teologia para leigos

28 de junho de 2013

SANTIDADE=«CARREGAR-SE» [J SOBRINO]

«A santidade primordial»






c/ Dar a palavra ao “anónimo” por contraposição ao “elitismo”

(…) Para além dos “argumentos” que tentei aduzir para falar de «santidade primordial» e de «martírio primordial», pretendo acrescentar outro argumento de tipo pessoal e existencial. Quer a vida primária – mesmo depois dum terramoto – quer a morte primária – aquando de massacres – são frequentemente massivos, mas rapidamente terminam no anonimato. E, o que é pior do que isso, do ponto de vista cristão, a Igreja e os cristãos não sabem o que fazer com essa massividade de vítimas anónimas que não nos saem da frente. Nem sequer temos nome para esses milhões de homens e mulheres.

Na Igreja, e na teologia, na tradição das Ordens Religiosas, todos sabemos o que fazer com os santos e mártires activos, mas quase ninguém sabe – salvo raras excepções – o que fazer com os povos pobres e crucificados. Todos sabemos o que fazer com os santos canonizados, mas não com a santidade primordial. Julgo que o que aqui está em causa é uma certa visão da santidade, do martírio e uma certa visão da vida cristã como se devesse ser algo excepcional, digamos “elitista” (não querendo dar-lhe qualquer conotação pejorativa ao termo ‘elitista’, mas relevando-lhe a característica de termo perigoso…). Sem dúvida que chama mais a atenção e é mais fácil conhecer o que algumas pessoas são e fazem (monsenhor Óscar Romero), do que o que são e fazem, sofrem e padecem as maiorias. Certamente que existe algo por trás desta tendência para o excepcional e elitista.

Há passagens bíblicas, por exemplo nos sinópticos, que revelam admiração e sabem o que fazer dos discípulos e dos seguidores de Jesus, mas o mesmo não acontece quando se trata das multidões que acorrem a Jesus vindas de todos os lados: pobres, enfermos, pecadores, mulheres, publicanos. E, no entanto, é destes que Jesus diz que é o Reino de Deus. Como jesuíta, às vezes digo, sem ironia, mas para iluminar a tensão entre o elitista excepcional e brilhante e a realidade monótona e descarnada, que, sem conhecer Santo Inácio de Loyola, nem sequer ter feito Exercícios Espirituais, nem ter tido a visão de La Storta[1], dois ou três milhões de seres humanos foram escolhidos para «viver na pobreza» e que o Pai os «juntou ao Filho»… - enternecedora oração que santo Inácio fazia. Sabemos o que fazer com os seguidores de Jesus que pedem para «ser juntados ao Filho», mas é frequente não sabermos que fazer com aqueles que – sem nunca o terem pedido – foram postos juntos com o Filho, sem dúvida alguma, numa Cruz bem real.

Algo semelhante ocorre com as vítimas e os mártires. Sabemos sempre o que fazer com os «mártires jesuânicos», mas regra geral não sabemos o que fazer com o «povo crucificado» - esse não saber não é coisa pouca. Devemos sublinhar que seria irónico concentramo-nos nos santos exímios e ignorar as “maiorias vítimas”, na medida em que o que os primeiros nos pedem é que, precisamente, estejamos junto às suas cruzes, que respeitemos profundamente esse seu mistério, o qual, ao mesmo tempo, esconde e transparencia[2] o mistério de Deus, que nos deixemos agraciar, perdoar e salvar por esse mistério divino, que nos apouquemos ao ponto de dar as nossas vidas e de os fazer baixar das suas cruzes.

É a partir da primariedade da vida, e não apenas a partir dos santos exímios, que teremos que repensar o que é a virtude cristã e a vida heróica; que significa seguir Jesus e reproduzir a sua vida; o que quer dizer amor e fidelidade ao Povo de Deus; quem cumpre e como cumpre as bem-aventuranças e também Mateus 25. Julgo que teremos que ampliar o horizonte em que a santidade é pensada. Ela nada tem a ver com os massacres em El Mozote[3] ou o acantonamento – desumano, na máxima pobreza, indefensável e indigno – em Kigali?

Não sei quem ama mais a Deus, se os santos canonizados ou se esses homens e essas mulheres anónimas, por vezes, verdadeiros dejectos humanos. Muito menos sabemos quem Deus mais ama – desculpem-me estas perguntas despropositadas diante do mistério de Deus. Porém, Deus disse com a máxima clareza quem são os seus predilectos. Curiosamente, ninguém tem isso em conta quando se pensa a teoria e a prática das canonizações. O que é que, como novidade, a Igreja, e a teologia, produziu de modo a mostrar, com clareza, esse amor predilecto de Deus pelos pobres e pelas vítimas e de modo a colocar esse amor no centro da sua missão?

Seja lá o que tenha feito, creio que é imperioso repensar a própria noção de santidade, não para acrescentar, às que já existem, mais precisões canónicas, mas para levar ao cumprimento o facto incontestavelmente maior da humanidade: - a santidade primordial dos que querem viver e o martírio primordial dos que são vítimas inocentes e indefesas do poder de sempre e, seguramente, vítimas da humanidade de agora. Acreditamos que os pobres, vítimas da injustiça quotidiana, de terramotos e de repressão, participam duma santidade que é de uma ordem distinta, quase metafísica, diria!, pelo seu elementaríssimo trabalho e pela esperança em tão só procurar terem mão na vida, e pelo mistério de estarem privados de viver quando são inocentemente assassinados. Eis a santidade primária.


1.2 A ultimidade[4] da vida e a parcialidade para o pobre. A intuição da Bíblia

Será que, na Escritura, existe este tipo de reflexão? Estou convicto que a intuição central da Escritura converge com o que até aqui dissemos, conferindo-lhe uma definitiva justificação teologal. Recordemos, resumidamente, aspectos fundamentais por todos já conhecidos[5], que podem ser tomados como equivalentes da santidade primordial.

