teologia para leigos

18 de junho de 2013

CAPITALISMO E FÉ [G. FAUS]

Depois destas três décadas e meia de divinização Papal [1978-2013], que arrastaram consigo demasiado “lixo” e, com ele e para os católicos, humilhação e vergonha suficientes, bem como o colapso dum Papa (Bento XVI). Depois do fim dos regimes ditos ‘comunistas’ ou ‘socialistas’ (Muro de Berlim, 1961-1989) a que se seguiu a «dominação global» (sem contraditório) por parte do único sistema ideológico, militar, burocrático e económico que é o Capitalismo Neo-liberal, eis que a Igreja católica se volta a questionar sobre o seu papel no mundo, seu espaço e sua missão. Se lhe juntarmos a irrupção (2007-2008) duma das maiores Crises financeiras mundiais de todos os tempos… bem que podemos dizer: que terríveis 35 anos!

Após a eleição do Papa Francisco, subitamente arrefeceram a divinização papal e aquela Fé perfomance-teatral feita duma espiritualidade de multidões embriagadas para quem Jesus de Nazaré não dizia nada, mas Deus e o restauracionismo das “vias-sacras”, “missas do pôr-do-sol na praia”, grandes multidões e “procissões de velas” diziam tudo.

Mergulhados na Crise financeira e na Crise económica, o discurso oficial das Igrejas católicas foi “recolhamos aos quartéis da Caridadezinha”!, incapaz de, por si só, questionar as fontes bíblicas da sua identidade, incapaz duma profunda ‘revisão de vida’ e, por isso, incapaz dum anúncio profético libertador que separasse as águas e descobrisse onde mora o crucificado, o Cristo que sofre hoje, ali onde «a morte ataca à luz da legalidade» (Elsa Tamez).

Estaremos (por um lado) condenados para sempre à ideologia norte-americana dos «mercados» e à Caridadezinha Cristã
(CLICAR AQUI: um País de engraxadores e vendedores ambulantes, o «empreendedorismo perverso», a «economia social moralizante e culpabilizante»; CLICAR TAMBÉM AQUI)? Estaremos (por outro) condenados a uma fézinha órfã, desvitalizada, ferida, subitamente desamparada e resignada à ‘prata da casa’ e às vistas curtas?

Julgo que este texto de J. I. G. Faus relança a esperança sobre o tempo que estamos a viver. Ele aponta o caminho à Igreja de Cristo: Jesus, um Jesus intolerante para os hipócritas, mas cheio de misericórdia para os desesperados.

Jesus é a nossa bem-aventurança! Assim fica mais clara a missão dos cristãos neste mundo tão contraditório e injusto, quanto desafiador.
 

A heresia capitalista




O capitalismo é um sistema que «não ama» e, por isso, «não conhece Deus». Para lá de tudo mais, o seu fundamento e ponto de partida é esse não-amor. O seu primeiro mandamento é a obtenção do máximo lucro. Caso fale de Deus, necessariamente, falará dum deus falso, na medida em que o sistema é intrinsecamente negador do Deus de Jesus Cristo. J. M. Keynes deixou bem claros os dois maiores venenos do sistema capitalista: é absolutamente incapaz de criar emprego digno para todos e é absolutamente incapaz de criar igualdade entre os seres humanos.[1] É por isso que o sistema capitalista fere gravemente a dignidade do ser humano.

A frase de Karl Marx escrita em «A Questão Judaica» («o seu culto é a ganância e o seu deus o dinheiro») ultrapassa o judaísmo, a quem o autor a quis circunscrever: hoje deve ser aplicada à «civilização» e à economia ocidentais. O novo fenómeno do ateísmo de direita, a que noutro sítio me referi, é a consequência lógica dum Capital que se libertou da necessidade de recorrer à religião como a sua única forma de protecção e de camuflagem da injustiça. Hoje, a secularização e a maioridade da sociedade tornaram desnecessária essa falsa protecção: o capitalismo autojustifica-se, agora, porque o egoísmo e a inveja se converteram nos pontos de partida da nossa visão da realidade.

No entanto, e a partir desse ateísmo, rapidamente começou a surgir uma religião que nasce do medo (último) diante do vazio da secularidade e que preenche o mundo de ídolos. As igrejas deveriam evitar aproveitar-se, de modo muito equívoco, desses brotos religiosos, desses gamões religiosos, convencidos que constituem um novo caminho para Deus, mas ancorarem-se (e ancorando as próprias igrejas) na necessária conversão que o anúncio jesuano do Reino pede.

