Depois
de ter terminado a tradução deste VI Cap. que agora tem diante de si (o último
capítulo deste extenso trabalho sobre antropologia do pobre), fiquei a pensar
que aquilo que VERDADEIRAMENTE merecia ser editado em português eram os cinco
capítulos anteriores a este.
Que
extraordinária meditação, reflexiva e ao mesmo tempo maternal e amorosa, não
sobre os pobres, mas sobre as pessoas pobres, as pessoas mal apresentadas por
fora, e sobretudo, destruídas por dentro!
Um
imprescindível instrumento de trabalho. Um tesouro!
Bom
– na impossibilidade de mais, deixo, na folha de rosto, o link de todo o documento
em castelhano (que contém 79 páginas).
A
Igreja católica desenvolveu, ao longo dos tempos, diversas ambiguidades na sua
relação com os marginalizados, ambiguidades com origem em causas diversas. Dois exemplos: faz sentido a Igreja institucionalizar a distribuição de bens fora do contexto íntimo duma dinâmica comunitária? Em matéria de «assistência aos pobres» (pseudo-ajuda), faz sentido a Igreja pôr-se ao serviço dum Governo Neo-liberal e de Capitalismo financeirizado selvagem como almofada para as suas políticas austeritárias?
Estas duas perguntas são cada vez mais pertinentes. A primeira, de natureza teológica (eclesiológica; cf. «A Igreja não pode ser uma ONG» - Papa Francisco). A segunda, de natureza estratégica (evangelização / missionação). Esta segunda tem a premência da época que atravessamos, pois é uma época em que as finanças penetraram todas as relações comerciais, numa extensão directa sem precedentes. E em que a envergadura deste fenómeno é a da maior "acumulação de capital" e de "intensificação das suas crises" (Ben Fine, 2005). «Para Krippner, na sua panorâmica sobre a financeirização contemporânea nos Estados Unidos, tal [fenómeno] "não corresponde necessariamente a uma fase inteiramente nova do capitalismo..."» (Ben Fine). Aquilo a que chamamos 'disfuncionamento do sistema' tem causas (leis) sistémicas, são resultado da flexibilização em todos os mercados e da desvalorização do salário (...). «Por outras palavras, as leis que determinam a repartição de rendimentos são centrais na crise de hoje. Nunca como agora David Ricardo esteve tão actual, quando afirmou nos seus Princípios que «[o] principal problema da Economia Política consiste em determinar as leis que regem esta distribuição». (João Ferreira do Amaral, Gerald Epstein, Ben Fine, Jan Toporowski, "Financeirização da Economia - a última fase do neoliberalismo", FEUC, Ed. 'LIVRE', Lisboa 2010, ISBN 978-972-8920-69-2, Telf.: 21.886.7519)
Perante esta «espiral do inferno» em que «é o futuro de cada um de nós que alguém anda a caçar» (ibidem, p. 5), a Igreja deve rever e re-equacionar toda a sua estratégia caritativa. É nesta linha que se posiciona o texto do padre Federico Carrasquilla. Parte deste pano de fundo económico, financeiro e político para redirecionar a "estratégia" evangélica da Fé, bem como a forma inteligente e eficaz da Igreja viver a sua relação com os pobres. O apresentador do livro, o padre Horacio Arango, diz o seguinte:
Apetece perguntar: a ajuda aos pobres por parte da Igreja católica em Portugal realiza, dentro dela, o "encontro vital" com os pobres e a sua (da Igreja) "experiência de pobreza"?
O enriquecimento espiritual e as consequências revolucionárias (no sentido social e político da expressão) por parte do texto do padre Federico, escrito por quem viveu no meio dos pobres de vários continentes décadas a fio, é uma ajuda preciosa a muita “boa vontade cristã” pouco inteligente e ineficaz, que, por vezes, não faz mais do que curar feridas cancerosas com mercurocromo e pensos rápidos… É urgente lê-lo. Lê-lo não, mastigá-lo e regressar sempre a ele, tal como fazemos com o evangelho de Jesus, Jesus o pobre de Nazaré, que, precisamente por ser pobre, era o «Irmãozinho Universal», o Salvador universal, na feliz expressão de Charles de Foucauld.
