Há 50 anos abriu oficialmente o Concílio Ecuménico Vaticano II
Urbi et Orbi
Um programa de reforma do papado
Por uma Igreja nazarena, serva e evangélica |
Diz a Tradição que o Papa deve falar para a sua diocese de Roma (Urbi) e para o mundo inteiro (Orbi).
Seguindo uma temática que vem sendo discutida há tempos, também quero deixar alguns traços do que poderá ser o Papa, bispo católico de Roma, para a sua cidade e para o mundo, no século XXI.
Venho tratando deste tema com certa frequência, não só no blog [«El blog de X. Pikaza», in blogs de ‘Periodista Digital’], mas também em vários livros, tais como «Sistema, Libertad, Iglesia» e «Presente y Futuro de los Papas» [Trotta, Madrid, 2001 & 2006, respectivamente]. Não se trata de uma proposta definitiva, mas, antes, de um decálogo de indicações básicas para continuar no Caminho [Act 19:9.23], após os vinte séculos de cristianismo. Porque creio que é importante o ministério da unidade do Papado para a igreja (urbi) e para o mundo (orbi), proponho este decálogo de reforma.
1. Graças a Deus
Graças a Deus, o papado, como instituição, surgiu na sequência de instituições e elementos do Novo Testamento, especialmente, do Evangelho de Mateus, mas também a partir da própria dinâmica da igreja cristã, tendo o Império Romano como pano de fundo da História do Ocidente. Creio que o desenvolvimento do papado responde não só à causalidade da história e à luta pelo poder que sempre se estabelece em todas as instituições, mas a um impulso rumo à unidade e à solidariedade que vem a partir do evangelho.
Por isso penso que o papado é uma instituição positiva, ainda que deva purificar-se, elevar-se e adaptar-se, quer à realidade cristã, quer ao mundo presente, do seguinte modo.
2. Abandonar o poder político, regressar ao século VIII
A meados do séc. VIII, Pepino, o Breve (pai de Carlos Magno), a quem o Papa coroou como Imperador de Roma no ano 800, criou os «Estados do Vaticano» (que até hoje duram), de modo a garantir autonomia política, social e religiosa dos papas, num mundo conflituoso (oriente e ocidente) e ameaçado por duras pressões militares por parte de ostrogodos, lombardos e senhores indómitos das imediações de Roma.
Passados quase 1300 anos, o Estado do Vaticano deixou de fazer sentido. Penso que o Papa deve abandonar, sem contrapartidas políticas, o seu poder de soberano como Chefe de Estado, para passar a situar a sua autoridade moral e religiosa no plano estrito do evangelho. Não se trata de abandonar a autoridade, mas de abandonar um tipo de autoridade vinculada ao poder político para passar a ser autoridade, não só moral, mas religiosa, e, sobretudo, evangélica.
A experiência dos treze séculos de poder político deve servir para aprender com e superar os erros antigos, deve servir para expressar e irradiar um tipo elevado de humanidade, na linha de Jesus, a qual é busca de humanidade (o Filho do Homem), experiência do Reino. Já é tempo de, neste campo, dar início a uma grande mutação.
3. Unidade na diversidade, para lá do séc. XI
Antes de mais nada e ao longo de muito séculos, o Papa foi o Bispo da Gloriosa Roma, sede que conserva a memória de Pedro e Paulo e que é centro de referência das diversas sedes cristãs. No séc. XI, por exigências históricas, tentando sair duma muito dura crise ‘de vida ou de morte’ e reformando-se a si mesmo através da Reforma Gregoriana, o Papa quis impor um tipo de unidade às igrejas. No seu tempo, essa reforma foi positiva – hoje tem de se realizar em outros moldes.
Actualmente, o bispo de Roma deve recuperar o seu impulso apostólico de comunhão, deixando às Igrejas liberdade para encontrar o seu caminho cristão, potenciando a comunhão entre elas. Nesta linha, é preciso superar as pressões e tensões que levaram ao cisma cristão entre oriente e ocidente.