E, caso estas palavras escandalizem, leia-se, para concluir, estas outras do homem intelectualmente tão honesto que Paulo VI foi, apesar do seu carácter hamletiano e agudamente dubitativo, vítima dos esbirros da Cúria. A maior parte dos católicos de hoje não aceitam estas palavras do Papa Montini (caso contrário o mundo estaria totalmente diferente daquilo que ele efectivamente é), e nem sequer têm consciência de que essa rejeição incorpora em si uma inegável heresia:


«[…] a Bíblia, desde as suas primeiras páginas, ensina-nos que a criação inteira está destinada ao homem, o qual terá que aplicar a força da sua inteligência para a valorizar e, mediante o seu trabalho, aperfeiçoá-la… Se a terra existe para que todos nela encontrem os seus meios de subsistência e os instrumentos do seu progresso, todos os homens têm o direito de nela encontrar aquilo de que necessitam [a seguir, Montini cita o Vaticano II: GS 68, 1]. Todos os restantes direitos, sejam eles quais forem, (incluindo o direito à propriedade e ao livre comércio) estão destinados a todos: não devem ser obstáculo mas facilitação à sua realização. É um grave e urgente dever social fazer com que esses direitos regressem à sua finalidade originária (Populorum progressio, 22; sublinhado meu).»


Há, nestas palavras, três coisas muito sérias:

- qual é a vontade de Deus para a sua criação e, portanto, qual é o sentido do cristianismo, na medida em que ele é o cumprimento da vontade de Deus;

- que essa vontade relativiza, de modo absoluto, todos os outros direitos humanos, que, assim, face àqueles, são secundários;

- que é um dever grave e urgente recuperar esta perspectiva. Foi por isso que, com a mesma radicalidade e clareza, este Papa disse, poucos anos antes, que o sistema capitalista «tem que possuir em si um profundo vício, uma radical insuficiência».[2] E que profundo vício e que radical insuficiência!

Os católicos que beneficiam deste sistema pecaminoso gostam de mandar tocar as trompetes quando os discursos papais falam de temas como Família e Sexualidade, e tudo leva a crer que o fazem não propriamente por obediência à Igreja, mas porque esses temas são temas esgrimidos pela esquerda que deles faz a sua bandeira e, assim, ao os desautorizar, desautorizam ao mesmo tempo as outras reivindicações sociais dessa mesma esquerda. Esses católicos dão muito eco a esses discursos papais que vêem como anti-esquerda, ao mesmo tempo que silenciam, sigilosa e sistematicamente, o ensino social que em nada é menos palavra do Papa que os anteriores. É evidente que as Encíclicas não são infalíveis, mas a única atitude honesta seria discutir pública e argumentativamente as próprias Encíclicas sempre que se esteja convencido que elas estão erradas. Silenciar a sua opinião e ignorá-las é hipocrisia e interesseirismo.


[N.B. Gostaria de terminar este capítulo com um texto, que é mais longo do que os anteriores, e que é de uma das maiores autoridades teológicas do momento, o qual, com mais de noventa anos, nem por isso perdeu a lucidez nem a esperança nem a audácia que são necessárias para se dedicar aos problemas actuais do cristianismo. Porém, como o texto é comprido e denso, permiti-me subdividi-lo e subintitulá-lo eu próprio de modo a facilitar, ao leitor, o acesso ao seu conteúdo]




1.   A Igreja

1.a. Uma visão errada, da Igreja, acerca do mundo

A Igreja tem tendência a considerar o mundo secularizado e laicizado – trata-se, sobretudo, do mundo ocidental – como território seu, como população por si baptizada, por si instruída, por si modelada, por si amplamente governada e que se revoltou contra ela e, injustamente, a rejeitou: por isso, a Igreja concebe o seu futuro natural como reconquista do que fora seu e que seu deverá voltar a ser. Assim, a Igreja reserva a palavra missão à exploração de territórios novos, desconhecidos, e prefere falar de segunda evangelização ou de re-evangelização sempre que se trata de pregar a fé a um mundo sobre o qual perdeu influência ou do qual foi desapossada.


1.b. Razões para mudar esta visão

Esta visão tem que mudar, não apenas porque este mundo já não é o mesmo e por ser pouco conveniente designá-lo de uma maneira negativa ou reivindicativa a partir daquilo que ele já não é ou a partir da rotura da sua ligação ao cristianismo, mas também porque já não tem nada a ver com o mundo do passado e porque um outro mundo sucedeu ao mundo cristão. Provavelmente, este mundo conserva muitas coisas do passado, mas até dessas se apropriou de uma maneira diferente fazendo delas coisas diferentes. Por exemplo, a Igreja passa a vida a atirar-lhe à cara que foi da Igreja que este mundo recebeu as sementes dos Direitos Humanos, dos quais o mundo é muito orgulhoso, mas o próprio mundo retribui-lhe que essas sementes só deram fruto nele, no mundo, e não na Igreja, a qual, aliás, os combateu durante muito tempo. Por outro lado, o mundo, sozinho, constituiu-se em terreno de numerosos projectos: ciência, economia, tecnologia, etc., os quais determinam muito mais a sua existência, quer a presente quer a futura, do que o seu passado religioso, pelo que o mundo se concebe a si próprio como um novo ser virado para o futuro procurando encontrar-se nele, e virado para o universo que tenta incorporar no seu devir.