Estas duas perguntas são cada vez mais pertinentes. A primeira, de natureza teológica (eclesiológica; cf. «A Igreja não pode ser uma ONG» - Papa Francisco). A segunda, de natureza estratégica (evangelização / missionação). Esta segunda tem a premência da época que atravessamos, pois é uma época em que as finanças penetraram todas as relações comerciais, numa extensão directa sem precedentes. E em que a envergadura deste fenómeno é a da maior "acumulação de capital" e de "intensificação das suas crises" (Ben Fine, 2005). «Para Krippner, na sua panorâmica sobre a financeirização contemporânea nos Estados Unidos, tal [fenómeno] "não corresponde necessariamente a uma fase inteiramente nova do capitalismo..."» (Ben Fine). Aquilo a que chamamos 'disfuncionamento do sistema' tem causas (leis) sistémicas, são resultado da flexibilização em todos os mercados e da desvalorização do salário (...). «Por outras palavras, as leis que determinam a repartição de rendimentos são centrais na crise de hoje. Nunca como agora David Ricardo esteve tão actual, quando afirmou nos seus Princípios que «[o] principal problema da Economia Política consiste em determinar as leis que regem esta distribuição». (João Ferreira do Amaral, Gerald Epstein, Ben Fine, Jan Toporowski, "Financeirização da Economia - a última fase do neoliberalismo", FEUC, Ed. 'LIVRE', Lisboa 2010, ISBN 978-972-8920-69-2, Telf.: 21.886.7519)
Perante esta «espiral do inferno» em que «é o futuro de cada um de nós que alguém anda a caçar» (ibidem, p. 5), a Igreja deve rever e re-equacionar toda a sua estratégia caritativa. É nesta linha que se posiciona o texto do padre Federico Carrasquilla. Parte deste pano de fundo económico, financeiro e político para redirecionar a "estratégia" evangélica da Fé, bem como a forma inteligente e eficaz da Igreja viver a sua relação com os pobres. O apresentador do livro, o padre Horacio Arango, diz o seguinte:
«A mi juicio, esta antropología plantea como
condición que el esfuerzo reflexivo se articule a partir de una experiencia vital de encuentro con los
pobres, que incluye de alguna manera nuestra propia experiencia de pobreza.»
«Una mirada atenta
a los pobres - nos dice Federico -, al mundo de significaciones que allí se
descubre, mejor aún, una mirada desde el corazón de los pobres,
nos permite descubrir una serie de valores que ponen a las
personas en el
centro de interés: la acogida, la
gratuidad, la fiesta, entre otros valores, nos hacen descubrir que en el
mundo de pobres cuentan primero las personas.»
[Horacio Arango, sj]
Apetece perguntar: a ajuda aos pobres por parte da Igreja católica em Portugal realiza, dentro dela, o "encontro vital" com os pobres e a sua (da Igreja) "experiência de pobreza"?
O enriquecimento espiritual e as consequências revolucionárias (no sentido social e político da expressão) por parte do texto do padre Federico, escrito por quem viveu no meio dos pobres de vários continentes décadas a fio, é uma ajuda preciosa a muita “boa vontade cristã” pouco inteligente e ineficaz, que, por vezes, não faz mais do que curar feridas cancerosas com mercurocromo e pensos rápidos… É urgente lê-lo. Lê-lo não, mastigá-lo e regressar sempre a ele, tal como fazemos com o evangelho de Jesus, Jesus o pobre de Nazaré, que, precisamente por ser pobre, era o «Irmãozinho Universal», o Salvador universal, na feliz expressão de Charles de Foucauld.
Como é
que Jesus viveu a sua condição de pobre?
Qual a atitude
de Jesus diante do pobre?
Elementos de
Antropologia Evangélica
Até aqui analisamos o seguinte: [o
que é a Antropologia do pobre]; o que é ser pobre; em que consiste o mundo
do pobre; em que consiste a desestruturação de que o pobre sofre; e em que
consiste o compromisso com o pobre.
Agora, trata-se de fazer uma leitura bíblica de tudo isso: ou seja, a partir
da prática de Jesus, que se deve pensar de tudo isso? Iremos procurar
aproximar-nos da maneira como Jesus viveu a sua ‘existência pobre’ e como
reagiu diante do pobre. Este tema é muito amplo e dispomos de igualmente ampla
bibliografia. Mas, neste texto, não pretendemos mais do que fornecer alguns
elementos de Antropologia Evangélica, os quais
nos permitam ler, a partir da fé, a existência do pobre, tal como a analisamos
nos capítulos anteriores. Sendo assim, primeiramente, veremos como é que Jesus
viveu a sua condição de pobre e como é que se situou diante do pobre. Depois,
em que consiste a originalidade de Jesus, quanto a esta questão.