A unidade da Igreja ocidental foi conseguida, no séc. XI, à custa do direito, do pleno poder papal e de imposição religiosa. Para o ocidente foi um caminho bom, mas o papado perdeu a sua comunhão com o oriente… A nova unidade, que agora se busca, na linha do evangelho, deve ser união na diversidade, recuperando a inicial função de Pedro na Igreja. Não negamos o que teve valor, mas importa elevar o nível, encontrar formas de comunhão para todos os homens e povos, na linha duma humanidade evangélica. Trata-se, portanto, de inventar um papado distinto.
4. Deixar o Vaticano, regressar ao séc. XVI
Um dos ‘sinais’ e motivo para a Reforma Protestante foi o facto de os Papas quererem construir os admiráveis complexos da Basílica e os Palácios do Vaticano, os quais demoraram mais de dois séculos para se concluírem… Um sinal para os tempos de hoje seria abandonar esses palácios, não pelas condições de vida aí, mas porque representam uma história que tem que ser recriada. Deveriam trasladarem-se para um organismo internacional, tais como a UNESCO, com fins culturais e de memória histórica. Ali ficariam os livros e arquivos, toda uma história de quase mil anos de papado que, hoje, tem que ser diferente.
Nesta linha, é preciso retomar os bons impulsos da Reforma Protestante, mas ‘em chave’ de unidade e comunhão, todos volvendo à raiz do Cristianismo, à «Justificação» pela Fé e pelo amor, pela unidade das Igrejas e pela liberdade de consciência de cada crente.
Pelo que, os palácios do Vaticano (incluindo a própria Basílica), deveriam converter-se em «museu cristão» e museu da humanidade. O Louvre é museu, Versailles é museu… Museu há-de ser o Vaticano, museu ao serviço da experiência religiosa e cristã ao longo da história, quiçá, sob a autoridade da Unesco. O Papa já não necessita desses «palácios» (onde, por outro lado, se vive pior do que em outros aposentos mais simples e mais actualizados).
5. Bispo de Roma
O Papa devia ser, e de novo, radicalmente, o Bispo de Roma, exemplo e lugar de referência para as igrejas, autoridade moral, deixando que as diversas igrejas sejam o que quiserem e poderem ser, ainda que em comunhão, em chave de ‘comunidades em rede’. A imensa maioria dos «poderes» papais, que estão centralizados em Roma, são, hoje, inúteis, já que entramos na era da «cultura da rede» mediática e humana [«cultura da net»] sem um comando unificado, coisa que antes era necessária. Nesta nova rede de igrejas, o Bispo de Roma pode e deve ser muito importante, mas como irmão entre irmãos, não como pai e mestre de outras igrejas.
Neste contexto, a Cúria do Vaticano deve «emagrecer» até desaparecer…
Certamente, os «documentos» do Vaticano devem permanecer, ser guardados, estudados, etc. Porém, o Vaticano já não tem que produzir mais «documentos» destinados às igrejas, sendo elas quem deve fazer caminho, coordenadas entre si de uma forma nova. É para isso que estamos numa era de «redes» informáticas, de comunicação e de busca comum as quais melhor respondem ao evangelho, muito mais do que o centralismo de Roma.
Neste momento, a grande tarefa do papa consiste em aprender a ser Bispo de Roma, facto que está perdido no esquecimento há séculos. Sem o contacto com as pessoas das praças e dos bairros de Roma não se pode ser Bispo, nem Papa. Esse contacto não pode ser um acidente. Ele é a verdade basilar da vida cristã. E o Papa tem que ser um cristão exemplar.
6. Deixar que as igrejas o sejam
Que as igrejas sejam elas mesmas, que explorem, que caminhem, sob o dinamismo do evangelho! Porque aquilo que unifica as igrejas não é o Papa, nem o Código [de Direito Canónico], mas Jesus Cristo, realidade presente como Pão (eucaristia) e como Palavra (capacidade de escutar a voz de Deus). Assim passaremos da Unidade Sagrada de tipo unitário à Comunhão ou Sinfonia da Igreja. Este século XXI há-de ser o momento da confiança nas novas e nas antigas igrejas. Testemunha e promotor desta confiança terá que ser o Bispo de Roma, dada a sua importância na história das igrejas. Claro que isto significa que a instituição dos cardeais deve desaparecer, nos moldes que ela tem actualmente.