Num terramoto explode a primariedade da vida e nos massacres explode a primariedade da morte. Esta primariedade é independente da condição das vítimas – pobre, classe média, endinheirados –, mas onde mais claramente surge a primariedade da vida é nos pobres.[6] Pobre quer dizer vida vulnerável, ameaçada, negada, mas também vida ansiada e defendida, podendo-se, assim, a partir desta perspectiva, analisar a importância que tem a vida primária na tradição bíblico-cristã. É fundamental que o lembremos, já que tal facto não aparece assim tão claramente noutras tradições, incluindo a da democracia, a qual põe mais a tónica sobre os direitos e os valores do cidadão. A explicação para isso talvez tenha a ver com a forma como se olha a realidade social, a qual, pelo menos nos países onde a democracia ocidental vigora, seja vista a partir do elemento ‘cidadão’ e menos a partir do elemento ‘pobre’. Ao contrário, a tradição bíblico-cristã, repescada hoje em dia sobretudo pelo Terceiro Mundo, confere ultimidade à “vida primária” e isso acontece porque se outorga ultimidade ao pobre. Ao mesmo tempo, esta ultimidade do pobre surge na parcialidade de Deus para com o pobre: vida primária do pobre e parcialidade de Deus correlacionam-se.

No acontecimento fundante da tradição bíblica, Deus revela-se a um povo pobre e oprimido ao nível do mais básico da vida e da dignidade do ser humano, desejando libertá-lo. (…)

Porém, é específico dessa tradição que essa salvação vem do débil e do pequeno: uma velha estéril, o minúsculo povo de Israel, um judeu marginal… O débil e o pequeno estão no centro do dinamismo da salvação. Eles são os seus portadores, não apenas os seus beneficiários. A utopia responde à sua esperança e não à esperança dos poderosos. A sua pequenez expressa a gratuitidade da salvação - não a hybris. (…)

Essas «vítimas de hoje» trazem salvação, e uma salvação também histórica.[7] (…)


2. Santidade primordial e solidariedade: «carregarmo-nos mutuamente»

Um terramoto desencadeia ajuda, e já dissemos que por causa do seu dinamismo intrínseco – para além de pôr em marcha conhecimentos e capacidades técnicas necessárias – pode levar a atitudes profundamente humanas: «dar-se» e não apenas dar; «fixar-se» (de alguma maneira: física ou espiritualmente) no lugar da catástrofe, e não apenas ir até lá; e fazê-lo «para sempre» (uma vez mais, física ou espiritualmente), e não só durante uma temporada. Estes são elementos que já mencionamos ao falar de como a ajuda pode desembocar na solidariedade. Agora pretendemos aprofundar dois aspectos fundamentais desta solidariedade. Quem convoca a solidariedade e que significa ‘carregar-se mutuamente’. (…)

Pois bem, o primeiro passo da solidariedade é que «os outros» ajudem a «carregar com o peso da realidade» dos povos crucificados, o que pressupõe que sejam eles mesmos a carregá-lo.

O segundo passo é dar-se conta que – inesperadamente –, nesse carregar com a realidade, a realidade carrega com eles (com os solidários, com os que ajudam). O povo crucificado carrega com eles, oferece-lhes luz, força, ânimo. Então, a relação que se estabelece é já a de dar e receber. Na medida do possível, quebram-se atitudes seculares que pareciam impossíveis de se romperem, relações intocáveis entre «ajudantes» e «ajudados». Chega-se, assim, à conclusão existencial de que ninguém pode ser tão prepotente ao ponto de pensar que só pode dar e não receber nada. E de que ninguém deve ser tão timorato assim ao ponto de pensar que só tem a receber e nada a dar. Assim, os desiguais carregam-se mutuamente. Vejamos isso, então. (…)



Jon Sobrino, sj

“La santidad primordial”, in «Terremoto, Terrorismo, Barbarie y Utopía – El Salvador, Nueva York, Afganistán», Ed. Trotta 2002, 123-168, cit. 132-136.





[1] Em Outubro de 1538, quando se prestava para se pôr ao serviço do Papa a fim de receber a aprovação papal para a sua viagem à Terra Santa, Inácio de Loyola parou para rezar na capela de La Storta, próxima de Roma, onde acabaria por ter uma experiência profunda, que iria marcar decisivamente o futuro do seu grupo de companheiros. [Nota do tradutor]
[2] Do verbo ‘transparenciar’, tornar transparente. [Nota do tradutor]
[3] Aldeia de ‘El Mozote’, 11 de Dezembro de 1981, em El Salvador, apoiado por Ronald Reagen, 800 civis foram chacinados pelas tropas salvadorenhas (cf. a obra de MARK DANNER, jornalista norte-americano).
[4]Ultimidade’ significa ‘realidade última’, definitiva porque definidora. [Nota do tradutor]
[5] Jon Sobrino, Jesucristo Liberador, Trotta, Madrid, 42001, pp. 115-121 [pp. 111-120 na 5ª Edição de 2010]
[6] Na Escritura surge muito mais frequentemente a opressão dos pobres no quotidiano que a repressão sob a forma de massacres. Por isso, iremos referir-nos mais ao primeiro do que ao segundo modo.
[7] O subtítulo do artigo citado de Ellacuría é «Ensayo de soteriología histórica». De igual modo, o seu último artigo teológico, «Utopía y profetismo desde América Latina», (Revista Latinoamericana de Teologia 17 [1989], pp. 141-184) tem como subtítulo «Un ensayo concreto de soteriologia histórica».