1. Como é que Jesus viveu
a sua condição de pobre
1.a Significado humano
da pobreza em Jesus
Que significou, para Jesus, a existência
pobre? Antes de mais nada, há que constatar que Jesus levou uma vida pobre
e viveu entre pobres. Tal facto não pode ser ocultado e possui um significado
antropológico: para Jesus, a pobreza foi a forma
que escolheu para viver a sua existência humana, e, como homem, tal
facto exprime uma certa maneira de ser
e de actuar. Jesus viveu como
homem à maneira do pobre. Por isso, a existência pobre, em Jesus, tem, não
apenas, um sentido espiritual (este aspecto era enfatizado e talvez demasiado
sublinhado, sobretudo na América Latina, antes da Conferência de Medellín,):
enfatizava-se que Jesus fora pobre por uma questão de humildade pessoal, que se
fez pobre “para nos dar o exemplo”, que Jesus se fez pobre tal como se faz
pobre um rico quando se veste de roupas pobres. Assim considerada, a existência
pobre de Jesus não tem qualquer significado nem questiona minimamente o estilo
de vida das pessoas. Nem sequer chega a ter um significado sociológico, como
chega a ter a seguinte afirmação: “sofreu a condição sociológico do pobre”.
A seguir ao concílio ecuménico
Vaticano II, sobretudo na América Latina, insistiu-se na dimensão sociológica
da pobreza de Jesus: que Jesus se fizera como os pobres; que pertencia à classe
social dos pobres. Passou-se, então, duma concepção puramente espiritualista a
uma concepção sociológica. Mas, a verdade é que a existência de Jesus tem,
antes de mais nada, um significado antropológico:
fazer-se pobre foi a sua maneira de assumir a
condição humana.
Separando as duas concepções ─ a espiritual e a sociológica ─ fica-se com uma leitura rafada e
parcializada da Encarnação. Aquilo que recupera a dimensão total da Encarnação
é a dimensão antropológica, na medida em que complementa a dimensão espiritual
e a sociológica.
Em Jesus, a pobreza tem três
dimensões:
- para Jesus, ser pobre é uma
maneira de ser homem (dimensão antropológica),
- o qual exprime humildade (dimensão espiritual),
- a qual se concretiza num estilo de
vida à maneira dos pobres (dimensão sociológica).
Ampliemos esta maneira de ver a
pobreza de Jesus, porque ela é essencial, não apenas para compreender a
existência pobre de Jesus, como para descobrir o seu significado para o ser
humano.
Estas
três dimensões aparecem na Carta aos Filipenses
2:5 e seguintes: «Tende entre vós os mesmos
sentimentos, que estão em
Cristo Jesus: Ele, que é de condição divina, não insistiu
em ser igual a Deus; mas, esvaziou-se a si mesmo, tomando a
condição de servo. Tornando-se semelhante aos homens e sendo, ao manifestar-se,
identificado como homem, rebaixou-se a si mesmo, tornando-se
obediente até à morte e morte de cruz». «Rebaixou-se a si mesmo» - eis a dimensão
espiritual. «Tomando a condição de servo» - dimensão antropológica: ainda por
cima, fez-se homem pobre. «Obediente até à morte e morte de cruz» -
concretizando a condição humana de pobre, assumiu a condição dos mais pobres de
entre os pobres: dimensão sociológica.
Para respeitar o sentido total da existência de Jesus é
preciso ter em conta estas três dimensões e recuperar, sobretudo, a dimensão
antropológica, porque, se se leva apenas em conta a dimensão espiritual ou a
dimensão sociológica, está-se a falsear o sentido real da existência de Jesus e
o respectivo valor para a compreensão da existência humana, bem como a
orientação do tipo de compromisso com o pobre.
Vejamos isto mais em concreto, pois são perigos concretos em
que já se caiu e que em alguns sítios ainda se mantêm.
