No
coração do projecto de Jesus, o quê:
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constituir uma Igreja ou libertar os marginalizados?
Padre Giulio Girardi, sdb |
Um falso problema?
O
problema da identidade cristã, hoje,
tal como emerge do debate à volta da teologia da libertação, remete-nos para
uma disjunção fundamental: no coração do projecto de Jesus está a constituição
da Igreja ou a libertação dos pobres? (…)
À
primeira vista, parece uma hipótese artificial. Se, com efeito, ser cristão
significa afrontar os problemas da vida e da história em Igreja, como é que é possível, para um
cristão, ver na Igreja um dos dois pólos da questão? Ainda por cima, quando o
Concílio e o pós-Concílio recuperaram, a partir da tradição católica, o tópico
do “Povo de Deus”, e, em estreita ligação a este, o tema da «Igreja dos
pobres», ou seja, uma Igreja que não se contrapõe aos marginalizados, mas que
faz corpo com eles. Mais: uma Igreja que está
centrada nos marginalizados. A contraposição «Igreja versus
marginalizados», «Igreja versus pobres» parece nascer duma matriz de
natureza ideológica: essas polaridades não nascem da própria realidade da
Igreja, mas de categorias analíticas que a interpretam e que se propõem ser
científicas, mas que, na verdade, estão contaminadas
por pressupostos filosóficos anti-cristãos.
Sendo
assim, o dilema «a Igreja ou os marginalizados» será um falso dilema? Ao longo
destas páginas, e dolorosamente, teremos que constatar que não é bem assim.
Paradoxalmente, o dilema «a Igreja ou os
marginalizados» existe no próprio seio da Igreja e constitui o aspecto mais agudo das tensões que a
atravessam. Para muitos crentes, em diversas partes do planeta, traduz, hoje, a
opção fundamental de vida e de fé que têm pela frente. Para esses, a Igreja, no que diz respeito à sua fé, é ao mesmo tempo
espaço de amadurecimento e motivo de crise, lugar privilegiado de encontro com
Deus e cortinado que oculta a presença de Deus, lugar de comunhão íntima e
terreno de conflitos dilacerantes.
A
explicação para esta realidade é, sem dúvida, complexa. Não chega dizer que
tudo fica explicado quando deploramos a corrupção do clero e da hierarquia, a
sua vontade de poder ou a infidelidade da Igreja ao Evangelho. Esta explicação,
para além de ser inadequada, é profundamente injusta. Quem conheça por dentro o
clero e a vida religiosa, os métodos de recrutamento que são empregues, as
motivações que estão por trás deles, o clima em que se partilha a formação sabe
de quanta sinceridade, quanto sonho, quanta generosidade, quanta paixão por
Deus e pelos homens anima a vida e a acção das pessoas «consagradas». A
mediocridade e a corrupção certamente que existem também entre elas, mas são
excepção e nunca a regra.
Da
própria Igreja institucional, aliás, a vários níveis, fazem parte pessoas cuja
dedicação e testemunho cristão são impressionantes. Veja-se o caso de numerosos
religiosos e religiosas, de leigos e leigas em diversas partes do mundo
dedicados ao serviço dos pobres, dos inválidos, dos leprosos, dos
toxicodependentes, dos presos, etc. Impossível não reconhecer, pelo menos a
título emblemático, a acção da Madre Teresa de Calcutá entre os pobres e os
moribundos da Índia.
O
problema não está aqui. Se ele, para muitos crentes da Igreja, se constituiu
num problema de consciência não é por existir a mediocridade dos seus membros nem
tampouco dos seus dirigentes. Tem a ver com a função objectiva que a
Igreja desempenha
na sociedade e no mundo, e, isto, por razões que devemos procurar encontrar,
antes de tudo, no plano objectivo e não no subjectivo. O que, de facto, preocupa a consciência de muitos
crentes é que a Igreja tenha passado de meio destinado à
realização do Reino de Deus em fim da sua própria acção; tenha passado de espaço de
busca da verdade e de escuta da Palavra a critério último e exclusivo da
verdade; tenha passado de instituição nascida para servir e se tenha tornado
num complexo aparelho de poder preocupado em ser representação de Deus,
aparelho esse a ser reconhecido e servido. É como se a primazia do homem sobre
o sábado, vigorosamente reivindicada por Jesus de modo polémico na Sinagoga,
tivesse cedido o seu lugar novamente à primazia do sábado sobre o homem e, tudo
isto, paradoxalmente, em nome de Jesus.
A esta função objectiva, e à
auto-consciência que a ela está a associada, eu chamo «eclesiocentrismo». Aqui reside um dos problemas
mais sérios e corrosivos da Igreja de hoje, que no passado também atacou a
Sinagoga. (…)
Giulio Girardi, sdb
[1926-2012]
[pp.
9]
EL PAÍS – J. J. TAMAYO, 29 FEV 2012