teologia para leigos

11 de janeiro de 2012

JOÃO XXIII - AQUELE PAPA APRENDEU COM A HISTÓRIA...

Há 50 anos – Roma, 11 Out. 1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II


Pio XII, antecessor de João XXIII



O génio profético
de João XXIII


A ideia de convocar e celebrar um concílio ecuménico foi do Papa João XXIII – ocorreu-lhe a ele e somente a ele. Aliás, o Papa disse-o em público que tal lhe ocorrera subitamente. Não se tratou, portanto, de uma ideia premeditada, nem dum projecto calculista. Neste sentido, pode dizer-se que o Concílio não foi resultado de um processo de análise e de estudo, fruto de sisudas investigações. Pelo contrário, o Concílio foi um fruto inesperado de uma intuição profética. O próprio João XXIII o explicou assim, aquando do discurso de abertura, com a simplicidade e aparente ingenuidade que caracterizava aquele homem: foi tudo «um toque inesperado, um facho de luz do alto, uma grande suavidade nos olhos e no coração, mas, ao mesmo tempo, um fervor, um grande fervor que surpreendentemente alastrou por todo o mundo enquanto se esperava a celebração do concílio». Foi assim que João XXIII deu a entender que o primeiro a ficar surpreendido pela ideia de celebrar um concílio foi o próprio Papa que o haveria de convocar. Aquilo que ele pôs em marcha não foi uma iniciativa humana, puramente humana. Tratou-se de um inesperado impulso profético.

Este impulso foi visto de seguida como algo inteiramente novo e original, na medida em que representou uma mudança de posições radical naquilo que, até então, foram consideradas como «o normal» na Igreja. O dia 11 de Setembro de 1962, ou seja, um mês antes de se dar início aos trabalhos do Concílio, João XXIII dirigiu uma mensagem radiodifundida a todos os cristãos de todo o mundo. Nela, o Papa dizia que a finalidade do Concílio não era a de limitar-se a uma simples repetição de afirmações teológicas tradicionais, mas que deveria considerar como importante uma nova formulação da doutrina «nos moldes e nas proporções de um Magistério com carácter sobretudo pastoral». Portanto, a ideia do Papa não se centrava em repetir o já sabido, nem em defender as posições de sempre, nem sequer em formular novos dogmas ou verdades inquestionáveis. Por mais importante que tudo isso seja, nada disso preocupava ou interessava ao Papa João XXIII. A sua intenção era apresentar a Igreja de maneira que fosse uma verdadeira resposta às exigências da humanidade.

Ao adoptar esta postura de princípio, João XXIII dava início a um caminho novo na Igreja. Assim, inaugurava um novo estilo de ser Papa. Já não se tratava de se colocar na defensiva perante erros, nem de condenar ninguém. O que o Papa queria era que a Igreja dialogasse com o mundo e com a cultura do nosso tempo. Por isso, no discurso de abertura do Concílio, João XXIII disse que a Igreja, mantendo-se fiel à sua tradição multissecular, «deve olhar o presente, considerando as novas condições e formas de vida introduzidas pelo mundo moderno, as quais abriram novas vias para o apostolado católico». O Papa falava, pois, de «olhar o presente», das «novas condições» e das «novas formas de vida» e de como tudo isso tinha que interessar à Igreja; que a Igreja devia escutar isso e, por conseguinte, teria que o ter em conta na hora de falar e de actuar. Tinha-se passado do anátema ao «diálogo». Uma luz nova e uma brisa distinta haviam-se constituído, assim, no novo emblema da Igreja.

Mas a genialidade profética de João XXIII trazia consigo um outro aspecto que a Igreja nunca deveria esquecer. Aquele Papa pôs-se a olhar este mundo – um mundo que tinha sido tão agitado e, até, tão turbulento, no século XX – não com pessimismo e muito menos com rejeição, por mais maquilhada que fosse essa rejeição, como é usual nos profissionais da religião. Nada disso. No discurso de abertura do Concílio, João XXIII denunciou os «profetas da desgraça que passam a vida a anunciar nefandos acontecimentos como se o fim dos tempos estivesse iminente». Com estas palavras, o Papa referia-se aos «que, nos tempos modernos, não vêem outra coisa senão prevaricação e ruína». São os que «passam a vida a dizer que a nossa hora, comparativamente ao passado, está pior e assim comportam-se como aqueles que nada têm a aprender com a História». Assim, desde os primeiros momentos, o Concílio iniciou os seus trabalhos com um espírito de optimismo diante do mundo e da vida, diante da cultura e dos acontecimentos do tempo presente. Desta forma a Igreja adoptava uma atitude nova diante face à cultura da modernidade, aquela mesma cultura que caracterizava o nosso mundo nos últimos séculos. Como também poderia ser consequente, no pós-concílio, com a cultura da pos-modernidade, sobretudo nos últimos vinte anos.