1.c. Outro modo de ver

Portanto, a Igreja está condenada a reconhecer o mundo tal como ele se vê a si mesmo, com a sua independência, a sua novidade, a sua alteridade. Trata-se dum mundo que nasceu da religião, que perdeu a fé em Deus ao tentar libertar-se da religião: não se trata dum mundo que abandonou a religião porque se rebelou contra Deus. Pelo facto das tradições religiosas terem, desde sempre, moldado o modo de se estar em sociedade e do ser-mundo da humanidade, os seres humanos, que haviam sonhado com e procurado, ao longo dos tempos, outro tipo de sociabilidade e de mundanidade, sentiram-se obrigados a cortar com os vínculos destas tradições para delas se emanciparem. Eis a novidade constitutiva do homem moderno. A Igreja deve reconhecer a legitimidade e a irreversibilidade desta emancipação que ela própria obstaculizou e cujas consequências teve que pagar bem caro, e não ver nessa emancipação, ou nela denunciar, uma rejeição formal de Deus: esta mudança é a primeira condição para um novo tipo de relacionamento com o mundo.


2. O mundo

2.a. A sua situação

É verdade que os homens da Modernidade, ao perderem a crença em Deus ou ao desalojá-la do plano das suas preocupações mais importantes, deixaram de se ver polarizados para o infinito das suas existências e viram-se desorientados, prisioneiros dos seus apetites de poder e de prazer, ao ponto de, para os satisfazer, viraram-se uns contra os outros podendo chegar até a exterminar-se uns aos outros ou a destruir o universo donde lhes vem o crescimento do seu próprio poder e do seu bem-estar. Esta humanidade está doente e isso é algo que não pode escapar ao olhar da Igreja. Porém, a Igreja não deve cair na tentação de tirar partido disso, a fim de reconquistar o lugar que ela, anteriormente, ocupava na sociedade.


2.b. A verdadeira atitude da Igreja

A primeira preocupação da Igreja há-de ser curar os males de que padece a humanidade, contemplá-la com o mesmo olhar compassivo que Jesus projectava sobre a multidão de enfermos, de inválidos e de possessos que o assediavam ao longo dos seus dias, e dedicar-se a curá-los como Jesus fazia e como ele ordenou que se fizesse aos que ele enviou em missão evangélica. A Igreja servir-se-á dos remédios que o Evangelho tem, pois, como é evidente, ela não possui a ciência das coisas deste mundo. Em vez de denunciar neste males que fazem doente a humanidade as justas consequências da irreligião da humanidade [visão acusadora, culpabilizante e punitiva; Nota do tradutor], abordá-los-á como factos humanitários ou, melhor, como consequências da desumanização que a uns faz sofrimento (os vencidos) e a outros faz carência (os vencedores), e que requerem, prioritariamente, tratamento ao nível da humanidade e com a ajuda dos actores da história juntamente com as suas vítimas


2.c. Evangelizar neste contexto

Na medida em que, no fim de contas, se trata de transmitir uma mensagem a alguém por esse mundo fora, este discurso deverá ser multiplicado, deverá deixar de ser património de um reduzido grupo de dirigentes da Igreja e terá que ser da responsabilidade de todo o povo cristão e, em primeiro lugar, daqueles que estão mais directamente em contacto com os assuntos deste mundo…

A missão cristã, re-alimentada no mistério da encarnação através do qual Deus esconde a sua transcendência na carne duma criancinha muito pequenina, não irá ao mundo expressamente para procurar adoradores a fim de os carrear para templos onde Deus se exibe para ser venerado. A missão cristã dirige-se aos lugares onde a humanidade se encontra entregue ao desespero ou em decadência, pois sabe que é aí que Deus está em sofrimento e que é aí que Deus reconhece os que aí vão para o visitar (Mt 25:40) e, assim, a missão cristã dedicar-se-á a carrear a esta via (Act 9:2) o maior número possível de pessoas, inclusivamente não crentes, persuadida que assim os leva ao encontro de Deus.

Esta tarefa da missão cristã não é uma questão de religião, mas de fé e, inclusivamente, de uma intensa fé, na medida em que se baseia no mistério da gratuitidade de Deus, não se reduzindo a um simples humanitarismo, ainda que esteja ancorada no terreno profano e não no religioso.

J. Moingt, “Dios que viene al hombre”, Sígueme, Salamanca, 2011, II-2, pp. 476-477, 505 (sublinhados do autor).


[1] Veja a sua famosa “Teoría general de la ocupación, el interés y el dinero” (edição castelhana, Edicions 62, Barcelona, 1987, p. 308).
[2] Discurso aos empresários católicos em Maio de 1964.