Depois destas três décadas e meia de divinização Papal [1978-2013], que arrastaram
consigo demasiado “lixo” e, com ele e para os católicos, humilhação e vergonha
suficientes, bem como o colapso dum Papa (Bento XVI). Depois do fim dos regimes
ditos ‘comunistas’ ou ‘socialistas’ (Muro de Berlim, 1961-1989) a que se seguiu
a «dominação global» (sem contraditório) por parte do único sistema ideológico,
militar, burocrático e económico que é o Capitalismo
Neo-liberal, eis que a Igreja católica se volta a questionar sobre o
seu papel no mundo, seu espaço e sua missão. Se lhe juntarmos a irrupção (2007-2008)
duma das maiores Crises financeiras mundiais de todos os tempos… bem que
podemos dizer: que terríveis 35 anos!
Após a eleição do Papa Francisco, subitamente arrefeceram
a divinização papal e aquela Fé perfomance-teatral
feita duma espiritualidade de multidões embriagadas para quem Jesus de Nazaré não
dizia nada, mas Deus e o restauracionismo das “vias-sacras”, “missas do pôr-do-sol na
praia”, grandes multidões e “procissões de velas” diziam tudo.
Mergulhados na Crise financeira e na Crise económica,
o discurso oficial das Igrejas católicas foi “recolhamos
aos quartéis da Caridadezinha”!, incapaz de, por si só, questionar as
fontes bíblicas da sua identidade, incapaz duma profunda ‘revisão de vida’ e,
por isso, incapaz dum anúncio profético libertador que separasse as águas e descobrisse
onde mora o crucificado, o Cristo que sofre hoje, ali onde «a morte ataca à luz da legalidade» (Elsa Tamez).
Estaremos (por um lado) condenados para sempre à ideologia norte-americana dos «mercados» e à Caridadezinha Cristã
(CLICAR AQUI: um País de engraxadores e vendedores ambulantes, o «empreendedorismo perverso», a «economia social moralizante e culpabilizante»; CLICAR TAMBÉM AQUI)? Estaremos (por outro) condenados a uma fézinha órfã, desvitalizada, ferida, subitamente desamparada e resignada à ‘prata da casa’ e às vistas curtas?
(CLICAR AQUI: um País de engraxadores e vendedores ambulantes, o «empreendedorismo perverso», a «economia social moralizante e culpabilizante»; CLICAR TAMBÉM AQUI)? Estaremos (por outro) condenados a uma fézinha órfã, desvitalizada, ferida, subitamente desamparada e resignada à ‘prata da casa’ e às vistas curtas?
Julgo que este texto de J. I. G. Faus relança a esperança sobre o tempo que estamos a viver. Ele
aponta o caminho à Igreja de Cristo: Jesus,
um Jesus intolerante para os hipócritas, mas cheio de misericórdia para os
desesperados.
Jesus é a nossa bem-aventurança! Assim fica mais clara a missão dos cristãos neste
mundo tão contraditório e injusto, quanto desafiador.
A heresia
capitalista
O capitalismo é um sistema que «não ama» e, por isso, «não conhece Deus». Para lá de tudo mais, o seu
fundamento e ponto de partida é esse não-amor. O seu primeiro mandamento é a
obtenção do máximo lucro. Caso fale de Deus, necessariamente, falará dum deus
falso, na medida em que o sistema é intrinsecamente negador do Deus de Jesus
Cristo. J. M. Keynes deixou bem claros os dois maiores venenos do sistema capitalista: é
absolutamente incapaz de criar emprego digno para todos e é absolutamente
incapaz de criar igualdade entre os seres humanos.[1]
É por isso que o sistema capitalista fere
gravemente a dignidade do ser humano.
A
frase de Karl Marx escrita em «A Questão Judaica» («o
seu culto é a ganância e o seu deus o dinheiro») ultrapassa o
judaísmo, a quem o autor a quis circunscrever: hoje deve ser aplicada à
«civilização» e à economia ocidentais. O novo fenómeno do ateísmo de direita, a que noutro sítio me referi,
é a consequência lógica dum Capital que se libertou da necessidade de recorrer
à religião como a sua única forma de protecção e de camuflagem da injustiça.
Hoje, a secularização e a maioridade da sociedade tornaram desnecessária essa
falsa protecção: o capitalismo autojustifica-se, agora, porque o egoísmo e a inveja se converteram nos pontos de partida
da nossa visão da realidade.
No
entanto, e a partir desse ateísmo, rapidamente começou a surgir uma religião
que nasce do medo (último) diante do vazio da secularidade e que preenche o
mundo de ídolos. As igrejas deveriam evitar aproveitar-se, de modo muito
equívoco, desses brotos religiosos, desses gamões religiosos, convencidos que constituem um novo caminho para Deus,
mas ancorarem-se (e ancorando as próprias igrejas) na necessária conversão que o anúncio jesuano do Reino pede.
