIEDADE DESIGUAL


A desigualdade norte-americana não surgiu do nada. Foi criada. As forças do mercado desempenharam um papel, mas não actuaram sozinhas. De certo modo, deveria ser óbvio: as leis económicas são universais, mas a nossa crescente desigualdade – sobretudo, a grande fatia da qual se apropria os 1% do topo – é uma «conquista» distintamente norte-americana. Esta desigualdade desmesurada não é inevitável, o que nos dá alguma esperança; contudo, é provável que piore. As forças que têm criado estes resultados são auto-sustentadas.

Se compreendermos as origens da desigualdade, podemos perceber melhor os custos e os benefícios de a reduzir. A tese que defendo neste capítulo é muito simples: embora as forças de mercado ajudem a moldar o nível de desigualdade, as políticas governamentais moldam essas forças de mercado. Muita da desigualdade actual resulta de políticas governamentais, tanto as que o Governo aplica como as que se abstém de aplicar. O Estado tem o poder de movimentar dinheiro do topo para a base e para o meio, ou vice-versa.

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Combater a desigualdade implica atacar em várias frentes – temos de controlar os excessos do topo, reforçar a classe média e ajudar os da base. Cada objectivo necessita do seu próprio programa. Porém, para desenvolver tais programas, temos de perceber melhor o que deu origem a cada faceta desta invulgar desigualdade.

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O nosso sistema político tem vindo a funcionar cada vez mais de uma forma que aumenta a desigualdade dos resultados e reduz a igualdade de oportunidades. Isto não devia ser surpresa para ninguém: temos um sistema político que dá um poder excessivo aos do topo, e eles têm usado esse poder não só para limitar a extensão da redistribuição, como também para moldar as regras do jogo a seu favor, e para extrair do público o que pode ser chamado simplesmente de «prendas» avultadas. Os economistas têm um nome para estas actividades: rent-seeking,[1] ou seja, obtenção de rendimentos não como recompensa por se ter criado riqueza, mas por açambarcamento de uma fatia excessiva de riqueza que não se produziu. (Mais à frente, neste Capítulo, daremos uma definição mais completa do conceito de rent-seeking). Os ricos do topo aprenderam a extrair dinheiro dos outros com métodos que esses outros mal conhecem – é essa a sua verdadeira inovação.

Ao que parece, Jean-Baptiste Colbert, conselheiro do rei Luís XIV de França, disse que «a arte da tributação consiste em retirar as penas do ganso com o mínimo de dor possível». O mesmo se aplica à arte de rent-seeking.

Sem rodeios, existem duas formas de enriquecer: criando riqueza ou retirando riqueza dos outros. A primeira dá algo à sociedade. A segunda tem a característica de subtrair à sociedade, uma vez que no processo de tomar a riqueza, há uma parte dela que é destruída. Um monopolista que cobra demais pelo seu produto está a tirar dinheiro a quem está a comprá-lo e, ao mesmo tempo, a destruir o valor. Para conseguir o seu preço de monopólio, tem ainda de limitar a produção.

Infelizmente, mesmo os criadores de riqueza genuínos não costumam ficar satisfeitos com a riqueza que a sua inovação e o seu empreendedorismo colheram. Alguns recorrem eventualmente a práticas abusivas como a definição de preços de monopólio ou outras formas de extracção de rendimentos para colher ainda mais riqueza. A título de exemplo, os barões dos caminhos-de-ferro do século XIX providenciavam um serviço importante de construção de ferrovias, mas grande parte da sua riqueza era resultado da sua influência política, conseguindo grandes concessões de terras governamentais em cada lado da ferrovia. Hoje, cerca de um século depois de os barões dos caminhos-de-ferro terem dominado a economia, grande parte da riqueza dos mais ricos dos Estados Unidos – e das penas das classes mais pobres – resulta destas transferências de riqueza em detrimento da criação de riqueza propriamente dita.

Como é óbvio, nem toda a desigualdade na nossa sociedade resulta da actividade de rent-seeking, ou das medidas governamentais que fazem pender as regras do jogo de modo a favorecer os que estão no topo da pirâmide social. Os mercados também desempenham um papel importante, assim como as forças sociais (é o caso da discriminação). Este Capítulo aborda sobretudo a infinidade de formas que o rent-seeking assume na nossa sociedade, ao passo que o Capítulo seguinte falará dos restantes factores responsáveis pela desigualdade.


Princípios gerais

A mão invisível de Adam Smith e a desigualdade

Adam Smith, pai da economia moderna, defendia que as actividades privadas de interesse pessoal conduziriam – como se de uma mão invisível se tratasse – ao bem-estar de todos.[2] Como consequência da crise financeira, hoje ninguém pode defender que as actividades privadas de interesse pessoal dos banqueiros conduziriam ao bem-estar de todos. No máximo, conduziriam ao bem-estar dos banqueiros, com o resto da sociedade a suportar os custos. Nem sequer se tratou daquilo que os economistas chamam «jogo de soma zero», onde o que uma pessoa ganha é exactamente igual ao que os outros perdem. Foi antes um jogo de soma negativa, onde os ganhos dos vencedores são inferiores às perdas dos derrotados. O que o resto da sociedade perdeu é, de longe, muitíssimo superior ao que os banqueiros ganharam.

