teologia para leigos

17 de junho de 2013

A MERCADORIZAÇÃO DA VIDA

Combater a corrupção à esquerda:
para uma reinvenção necessária

Se entendermos que a corrupção tem origens estruturais e não comportamentais ou culturais, ela só poderá ser erradicada combatendo as características estruturais que a geram. A crescente mercadorização das relações sociais, o programa de privatizações e demais formas de reduzir os cidadãos a clientes, bem como todas as medidas que aprofundam as desigualdades sociais, são dinâmicas estruturalmente vocacionadas para perpetuar a corrupção, independentemente dos discursos (prevenção, moralização…) que contra ela possam ser feitos.


Ed. GRADIVA



Introdução

(…) Em Portugal (e na Europa), a esquerda, enquanto tradição política, não tem sido capaz de fornecer pistas para um discurso anti-corrupção que recuse os predicados da antropologia neo-liberal e de uma organização política pós-liberal, funcionando como pilar de uma crítica verdadeiramente (anti-) sistémica. Essa é a pré-condição de qualquer discurso anti-corrupção operativo e viável. Defendo, aqui, que os discursos e as práticas de combate à corrupção de base neo-liberal, tal como o quadro conceptual do «bom governo» propugnado pelo Banco Mundial e implícito no Memorando de Entendimento ou a análise económica (neoclássica) da corrupção, não podem ser eficazes porque ignoram as causas estruturais do fenómeno. Atentando nestas causas estruturais, torna-se claro que uma parcela importante do sistema político português não pode gerar discursos e práticas anti-corrupção eficazes, porque não dispõe dos instrumentos analíticos adequados e porque essa restrição auto-imposta determina a incapacidade institucionalizada de proceder à erradicação da corrupção.

Para os efeitos deste texto, entendo «esquerda» como projecto igualitário e rectificativo, recuperando a perspectiva de Steven Lukes[1], sem atender às suas variantes reformistas, revolucionárias, autonomistas, estatistas ou libertárias. A esquerda, neste contexto, é uma tradição política que elege a desigualdade como fenómeno sociopolítico evitável e indesejável, oferecendo uma visão emancipatória da humanidade e questionando as estruturas de poder que subjazem a qualquer expressão de autoridade[2]. (…)


Padrões de desigualdade sociopolítica

(…) um desafio complexo à esquerda portuguesa (enquanto caso representativo de um universo mais vasto): a impossibilidade de conceber um discurso e uma estratégia de combate à corrupção que não questione o capitalismo enquanto sistema de organização das relações socioeconómicas e a presença conspícua do mercado nas relações sociais contemporâneas. É importante enfatizar que as opções tendencialmente reformistas não são necessariamente menos eficazes neste processo: os níveis de corrupção em sociedades de bem-estar com economias mistas são suficientemente baixos para podermos debater a ligação entre desmercadorização[3], corrupção e desigualdade sem que estreitemos esse debate a variantes anti-sistémicas. Tendo isso em conta, apenas a esquerda tem condições para propor uma «erradicação», em contraponto às medidas paliativas e, no limite, intensificadoras da corrupção sistémica e meta-sistémica, que parecem ameaçar as democracias ocidentais.

A existência e acção do Conselho de Prevenção da Corrupção, em Portugal, ilustra este problema: a «prevenção» inscrita na sua designação institucional é impossível mediante os instrumentos de que dispõe, os actores que o compõem e o quadro conceptual em que opera. Essa impossibilidade tem ficado amplamente demonstrada ao longo dos últimos anos, com a eclosão mediática de transacções económicas e financeiras que só podem ser entendidas como corrupção se se mantiver uma visão negligente da economia política portuguesa. O caso Banco Português de Negócios (BPN) é especialmente claro a este respeito: longe de tratar-se de um desvio, é apenas o corolário lógico das estruturas de poder que suportam essa economia política. E apesar da acção meritória de alguns representantes da esquerda institucional, existiu (e existe) um consenso relativamente amplo e tácito acerca da inevitabilidade da sua repetição.

Verifica-se o mesmo a respeito do recente caso dos contratos swap no Sector Empresarial do Estado. Quando se expressa uma visão comportamental (o documentário Inside the Job ilustra esta visão, bem visível na redução dos presidentes-executivos e outros responsáveis - veja-se o caso de Oliveira e Costa ou Bernie Madoff - à condição de psicopatas ou pacientes de outros distúrbios anti-sociais) ou culturalista (a ideia conservadora de que a corrupção está imbricada num qualquer «ADN cultural» que, não sendo removível, deve ser mitigada - decorrem daí os acrónimos xenófobos PIIGS e GIPSI), incorre-se num erro analítico que determina a percepção da corrupção como facto social inerradicável. A desconstrução dessa percepção é um desafio directo à ficção do Estado de Direito republicano e ao regime democrático, cujas ruínas continuam a sustentar uma adesão maioritária à ordem política dominante. Se a esquerda portuguesa pretende a reprodução de uma ordem republicana e democrática esse desafio é uma prioridade.

Neste sentido, a origem da corrupção é estrutural e não comportamental ou cultural; os modos da sua erradicação também serão, necessariamente, estruturais. A submissão de direitos humanos, sociais, económicos e culturais ao direito à propriedade privada e à remuneração do capital (a taxa de crescimento a 3% que continua a ser entendida como necessária à manutenção do modo de produção capitalista) transformam a corrupção num fenómeno trivializável e, mantendo uma leitura crítica da economia política capitalista, parcialmente necessário à emergência de oligopólios e monopólios, cuja solidez passa a reforçar. A ineficácia da legislação pós-concorrência de origem comunitária - a emergência de monopólios em sectores como o retalho (Pingo Doce) e a distribuição de electricidade (EDP) são exemplos dessa ineficácia – mostra que a injecção de competitividade, resposta-padrão do neoliberalismo à corrupção, está longe de constituir uma solução. (…)

Luís Bernardo, historiador
Le Monde Diplomatique – edição portuguesa, Junho 2013, p. 6-7.

[6 pp.]




A NARRATIVA 'COMPORTAMENTAL'...
GESTORES PÚBLICOS “SWAP’s”


«O deputado social-democrata Luís Campos Ferreira, que falava aos jornalistas à margem de um evento da EDP em São Paulo, Brasil, disse que os gestores públicos “deveriam sair pelo próprio pé” e que “deviam ter vergonha na cara”, porque “do ponto de vista da gestão falharam redondamente”, pelo que “o caminho é a porta da rua”.»


PENA MÁXIMA PARA B. MADOFF – 150 ANOS DE PRISÃO


«"Como se pode desculpar enganar uma esposa durante 50 anos? Como se pode desculpar ter defraudado uma indústria que se ajudou a construir? Deixo um legado de vergonha", afirmou Bernard Madoff, que não tinha qualquer membro da sua família presente em Tribunal.»


OLIVEIRA E COSTA e Cia.






[1] Steven Lukes, «Epilogue: The Grand Dichotomy of the Twentieth Century», The Cambridge History of Twentieth Century Political Thought, Terrence Ball, Cambridge University Press, Cambridge, 2003.
[2] Uma perspectiva que transcende a abordagem relacional de Norberto Bobbio.
[3] Gosta Esping-Andersen, The Three Worlds of Welfare Capitalism, Princeton University Press, Princeton, 1990.