É bem provável que muita gente não se tenha ainda dado conta da surpreendente novidade que realmente significou esta postura ou, sequer, esta posição global do Concílio. Para fazer uma ideia de tudo o que isto pressupôs, é necessário recordar o conflito que, desde o século XVIII, a Igreja vinha arrastando no que diz respeito às suas relações com a modernidade. A Ilustração (no campo das ideias) e a Revolução Francesa (no que à política diz respeito) haviam sido traumatizantes para a religião em geral e para a Igreja em concreto. A partir desse momento, a Igreja vira que tinha perdido a posição central que, até então, ocupara no mundo ocidental. Porque, segundo as convicções da modernidade, a religião não podia continuar a tutelar, mandar e proibir o que as pessoas pensavam e aquilo que os governantes faziam ou deixavam de fazer. Os homens da Igreja perceberam, então, que tinham de reconstruir a ordem perdida. E, para isso, nada melhor do que as ideias do catolicismo mais tradicional. Tornou-se programática a afirmação de Lamennais: «De que se trata? De reconstruir a sociedade política com a ajuda da sociedade religiosa, o que consiste na união dos espíritos através da obediência ao mesmo poder». Este poder, consoante se pensava nos ambientes eclesiásticos, era o poder do Papa.

Por isso, quando, em 1864, Pio IX editou o Syllabus, isto é, a Colecção dos Erros que a Igreja condenava, entre esses erros estava que «a razão humana se pode equiparar à própria religião». Esta condenação acarretava que a filosofia se devia situar num plano inferior à teologia (nº 8). Isto significava que a racionalidade humana tinha que estar submetida à fé. Ora, era evidente que, como a partir da Ilustração as ideias da modernidade nunca aceitaram tal postura, as autoridades eclesiásticas andaram (demasiadas vezes) à pancada com tudo aquilo que, para o mundo eclesial, representava o «mundo moderno» e suas pretensões de liberdade e de autonomia. Neste sentido, é chocante a última afirmação do Syllabus de Pio IX: «O Papa não pode nem deve reconciliar-se com o progresso e com a modernidade» (cum recenti civilitate) (nº 80).



S. Tomás de Aquino


Esta maneira de pensar manteve-se, de modo mais ou menos dissimulado nos ambientes eclesiásticos, durante o século XX. O Papa Pio XII, o antecessor imediato de João XXIII, continuava a defender o carácter histórico dos três primeiros capítulos do Génesis (Carta de 16-01-1948) e condenando uma série de erros filosóficos, por exemplo, o existencialismo, na Encíclica Humani Generis (1950). Na mesma encíclica impunha a filosofia de S. Tomás de Aquino como a única válida para as faculdades de estudos eclesiásticos e para os seminários. Ou seja, continuava-se a pensar que a autoridade eclesiástica, na medida em que é a intérprete do dom divino da revelação, tem o poder e o dever de ditame sobre a razão humana em matéria do que é verdadeiro e do que é falso. Tal passava-se não apenas em relação a assuntos religiosos, mas também em outros âmbitos, tais como a filosofia. Naturalmente, uma instituição que assim se situa face ao mundo, dificilmente pode estabelecer qualquer diálogo com a cultura que é aceite como usual nos tempos em que vivemos. É aqui que radica a dificuldade maior que a Igreja, nos últimos séculos, teve para se presentificar à sociedade.

Colocadas as coisas assim, compreende-se, sem grande dificuldade, a enorme novidade que representou a postura de João XXIII quando afirmou que não se tratava de condenar nada nem ninguém, mas de olhar com simpatia, com aceitação e em atitude de diálogo o mundo que nos tocou em sorte viver. Nisto consistiu a genialidade profética do Papa que teve a feliz inspiração de convocar um concílio para situar a Igreja, não frente ao mundo numa atitude de censura e de condenação, mas numa vontade de sincero diálogo com a sociedade e com a cultura actuais.

O problema é que, uma vez terminado o Concílio, as autoridades eclesiásticas deram, inúmeras vezes, sinais de quererem continuar a alimentar as ideias clericais do século XIX. Não segundo os mesmos moldes anteriores, bem entendido, mas, ao cabo e ao rabo, segundo ideias que justificavam o ideal de uma sociedade e cultura em que o centro é ocupado pela religião, como autoridade suprema e como ponto de referência de tudo o mais. Claro que hoje já não se diz, obviamente, que a fé tem o direito e o dever de ditar aquilo que a razão deve ou não deve pensar. Mas diz-se, por exemplo, que o cristianismo realizou «a síntese entre razão, fé e vida». Mesmo para aqueles que nada saibam da história do cristianismo, mesmo esses estão cientes dos conflitos que existiram entre as doutrinas eclesiásticas e os progressos da ciência, da liberdade e dos direitos humanos. É supérfluo recordar aqui histórias do passado que toda a gente retém ainda na memória, já que o importante, hoje, é recuperar a genialidade profética daquele que foi Papa: João XXIII.

José Maria Castillo [2002]