E,
caso estas palavras escandalizem, leia-se, para concluir, estas outras do homem
intelectualmente tão honesto que Paulo VI foi, apesar do seu carácter
hamletiano e agudamente dubitativo, vítima dos esbirros da Cúria. A maior parte
dos católicos de hoje não aceitam estas palavras do Papa
Montini (caso contrário o mundo estaria totalmente diferente daquilo
que ele efectivamente é), e nem sequer têm consciência de que essa rejeição
incorpora em si uma inegável heresia:
«[…]
a Bíblia, desde as suas primeiras páginas, ensina-nos que a criação inteira está destinada ao homem, o qual
terá que aplicar a força da sua inteligência para a valorizar e, mediante o seu
trabalho, aperfeiçoá-la… Se a terra existe para que todos nela encontrem os
seus meios de subsistência e os instrumentos do seu progresso, todos os homens
têm o direito de nela encontrar aquilo de que necessitam [a seguir, Montini
cita o Vaticano II: GS 68, 1]. Todos os restantes direitos, sejam eles quais
forem, (incluindo o direito à propriedade e ao
livre comércio) estão destinados a todos: não devem ser obstáculo
mas facilitação à sua realização. É um grave e
urgente dever social fazer com que esses direitos regressem à sua
finalidade originária (Populorum progressio, 22;
sublinhado meu).»
Há, nestas
palavras, três coisas muito sérias:
-
qual é a vontade de Deus para a sua criação e,
portanto, qual é o sentido do cristianismo, na medida em que ele é o
cumprimento da vontade de Deus;
-
que essa vontade relativiza, de modo absoluto, todos
os outros direitos humanos, que, assim, face àqueles, são secundários;
- que
é um dever grave e urgente recuperar esta
perspectiva. Foi por isso que, com a mesma radicalidade e clareza, este Papa
disse, poucos anos antes, que o sistema capitalista «tem que possuir em si um
profundo vício, uma radical insuficiência».[2]
E que profundo vício e que radical insuficiência!
Os católicos que
beneficiam deste sistema pecaminoso
gostam de mandar tocar as trompetes quando os discursos papais falam de temas
como Família e Sexualidade, e tudo
leva a crer que o fazem não propriamente por obediência à Igreja, mas porque
esses temas são temas esgrimidos pela esquerda que deles faz a sua bandeira e,
assim, ao os desautorizar, desautorizam ao mesmo tempo as outras reivindicações
sociais dessa mesma esquerda. Esses católicos dão muito eco a esses discursos
papais que vêem como anti-esquerda, ao mesmo tempo que silenciam, sigilosa e
sistematicamente, o ensino social que em nada é menos palavra do Papa que os
anteriores. É evidente que as Encíclicas não são infalíveis, mas a única
atitude honesta seria discutir pública e argumentativamente as próprias
Encíclicas sempre que se esteja convencido que elas estão erradas. Silenciar a
sua opinião e ignorá-las é hipocrisia e interesseirismo.
[N.B. Gostaria de terminar este
capítulo com um texto, que é mais longo do que os anteriores, e que é de uma
das maiores autoridades teológicas do momento, o qual, com mais de noventa
anos, nem por isso perdeu a lucidez nem a esperança nem a audácia que são necessárias
para se dedicar aos problemas actuais do cristianismo. Porém, como o texto é
comprido e denso, permiti-me subdividi-lo e subintitulá-lo eu próprio de modo a
facilitar, ao leitor, o acesso ao seu conteúdo]
Ω
1.
A Igreja
1.a. Uma visão errada, da Igreja, acerca do mundo
A
Igreja tem tendência a considerar o mundo secularizado e laicizado – trata-se,
sobretudo, do mundo ocidental – como território seu, como população por si
baptizada, por si instruída, por si modelada, por si amplamente governada e que
se revoltou contra ela e, injustamente, a rejeitou: por isso, a Igreja concebe
o seu futuro natural como reconquista do que fora seu e que seu deverá voltar a
ser. Assim, a Igreja reserva a palavra missão à exploração de
territórios novos, desconhecidos, e prefere falar de segunda
evangelização ou de re-evangelização
sempre que se trata de pregar a fé a um mundo sobre o qual perdeu influência ou
do qual foi desapossada.
1.b. Razões para mudar esta visão
Esta
visão tem que mudar, não apenas porque este mundo já não é o mesmo e por ser pouco conveniente designá-lo de uma maneira negativa
ou reivindicativa a partir daquilo que ele já não é ou a partir da rotura da
sua ligação ao cristianismo, mas também porque já não tem nada a ver com o
mundo do passado e porque um outro mundo sucedeu ao mundo cristão.
Provavelmente, este mundo conserva muitas coisas do passado, mas até dessas se
apropriou de uma maneira diferente fazendo delas coisas diferentes. Por
exemplo, a Igreja passa a vida a atirar-lhe à cara que foi da Igreja que este
mundo recebeu as sementes dos Direitos Humanos, dos quais o mundo é muito
orgulhoso, mas o próprio mundo retribui-lhe que essas sementes só deram fruto
nele, no mundo, e não na Igreja, a qual, aliás, os combateu durante muito
tempo. Por outro lado, o mundo, sozinho, constituiu-se em terreno de numerosos
projectos: ciência, economia, tecnologia, etc., os quais determinam muito mais
a sua existência, quer a presente quer a futura, do que o seu passado
religioso, pelo que o mundo se concebe a si próprio como um novo ser virado
para o futuro procurando encontrar-se nele, e virado para o universo que tenta
incorporar no seu devir.
