teologia para leigos

23 de junho de 2013

IGREJA E DINHEIRO [G. FAUS]

NEGAÇÃO DA ABSOLUTA INCOMPATIBILIDADE ENTRE DEUS E O DINHEIRO






Podia ter dado outro título a este capítulo, por exemplo, “Falsificação do direito de propriedade”. Já verão porquê. Se preferi este título mais comprido é porque esta heresia é o reverso da anterior (“Converter o cristianismo numa doutrina teórica”). Até podiam ser tratadas conjuntamente as duas. Dedico-lhe, contudo, um capítulo à parte essencialmente por duas razões.

. Porque os evangelhos não somente estão cheios de palavras solidárias com os pobres, como também de páginas sérias e radicais contra os ricos, facto que choca claramente com a nossa obsessão por uma linguagem “politicamente correcta” quando tocamos neste tema. Ao mesmo tempo, põe a nu como o “politicamente correcto” muitas vezes não é mais do que o “eticamente incorrecto”.

. E, em segundo lugar, em não muitas ocasiões como nesta se cumpre aquela confissão do Vaticano II: uma das causas do ateísmo moderno é a falsa imagem de Deus que nós, os cristãos, damos (GS 19).

(…)

Em contraste com a sonoridade dos evangelhos, quando é que a Igreja disse aos ricos: «Vinde, tendes a porta aberta, vinde, mas com a condição de vos pordes ao lado dos pobres e ao serviço dos pobres»…, pois «sem essa participação nos privilégios dos pobres não há salvação para os ricos»[1]? Quando foi que todo o Colégio Apostólico, e a sua cabeça, pregou que a amizade com o Rei eterno resulta de sermos amigos dos pobres?[2] E em coerente sintonia com Ele, quando é que a Igreja disse aos ricos tudo o que a carta de Tiago diz aos ricos? Que poucas e que tíbias as vozes oficiais que, durante a actual crise, se ergueram para denunciar estas políticas que pretendem tirar-nos da crise garantindo antes de tudo o dinheiro dos ricos e abandonando os pobres ao desespero e à morte pela fome! A Europa, cujas «raízes cristãs» a deveriam levar a estar sobretudo com os condenados da terra, colocou-se do lado dos condenadores. Partidos que se declaram «inspirar-se no humanismo cristão» limitam-se a procurar servir a Deus, mas após terem servido o dinheiro. Não por culpa de certas pessoas em particular, mas como consequência de uma heresia latente no nosso catolicismo. Alguma razão tinha Frantz Fanon [Martinica, 1925-1961], quando nos acusava (ainda que de modo muito generalizado): «Europa, que não se farta de falar do Homem, ao mesmo tempo que o assassina onde quer que o encontre».[3]

Numa Carta de S. Bernardo a Eugénio III, que citaremos mais detalhadamente no capítulo 8, o santo dizia ao Papa: «Deverás promover aos cargos as pessoas que defendam corajosamente os oprimidos e façam justiça aos pobres da terra… que assustem os ricos em vez de os agasalhar».[4] Que contraste com o critério actual de nomear bispos «que não sejam demasiado amigos dos pobres», tal como dissemos no capítulo 2 («Negação da “Eminente dignidade dos pobres na Igreja”»). E o mais surpreendente é que o actual Papa afirma que aquela Carta de S. Bernardo deveria ser de leitura obrigatória para todos os Papas.[5]

(…)

Tudo isto torna-se, hoje, mais necessário do que nunca, na medida em que os ricos maltratam ainda mais os pobres, pois as suas possibilidades de malvadez aumentaram: já não se trata de meros poderes pessoais, mas de poderes revestidos de poderes estruturais, poderes anónimos… Que apenas cerca de 350 pessoas possuam uma riqueza superior a mais de 2.000.000.000 de seres humanos e ao PIB de 30 ou 40 países, isto constitui uma falsificação de Deus muito superior à do mais radical ateísmo.

(…)

De facto, como é sabido, a agiotagem foi, quer para a tradição bíblica, quer para a filosofia grega, um dos vícios mais desumanos e abomináveis: enriquecer à custa da necessidade do outro. Algo parecido com o empresário abjecto que concede trabalho ou aumenta o salário a pobres raparigas em troca de favores sexuais.

(…)

Eis a diferença entre a agiotagem e um empréstimo legítimo com juros. Tudo aquilo que está a acontecer nos nossos dias com a famosa «dívida do Terceiro Mundo» e com aquilo que ocorre actualmente em Espanha com o escândalo das hipotecas e com as comissões de risco, são crueldades profundamente desumanas que se acentuam com o vergonhoso pormenor de que, se no caso de aquele que falhar e não cumprir for o agiota, nada se lhe exige e ainda se lhe dá mais suporte financeiro a fim de prosseguir a agiotagem. Os grandes banqueiros comportam-se como verdadeiros proxenetas ou narcotraficantes que lucram com a necessidade alheia (com a vantagem de que essa necessidade já nem rosto tem). Os bancos são a verdadeira imagem do grande todo-poderoso (o deus falso) que dispõe dos homens a seu bel-prazer. Entretanto, a Igreja não foi capaz de dizer que não há nenhuma obrigação moral que imponha que se pague uma dívida que é injusta por ter sido imposta enganosamente.

Eis o que se converteu no clamor dos filhos de Deus que chega ao céu mais depressa que o dos israelitas oprimidos. Algo de muito grave deve estar a passar-se no nosso catolicismo para que esse clamor não chegue aos nossos ouvidos e não nos subleve.

Esse ‘algo’ é uma contaminação da falsa religião do Ocidente. O nosso Ocidente, por mais «laico» que se (…)


José Ignacio González Faus, sj

[pp. 13]




«Jesus e o Dinheiro»,
de J. I. González Faus, sj,
in «Quem foi, quem é Jesus Cristo?», Coord. ANSELMO BORGES, Ed. GRADIVA_2012


Brilhante síntese do tema em 14 páginas, que começa com Eça de Queiroz:

«Só nos resta para nos dirigir, na rajada que nos leva, esse secular preceito, suma divina de toda a experiência humana: ‘ajudai-vos uns aos outros’.»

E que encerra com a poetisa Adélia Prado:

«Moro num lugar chamado globo terrestre,
onde se chora mais
que o volume das águas denominadas mar,
para onde levam os rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome. Aqui se odeia.»





[1] Bispo Bossuet [1627-1704], em “Vicários de Cristo”, cit. pp. 248-249. [página 267, da edição brasileira “Vigários de Cristo”, da ‘Paulus’]
[2] «A amizade com os pobres faz-nos amigos do Rei eterno» [Carta de Inácio de Loyola aos jesuítas de Pádua, ibid., p. 161; página 173 da edição brasileira da ‘Paulus’]
[3] «Los condenados de la tierra», FCE, México, 1963, p. 287.
[4] Ver a citação completa em “La libertad de la palabra en la Iglesia y en la teologia. Antologia comentada”, Sal Terræ, Santander, 1985, p. 18.
[5] Bento XVI, no livro-entrevista “Luz do Mundo”, Herder, Sal Terræ, 2010, p. 83. [página 77 da edição portuguesa, da Ed. Lucerna, Nov. 12010]