99% - 1%
II
PARTE
RENT-SEEKING e A FORMAÇÃO DE UMA
SOCIEDADE DESIGUAL
A desigualdade
norte-americana não surgiu do nada.
Foi criada. As forças do mercado
desempenharam um papel, mas não actuaram sozinhas. De certo modo, deveria ser
óbvio: as leis económicas são universais, mas a nossa crescente desigualdade –
sobretudo, a grande fatia da qual se apropria os 1% do topo – é uma «conquista»
distintamente norte-americana. Esta desigualdade desmesurada não é inevitável,
o que nos dá alguma esperança; contudo, é provável que piore. As forças que têm criado
estes resultados são auto-sustentadas.
Se compreendermos as origens da
desigualdade, podemos perceber melhor os custos e os benefícios de a reduzir. A
tese que defendo neste capítulo é muito simples: embora as forças de mercado
ajudem a moldar o nível de desigualdade, as políticas governamentais moldam
essas forças de mercado. Muita da desigualdade actual resulta de políticas
governamentais, tanto as que o Governo aplica como as que se abstém de aplicar.
O Estado tem o poder de movimentar dinheiro do topo para a base e para o meio, ou vice-versa.
(…)
Combater a desigualdade
implica atacar em várias frentes – temos de controlar os excessos do
topo,
reforçar
a classe média e ajudar os da base. Cada
objectivo necessita do seu próprio programa. Porém, para desenvolver tais programas,
temos de perceber melhor o que deu origem a cada faceta desta invulgar
desigualdade.
(…)
O nosso sistema político tem vindo a
funcionar cada vez mais de uma forma que aumenta a desigualdade dos resultados
e reduz a igualdade de oportunidades. Isto não devia ser surpresa para ninguém:
temos um sistema político que dá um poder excessivo aos do topo, e eles têm
usado esse poder não só para limitar a extensão da redistribuição, como também
para moldar as regras do jogo a seu favor, e para extrair do público o que pode
ser chamado simplesmente de «prendas» avultadas.
Os economistas têm um nome para estas actividades: rent-seeking,[1]
ou seja, obtenção de rendimentos não como recompensa por se ter criado riqueza,
mas por açambarcamento de uma fatia excessiva de riqueza que não se produziu.
(Mais à frente, neste Capítulo, daremos uma definição mais completa do conceito
de rent-seeking). Os ricos do topo aprenderam a extrair dinheiro dos
outros com métodos que esses outros mal conhecem – é essa a sua verdadeira
inovação.
Ao que parece, Jean-Baptiste Colbert, conselheiro do rei Luís XIV de França, disse que
«a arte da tributação consiste em retirar as penas
do ganso com o mínimo de dor possível». O mesmo se aplica à arte de rent-seeking.
Sem rodeios, existem duas formas de enriquecer: criando riqueza ou retirando
riqueza dos outros. A primeira dá algo à sociedade. A segunda tem a
característica de subtrair à sociedade, uma vez que no processo de tomar a
riqueza, há uma parte dela que é destruída. Um monopolista que cobra demais
pelo seu produto está a tirar dinheiro a quem está a comprá-lo e, ao mesmo
tempo, a destruir o valor. Para conseguir o seu preço de monopólio, tem ainda
de limitar a produção.
Infelizmente, mesmo os criadores de
riqueza genuínos não costumam ficar satisfeitos com a riqueza que a sua
inovação e o seu empreendedorismo colheram. Alguns recorrem eventualmente a práticas abusivas como a definição de preços de
monopólio ou outras formas de extracção de rendimentos para colher ainda mais
riqueza. A título de exemplo, os barões dos caminhos-de-ferro do século XIX providenciavam
um serviço importante de construção de ferrovias, mas grande parte da sua
riqueza era resultado da sua influência política, conseguindo
grandes concessões de terras governamentais em cada lado da ferrovia.
Hoje, cerca de um século depois de os barões dos caminhos-de-ferro terem
dominado a economia, grande parte da riqueza dos mais ricos dos Estados Unidos
– e das penas das classes mais pobres
– resulta destas transferências de riqueza em detrimento da criação de riqueza
propriamente dita.
Como é óbvio, nem toda a
desigualdade na nossa sociedade resulta da actividade de rent-seeking,
ou das medidas governamentais que fazem pender as regras do jogo de modo a
favorecer os que estão no topo da pirâmide social. Os mercados também desempenham um
papel importante, assim como as forças sociais (é o caso da discriminação).
Este Capítulo aborda sobretudo a infinidade de formas que o rent-seeking
assume na nossa sociedade, ao passo que o Capítulo seguinte falará dos
restantes factores responsáveis pela desigualdade.
Princípios gerais
A mão invisível de Adam
Smith e a desigualdade
Adam Smith, pai da economia moderna, defendia
que as actividades privadas de interesse pessoal conduziriam – como se de uma
mão invisível se tratasse – ao bem-estar de todos.[2]
Como consequência da crise financeira, hoje ninguém pode defender que as
actividades privadas de interesse pessoal dos banqueiros conduziriam ao
bem-estar de todos. No máximo, conduziriam ao
bem-estar dos banqueiros, com o
resto da sociedade a suportar os custos. Nem sequer se tratou
daquilo que os economistas chamam «jogo de soma zero», onde o que uma pessoa
ganha é exactamente igual ao que os outros perdem. Foi antes um jogo de soma negativa, onde os ganhos dos
vencedores são inferiores às perdas dos derrotados. O que o resto da sociedade
perdeu é, de longe, muitíssimo superior ao que os banqueiros ganharam.
