teologia para leigos

26 de junho de 2013

IDENTIDADE CRISTÃ & POLÍTICA [G. GIRARDI]

No coração do projecto de Jesus, o quê:
- constituir uma Igreja ou libertar os marginalizados?


Padre Giulio Girardi, sdb




Um falso problema?

O problema da identidade cristã, hoje, tal como emerge do debate à volta da teologia da libertação, remete-nos para uma disjunção fundamental: no coração do projecto de Jesus está a constituição da Igreja ou a libertação dos pobres? (…)

À primeira vista, parece uma hipótese artificial. Se, com efeito, ser cristão significa afrontar os problemas da vida e da história em Igreja, como é que é possível, para um cristão, ver na Igreja um dos dois pólos da questão? Ainda por cima, quando o Concílio e o pós-Concílio recuperaram, a partir da tradição católica, o tópico do “Povo de Deus”, e, em estreita ligação a este, o tema da «Igreja dos pobres», ou seja, uma Igreja que não se contrapõe aos marginalizados, mas que faz corpo com eles. Mais: uma Igreja que está centrada nos marginalizados. A contraposição «Igreja versus marginalizados», «Igreja versus pobres» parece nascer duma matriz de natureza ideológica: essas polaridades não nascem da própria realidade da Igreja, mas de categorias analíticas que a interpretam e que se propõem ser científicas, mas que, na verdade, estão contaminadas por pressupostos filosóficos anti-cristãos.

Sendo assim, o dilema «a Igreja ou os marginalizados» será um falso dilema? Ao longo destas páginas, e dolorosamente, teremos que constatar que não é bem assim. Paradoxalmente, o dilema «a Igreja ou os marginalizados» existe no próprio seio da Igreja e constitui o aspecto mais agudo das tensões que a atravessam. Para muitos crentes, em diversas partes do planeta, traduz, hoje, a opção fundamental de vida e de fé que têm pela frente. Para esses, a Igreja, no que diz respeito à sua fé, é ao mesmo tempo espaço de amadurecimento e motivo de crise, lugar privilegiado de encontro com Deus e cortinado que oculta a presença de Deus, lugar de comunhão íntima e terreno de conflitos dilacerantes.

A explicação para esta realidade é, sem dúvida, complexa. Não chega dizer que tudo fica explicado quando deploramos a corrupção do clero e da hierarquia, a sua vontade de poder ou a infidelidade da Igreja ao Evangelho. Esta explicação, para além de ser inadequada, é profundamente injusta. Quem conheça por dentro o clero e a vida religiosa, os métodos de recrutamento que são empregues, as motivações que estão por trás deles, o clima em que se partilha a formação sabe de quanta sinceridade, quanto sonho, quanta generosidade, quanta paixão por Deus e pelos homens anima a vida e a acção das pessoas «consagradas». A mediocridade e a corrupção certamente que existem também entre elas, mas são excepção e nunca a regra.

Da própria Igreja institucional, aliás, a vários níveis, fazem parte pessoas cuja dedicação e testemunho cristão são impressionantes. Veja-se o caso de numerosos religiosos e religiosas, de leigos e leigas em diversas partes do mundo dedicados ao serviço dos pobres, dos inválidos, dos leprosos, dos toxicodependentes, dos presos, etc. Impossível não reconhecer, pelo menos a título emblemático, a acção da Madre Teresa de Calcutá entre os pobres e os moribundos da Índia.

O problema não está aqui. Se ele, para muitos crentes da Igreja, se constituiu num problema de consciência não é por existir a mediocridade dos seus membros nem tampouco dos seus dirigentes. Tem a ver com a função objectiva que a Igreja desempenha na sociedade e no mundo, e, isto, por razões que devemos procurar encontrar, antes de tudo, no plano objectivo e não no subjectivo. O que, de facto, preocupa a consciência de muitos crentes é que a Igreja tenha passado de meio destinado à realização do Reino de Deus em fim da sua própria acção; tenha passado de espaço de busca da verdade e de escuta da Palavra a critério último e exclusivo da verdade; tenha passado de instituição nascida para servir e se tenha tornado num complexo aparelho de poder preocupado em ser representação de Deus, aparelho esse a ser reconhecido e servido. É como se a primazia do homem sobre o sábado, vigorosamente reivindicada por Jesus de modo polémico na Sinagoga, tivesse cedido o seu lugar novamente à primazia do sábado sobre o homem e, tudo isto, paradoxalmente, em nome de Jesus.

A esta função objectiva, e à auto-consciência que a ela está a associada, eu chamo «eclesiocentrismo». Aqui reside um dos problemas mais sérios e corrosivos da Igreja de hoje, que no passado também atacou a Sinagoga. (…)

Giulio Girardi, sdb [1926-2012]

[pp. 9]

EL PAÍS – J. J. TAMAYO, 29 FEV 2012