1.c. Outro modo de ver
Portanto,
a Igreja está condenada a reconhecer o mundo tal como ele se vê a si mesmo, com
a sua independência, a sua novidade, a sua alteridade. Trata-se dum mundo que
nasceu da religião, que perdeu a fé em Deus ao tentar libertar-se da religião: não se trata dum mundo que abandonou a religião porque se
rebelou contra Deus. Pelo facto das
tradições religiosas terem, desde sempre, moldado o modo de se estar em
sociedade e do ser-mundo da humanidade, os seres humanos, que haviam sonhado
com e procurado, ao longo dos tempos, outro tipo de sociabilidade e de
mundanidade, sentiram-se obrigados a cortar com os vínculos destas tradições
para delas se emanciparem. Eis a novidade constitutiva do homem moderno. A
Igreja deve reconhecer a legitimidade e a irreversibilidade desta emancipação
que ela própria obstaculizou e cujas consequências teve que pagar bem caro, e
não ver nessa emancipação, ou nela denunciar, uma rejeição formal de Deus: esta
mudança é a primeira condição para um novo tipo de relacionamento com o mundo.
2. O mundo
2.a. A sua situação
É
verdade que os homens da Modernidade, ao perderem a crença em Deus ou ao
desalojá-la do plano das suas preocupações mais importantes, deixaram de se ver
polarizados para o infinito das suas existências e viram-se desorientados, prisioneiros dos seus apetites de
poder e de prazer, ao ponto de, para os satisfazer, viraram-se uns contra os
outros podendo chegar até a exterminar-se uns aos outros ou a destruir o
universo donde lhes vem o crescimento do seu próprio poder e do seu bem-estar.
Esta humanidade está doente e isso é algo que não pode escapar ao olhar da
Igreja. Porém, a Igreja não deve cair na tentação de
tirar partido disso, a fim de reconquistar o lugar que ela,
anteriormente, ocupava na sociedade.
2.b. A verdadeira atitude da Igreja
A
primeira preocupação da Igreja há-de ser curar
os males de que padece a humanidade, contemplá-la com o mesmo olhar compassivo
que Jesus projectava sobre a multidão de enfermos, de inválidos e de possessos
que o assediavam ao longo dos seus dias, e dedicar-se a curá-los como Jesus
fazia e como ele ordenou que se fizesse aos que ele enviou em missão
evangélica. A Igreja servir-se-á dos remédios que o Evangelho tem, pois, como é
evidente, ela não possui a ciência das coisas deste mundo. Em vez de denunciar neste males que fazem doente a
humanidade as justas consequências da irreligião
da humanidade [visão acusadora, culpabilizante e punitiva; Nota do
tradutor], abordá-los-á como factos humanitários ou, melhor, como consequências
da desumanização que a uns faz sofrimento
(os vencidos) e a outros faz carência
(os vencedores), e que requerem, prioritariamente, tratamento ao nível da
humanidade e com a ajuda dos actores da história juntamente com as suas vítimas…
2.c. Evangelizar neste contexto
Na
medida em que, no fim de contas, se trata de transmitir uma mensagem a alguém
por esse mundo fora, este discurso deverá ser multiplicado, deverá deixar de
ser património de um reduzido grupo de dirigentes da Igreja e terá que ser da
responsabilidade de todo o povo cristão e, em primeiro lugar, daqueles que
estão mais directamente em contacto com os assuntos deste mundo…
A
missão cristã, re-alimentada no mistério da encarnação através do qual Deus
esconde a sua transcendência na carne duma criancinha muito pequenina, não irá
ao mundo expressamente para procurar adoradores a fim de os carrear para
templos onde Deus se exibe para ser venerado. A missão cristã dirige-se aos lugares onde a humanidade se encontra entregue
ao desespero ou em decadência, pois sabe que é aí que Deus está em
sofrimento e que é aí que Deus reconhece os que
aí vão para o visitar (Mt 25:40) e, assim, a missão cristã dedicar-se-á a
carrear a esta via (Act 9:2) o
maior número possível de pessoas, inclusivamente não crentes, persuadida que
assim os leva ao encontro de Deus.
Esta
tarefa da missão cristã não é uma questão de religião, mas de fé e,
inclusivamente, de uma intensa fé, na
medida em que se baseia no mistério da gratuitidade de Deus, não se reduzindo a
um simples humanitarismo, ainda que esteja ancorada no terreno profano e não no
religioso.
J. Moingt, “Dios
que viene al hombre”,
Sígueme, Salamanca, 2011, II-2, pp. 476-477, 505 (sublinhados do autor).