Insistir no facto da pobreza de Jesus ser apenas, ou
primordialmente, sinal de humildade, dissolve ou desvirtua o sentido da
Encarnação. Isto é frequentemente comum numa certa orientação teológica
latino-americana, a qual, no fundo, pretende retirar força e radicalidade à
opção pelos pobres. Já se disse e ainda se escreve: “que a opção de Deus não
foi pelo pobre, mas pelo homem”. Tal afirmação desvirtua a Encarnação, já que o
Homem não existe em abstracto: o que existe é este homem concreto, e a
determinante primeira do homem concreto é a sua condição material, o medo em
que vive mergulhado. Este homem, concreto, existe como pobre ou como rico.
Quando dizemos que a opção de Jesus é pelo homem pairamos no abstracto e
dissolvemos o escândalo da Encarnação. Um Deus que se veste de pobre não
é um escândalo: é como cobrirmo-nos duma vestimenta que não nos pertence.
Escândalo não é um rico vestir-se pobremente. O que é incompreensível é que o
Deus menino tenha que por-se em fuga
diante dum tirano que o quer matar e tenha que ser levado ao colo. Que tal
figurinha seja um Deus, isso, sim, é um escândalo: para a razão humana é algo
insólito. A pergunta é: que raio de Deus é esse que
não tem poder nem sabe defender-se?
Portanto, se nos ficarmos apenas pelo meramente espiritual,
anula-se o escândalo e o verdadeiro sentido da Encarnação. Porém, se se diz
que, antes de mais nada, Deus se fez um
da classe pobre (no sentido sociológico), ou seja, que viveu à
maneira dos pobres, estamos a retirar sentido universal à existência de Jesus,
na medida em que nem todos podem pertencer à classe pobre. A significação
humana de Jesus destina-se ao mundo inteiro, mas nem todo o mundo pode
pertencer a um grupo social determinado.
Que Jesus tenha nascido pobre, isso não é circunstancial nem
acidental, mas que tenha nascido num casebre, no meio dos animais, numa gruta,
isso não é acidental. Que Jesus nasceu numa estrebaria isso é casual (factual),
mas nascer pobre não é casual: nascer pobre tem
significado humano. Portanto, Jesus pobre é a sua maneira de ser e
de fazer-se homem. Essa foi a maneira que teve de assumir a existência humana;
assim, constitui uma proposta para todos os homens. Por outras palavras, Deus decidiu que o seu Filho se fizesse homem e,
por isso, teve que escolher um estilo de vida:
escolheu a existência pobre. Jesus, na
sua maneira de ser homem, foi pobre: eis a oferta de vida com que quer
presentear todo o mundo. A vida pobre de Jesus é um chamamento dirigido a todo
o mundo e não apenas aos religiosos. O religioso é aquele que radicaliza essa
maneira humana que Jesus teve de viver. Portanto, os
votos têm um significado humano[1]. Que
significa fazer voto de pobreza? Significa optar por uma maneira de viver que
seja a que Jesus levou. No entanto, a oferta de vida pobre que Jesus faz é
oferta para todos os homens. Por isso, o cristão é o que assume, na sua vida, a
maneira de Jesus.
Finalmente, é necessário fazer uma afirmação fundamental: o
valor último e o significado definitivo dessa existência humana de Jesus vem
dum dado da fé: para o cristão, Jesus é Deus – é o Filho de Deus – é a imagem
do Deus invisível, primogénito de toda a criatura em quem Deus quis que
habitasse toda a Plenitude. Por isso, em tudo o que comentemos acerca da
existência pobre de Jesus, é preciso ter presente que essa existência pobre é a
existência humana de Deus, é a maneira e o lugar a partir do qual Deus quis
revelar-se e mostrar-se aos homens. Eis, portanto, o valor daquilo que vamos
dizer acerca da pobreza de Jesus e, portanto, da pobreza do pobre.
1.b Jesus optou por levar uma vida pobre
A vida pobre de Jesus é o resultado
de uma opção, é pura gratuitidade. Jesus foi pobre porque quis. É
o que está escrito na Segunda Carta aos Coríntios (8:9): «Conheceis bem a bondade de Nosso Senhor Jesus Cristo
que, sendo rico, se fez pobre por vós, para vos enriquecer com a sua pobreza».
Jesus é a única pessoa que pode escolher o seu estilo de vida: nós, sem querer,
nascemos determinados (…)
Federico Carrasquilla M
[15 pp.]
[«Escuchemos
a los Pobres – Aportes para una Antropolgía del Pobre», 79 pp.]