(…)
O próprio Adam Smith tinha a
consciência de uma das circunstâncias em que os retornos privados e sociais
diferem. Como explicou: «É raro que duas pessoas do
mesmo ramo de negócios se encontrem, ainda que num âmbito recreativo, sem que
daí resulte uma conspiração contra o público, ou um acordo de subida
dos preços.»[3]
Os mercados por si só não costumam
obter resultados eficientes e desejáveis, e por isso o Estado tem o dever de
corrigir estas falhas dos mercados,
ou seja, de criar políticas (impostos e regulações) que alinhem os incentivos
privados e os retornos sociais. (Claro que existe alguma discordância em
relação à melhor forma de o fazer. Mas hoje poucos
acreditam em mercados financeiros livres de restrições – as suas falhas impõem um custo grande demais para o resto da
sociedade – ou em deixar as empresas
dispor do ambiente sem limitações). Quando o Estado cumpre bem as
suas funções, os retornos recebidos, digamos, por um trabalhador ou um
investidor, são, na verdade, iguais aos benefícios que as suas acções trazem
para a sociedade. Quando não existe alinhamento, dizemos que há uma falha no
mercado, ou seja, os mercados não conseguem produzir resultados eficazes. As
compensações privadas e os retornos sociais não estão bem alinhados quando a competição é imperfeita, quando existem «externalidades» (quando uma actividade económica
tem um defeito benéfico ou prejudicial sobre terceiros, que não estão
envolvidos nessa actividade); quando existem imperfeições ou assimetrias de informação (quando alguém sabe
algo relevante sobre um negócio que outro não sabe); ou quando os mercados de risco ou outros mercados estão
ausentes (quando não é possível, por exemplo, comprar um seguro
contra a maioria dos riscos que se enfrentam). Uma vez que há sempre uma ou
duas destas condições em quase todos os mercados, não se pode esperar que estes
sejam, no geral, eficientes. Isto significa que existe um enorme e potencial papel a desempenhar pelo Estado
para corrigir estas falhas dos mercados.
O Estado nunca corrige as falhas dos
mercados na perfeição, mas actua melhor nalguns países do que noutros. Só quando o Estado consegue corrigir
razoavelmente bem as mais importantes falhas do mercado é que a economia pode
prosperar. Uma boa regulação financeira ajudou os Estados Unidos – e o mundo –
a evitar uma enorme crise durante quatro décadas após a Grande Depressão. A
desregulação nos anos 80 conduziu a mais de 100
crises financeiras nas três décadas
seguintes, de que a crise norte-americana de 2008-2009 foi só a
pior.[4]
Mas estas falhas governamentais não aconteceram por acaso: o sector financeiro
usou a sua força política para garantir que as falhas do mercado não fossem corrigidas, e que as compensações
privadas do sector continuassem bem acima das suas contribuições sociais, um
dos factores que contribuiu para o «inchamento do sector financeiro» e para os
altos níveis de desigualdade no topo da pirâmide social.
Moldando os mercados
Descreveremos de seguida algumas das
formas como as empresas do sector privado agem para garantir que os mercados não funcionam bem. Por exemplo, como observou
Smith, (…)
Joseph E. Stiglitz
Prémio
Nobel da Economia 2001
[1]
Actividades de rent-seeking, ou
«busca de rendas», são tentativas de obter rendas económicas através da
manipulação do ambiente social e político onde as actividades económicas
ocorrem, em vez de agregar valor. (N. do T.)
[2]
A formalização desta ideia é chamada de «primeiro
teorema do bem-estar em economia». Declara que em certas
circunstâncias – quando os mercados funcionam bem – ninguém pode viver melhor
sem fazer outro viver pior. Porém, como explicaremos de forma resumida, há
muitos casos em que os mercados não funcionam bem. Uma popular e recente análise é a de Kaushik Basu, Beyond
the Invisible Hand: Groundwork for a New Economics (Princeton:
Princeton University Press, 2011). Basu usa a metáfora de um espectáculo
de magia para descrever a forma como a discussão económica sobre direito
político chama a atenção para a conclusão deste teorema – que os mercados são
eficientes – e afasta a atenção das muito especiais e irrealistas condições sob
as quais a conclusão se mantém – mercados perfeitos. Como um bom mágico, um
economista de mercado livre é bem-sucedido quando chama a atenção dos
espectadores para o que quer que vejam – coelho a
sair da cartola – enquanto distrai a sua atenção de outras coisas – como, em primeiro lugar, o coelho foi para dentro da cartola.
[3] Adam Smith, The Wealth of Nations (Nova Iorque: P. F.
Collier, 1902), p. 207.
[4] Ver Carmen Reinhart e Kenneth
Rogoff, This Time Is Different: Eight Centuries
of Financial Folly (Princeton: Princeton University
Press, 2009).