NEGAÇÃO DA ABSOLUTA
INCOMPATIBILIDADE ENTRE DEUS E O DINHEIRO
Podia ter dado outro título a este capítulo, por
exemplo, “Falsificação do direito de propriedade”.
Já verão porquê. Se preferi este título mais comprido é porque esta heresia é o
reverso da anterior (“Converter o cristianismo numa doutrina teórica”). Até podiam
ser tratadas conjuntamente as duas. Dedico-lhe, contudo, um capítulo à parte
essencialmente por duas razões.
. Porque os evangelhos não somente estão cheios de
palavras solidárias com os pobres, como também de páginas sérias e radicais contra
os ricos, facto que choca claramente com a nossa obsessão por uma
linguagem “politicamente correcta” quando tocamos neste tema. Ao mesmo tempo,
põe a nu como o “politicamente correcto” muitas vezes não é mais do que o “eticamente
incorrecto”.
. E, em segundo lugar, em não muitas ocasiões como
nesta se cumpre aquela confissão do Vaticano II: uma das causas do ateísmo
moderno é a falsa imagem de Deus que nós, os cristãos, damos (GS 19).
(…)
Em
contraste com a sonoridade dos evangelhos, quando é que a Igreja disse aos
ricos: «Vinde, tendes a porta aberta, vinde, mas com a condição de vos pordes ao lado dos
pobres e ao serviço dos pobres»…, pois «sem essa participação nos
privilégios dos pobres não há salvação para os ricos»[1]?
Quando foi que todo o Colégio Apostólico, e a sua cabeça, pregou que a amizade
com o Rei eterno resulta de sermos amigos dos pobres?[2]
E em coerente sintonia com Ele, quando é que a Igreja disse aos ricos tudo o
que a carta de Tiago diz aos ricos? Que poucas e que tíbias as vozes oficiais
que, durante a actual crise, se ergueram para denunciar estas políticas que
pretendem tirar-nos da crise garantindo antes de tudo o dinheiro dos ricos e
abandonando os pobres ao desespero e à morte pela fome! A Europa, cujas «raízes cristãs»
a deveriam levar a estar sobretudo com os condenados da terra, colocou-se do
lado dos condenadores. Partidos que se declaram «inspirar-se no
humanismo cristão» limitam-se a procurar servir a Deus, mas após terem servido
o dinheiro. Não por culpa de certas pessoas em particular, mas como
consequência de uma heresia latente no nosso catolicismo. Alguma razão tinha Frantz Fanon [Martinica, 1925-1961],
quando nos acusava (ainda que de modo muito generalizado): «Europa, que não se
farta de falar do Homem, ao mesmo tempo que o assassina onde quer que o
encontre».[3]
Numa
Carta de S. Bernardo a Eugénio III, que
citaremos mais detalhadamente no capítulo 8, o santo dizia ao Papa: «Deverás
promover aos cargos as pessoas que defendam corajosamente os oprimidos e façam
justiça aos pobres da terra… que assustem os ricos em vez de os agasalhar».[4]
Que contraste com o critério actual de nomear bispos «que não sejam demasiado
amigos dos pobres», tal como dissemos no capítulo 2 («Negação da “Eminente
dignidade dos pobres na Igreja”»). E o mais surpreendente é que o actual Papa
afirma que aquela Carta de S. Bernardo deveria ser de leitura obrigatória para
todos os Papas.[5]
(…)
Tudo
isto torna-se, hoje, mais necessário do que nunca, na medida em que os ricos
maltratam ainda mais os pobres, pois as suas possibilidades de malvadez
aumentaram: já não se trata de meros poderes pessoais, mas de poderes
revestidos de poderes estruturais, poderes anónimos… Que apenas
cerca de 350 pessoas possuam uma riqueza superior a mais de 2.000.000.000 de
seres humanos e ao PIB de 30 ou 40 países, isto constitui uma falsificação de
Deus muito superior à do mais radical ateísmo.
(…)
De
facto, como é sabido, a agiotagem foi, quer para a tradição bíblica, quer para
a filosofia grega, um dos vícios mais desumanos e abomináveis: enriquecer à custa da necessidade do outro.
Algo parecido com o empresário abjecto que concede trabalho ou aumenta o
salário a pobres raparigas em troca de favores sexuais.
(…)
Eis
a diferença entre a agiotagem e um empréstimo legítimo com juros.
Tudo aquilo que está a acontecer nos nossos dias com a famosa «dívida do
Terceiro Mundo» e com aquilo que ocorre actualmente em Espanha com o escândalo
das hipotecas e com as comissões de risco, são crueldades profundamente desumanas
que se acentuam com o vergonhoso pormenor de que, se no caso de aquele que
falhar e não cumprir for o agiota, nada se lhe exige e ainda se lhe dá mais
suporte financeiro a fim de prosseguir a agiotagem. Os grandes banqueiros comportam-se como verdadeiros
proxenetas ou narcotraficantes que lucram com a necessidade alheia
(com a vantagem de que essa necessidade já nem rosto tem). Os bancos são a
verdadeira imagem do grande todo-poderoso (o deus falso) que dispõe dos homens
a seu bel-prazer. Entretanto, a
Igreja não foi capaz de dizer que não há nenhuma obrigação moral que imponha
que se pague uma dívida que é injusta por ter sido imposta
enganosamente.
Eis
o que se converteu no clamor dos filhos de Deus que chega ao céu mais depressa
que o dos israelitas oprimidos. Algo de muito grave deve estar a passar-se no
nosso catolicismo para que esse clamor não chegue aos nossos ouvidos e não nos
subleve.
Esse ‘algo’ é uma contaminação da falsa religião do Ocidente.
O nosso Ocidente, por mais «laico» que se (…)
José Ignacio González
Faus, sj
[pp.
13]
«Jesus e o Dinheiro»,
de J. I. González Faus,
sj,
in
«Quem foi,
quem é Jesus Cristo?», Coord. ANSELMO BORGES, Ed. GRADIVA_2012
Brilhante síntese do
tema em 14 páginas, que começa com Eça de Queiroz:
«Só nos resta para
nos dirigir, na rajada que nos leva, esse secular preceito, suma divina de toda
a experiência humana: ‘ajudai-vos uns aos outros’.»
E que encerra com a
poetisa Adélia
Prado:
«Moro num lugar
chamado globo terrestre,
onde se chora mais
que o volume das
águas denominadas mar,
para onde levam os
rios outro tanto de lágrimas.
Aqui se passa fome.
Aqui se odeia.»
[1] Bispo Bossuet [1627-1704],
em “Vicários de Cristo”, cit. pp. 248-249. [página 267, da edição brasileira
“Vigários de Cristo”, da ‘Paulus’]
[2] «A amizade com
os pobres faz-nos amigos do Rei eterno» [Carta de Inácio de Loyola
aos jesuítas de Pádua, ibid., p. 161;
página 173 da edição brasileira da ‘Paulus’]
[3] «Los condenados
de la tierra», FCE, México, 1963, p. 287.
[4] Ver a
citação completa em “La libertad de la palabra en la Iglesia y en la
teologia. Antologia comentada”, Sal Terræ, Santander, 1985, p. 18.
[5] Bento XVI, no
livro-entrevista “Luz do Mundo”, Herder, Sal Terræ, 2010, p. 83. [página 77
da edição portuguesa, da Ed. Lucerna, Nov. 12010]