(…)

O próprio Adam Smith tinha a consciência de uma das circunstâncias em que os retornos privados e sociais diferem. Como explicou: «É raro que duas pessoas do mesmo ramo de negócios se encontrem, ainda que num âmbito recreativo, sem que daí resulte uma conspiração contra o público, ou um acordo de subida dos preços[3]

Os mercados por si só não costumam obter resultados eficientes e desejáveis, e por isso o Estado tem o dever de corrigir estas falhas dos mercados, ou seja, de criar políticas (impostos e regulações) que alinhem os incentivos privados e os retornos sociais. (Claro que existe alguma discordância em relação à melhor forma de o fazer. Mas hoje poucos acreditam em mercados financeiros livres de restriçõesas suas falhas impõem um custo grande demais para o resto da sociedadeou em deixar as empresas dispor do ambiente sem limitações). Quando o Estado cumpre bem as suas funções, os retornos recebidos, digamos, por um trabalhador ou um investidor, são, na verdade, iguais aos benefícios que as suas acções trazem para a sociedade. Quando não existe alinhamento, dizemos que há uma falha no mercado, ou seja, os mercados não conseguem produzir resultados eficazes. As compensações privadas e os retornos sociais não estão bem alinhados quando a competição é imperfeita, quando existem «externalidades» (quando uma actividade económica tem um defeito benéfico ou prejudicial sobre terceiros, que não estão envolvidos nessa actividade); quando existem imperfeições ou assimetrias de informação (quando alguém sabe algo relevante sobre um negócio que outro não sabe); ou quando os mercados de risco ou outros mercados estão ausentes (quando não é possível, por exemplo, comprar um seguro contra a maioria dos riscos que se enfrentam). Uma vez que há sempre uma ou duas destas condições em quase todos os mercados, não se pode esperar que estes sejam, no geral, eficientes. Isto significa que existe um enorme e potencial papel a desempenhar pelo Estado para corrigir estas falhas dos mercados.

O Estado nunca corrige as falhas dos mercados na perfeição, mas actua melhor nalguns países do que noutros. Só quando o Estado consegue corrigir razoavelmente bem as mais importantes falhas do mercado é que a economia pode prosperar. Uma boa regulação financeira ajudou os Estados Unidos – e o mundo – a evitar uma enorme crise durante quatro décadas após a Grande Depressão. A desregulação nos anos 80 conduziu a mais de 100 crises financeiras nas três décadas seguintes, de que a crise norte-americana de 2008-2009 foi só a pior.[4] Mas estas falhas governamentais não aconteceram por acaso: o sector financeiro usou a sua força política para garantir que as falhas do mercado não fossem corrigidas, e que as compensações privadas do sector continuassem bem acima das suas contribuições sociais, um dos factores que contribuiu para o «inchamento do sector financeiro» e para os altos níveis de desigualdade no topo da pirâmide social.

Moldando os mercados

Descreveremos de seguida algumas das formas como as empresas do sector privado agem para garantir que os mercados não funcionam bem. Por exemplo, como observou Smith, (…)


Joseph E. Stiglitz
Prémio Nobel da Economia 2001








[1] Actividades de rent-seeking, ou «busca de rendas», são tentativas de obter rendas económicas através da manipulação do ambiente social e político onde as actividades económicas ocorrem, em vez de agregar valor. (N. do T.)
[2] A formalização desta ideia é chamada de «primeiro teorema do bem-estar em economia». Declara que em certas circunstâncias – quando os mercados funcionam bem – ninguém pode viver melhor sem fazer outro viver pior. Porém, como explicaremos de forma resumida, há muitos casos em que os mercados não funcionam bem. Uma popular e recente análise é a de Kaushik Basu, Beyond the Invisible Hand: Groundwork for a New Economics (Princeton: Princeton University Press, 2011). Basu usa a metáfora de um espectáculo de magia para descrever a forma como a discussão económica sobre direito político chama a atenção para a conclusão deste teorema – que os mercados são eficientes – e afasta a atenção das muito especiais e irrealistas condições sob as quais a conclusão se mantém – mercados perfeitos. Como um bom mágico, um economista de mercado livre é bem-sucedido quando chama a atenção dos espectadores para o que quer que vejam – coelho a sair da cartola – enquanto distrai a sua atenção de outras coisas – como, em primeiro lugar, o coelho foi para dentro da cartola.
[3] Adam Smith, The Wealth of Nations (Nova Iorque: P. F. Collier, 1902), p. 207.
[4] Ver Carmen Reinhart e Kenneth Rogoff, This Time Is Different: Eight Centuries of Financial Folly (Princeton: Princeton University Press, 2009).