Que o Bispo de Roma seja um bom bispo, que nele as outras igrejas tenham e coloquem a sua confiança e para ele dirijam os olhos, numa linha de caminho humano partilhado, em linha evangélica. É por isso que o bispo de Roma tem que ser eleito pela igreja de Roma, ainda que em comunhão com as outras igrejas.
Este terá de ser «um salto em direcção à confiança». Foi este o salto que Pedro e Paulo deram quando vieram para Roma, que era o centro do mundo do seu tempo. Um salto rumo ao futuro da transformação humana, em linha de evangelho – este terá que ser o gesto supremo dos Papas.
7. Aguardar o carisma profético
A grande Reforma da Igreja, em linha evangélica, não se pode programar!
Ela não acontece por imposição ou decreto, por documento ou código, mas através do espírito profético. Por isso, a transformação cristã das igrejas há-de ser obra da própria criatividade profética da Igreja. Encontramo-nos num momento privilegiado, por várias razões:
a) Acesso das mulheres, pela sua palavra e criatividade cristã, a todos os planos da vida eclesial, desde os ministérios à teologia.
b) Acesso de outras culturas… Eis o momento de criação de um cristianismo asiático, africano, americano e oriental.
c) Acesso à modernidade integral, não em linha de pura adaptação, mas de transformação. Não se trata dos Papas virarem modernos, mas de, entrando a sério no coração da modernidade, a transformarem a partir do Espírito de Cristo.
Contudo, não se pode determinar de antemão o que será a reforma das igrejas, mas, apenas, que ela deve surgir do dinamismo do evangelho como um impulso de vida, como experiência de oração, como abertura para o mistério da humanidade em comunhão com as diversas grandes religiões.
8. Por Cristo, abertura ao mistério da vida
A igreja cristã quer ser testemunha de abertura ao mistério de Deus, por Cristo. Este é o momento apropriado para deixar que as igrejas e as pessoas cristãs se deixem de novo emocionar pela Palavra e pela Vida de Jesus na Sua condição de revelador do Pai e Fonte do Espírito Santo. A Igreja não é um fim em si mesma, é testemunho do Reino de Deus, isto é, da Nova Humanidade.
Isso significa que as instituições devem permanecer na sombra, de um modo especial o Papado, para que emerja a Nova Humanidade, isto é, o Reino de Deus, cujos características Jesus assinalou com a entrega da sua própria vida. Donde, o que importa não é a «reforma canónica» do Vaticano ou do Papa, mas a reforma orante dos cristãos (na linha de Teresa de Jesus) ou a reforma da vida, em chave de confiança e entrega (como Francisco de Assis). Regressar a Cristo e, por Cristo, ao Deus da Vida – esse é o princípio de qualquer reforma.
Não há reforma do papado sem reforma das igrejas. Por isso, o bispo de Roma, conjuntamente com outros bispos e com outros líderes cristãos, há-de manter olho vivo, escutando os sinais dos tempos e o sopro de transformações evangélicas que ora começam, mas a partir da base, a partir da raiz da humanidade, para, assim, aprender e, logo, se colocar em marcha.
9. Um tempo de transição, não de abandono
Disse que o Papa deve recuar a posições anteriores ao séc. XVI (sem Vaticano), ao séc. XI (sem centralismo), ao séc. VIII (sem Estados Pontifícios), mas isso não pode ser um simples abandono. Queimar todos os papéis, deixar todas as funções e … abandonar os seis mil milhões de católicos e os seis mil milhões de crentes do mundo inteiro à intempérie? Nada disso.
O Papado tem uma responsabilidade histórica imensa. Não pode «abandonar» sem mais (em certo sentido acarretaria o caos…), mas deve ir moderando e modelando momentos de transição, que, a meu ver, já começaram. Não se trata de se «deixar» para que tudo se perda, mas de «ir deixando» para que outros ocupem de uma maneira outra, segundo um caminho que seja para todos, com outras formas de unidade e comunhão, mais próximas do evangelho.
Este poderia ser o último serviço do Papado nesta «antiga era» em que nos encontramos. Colocar o seu imenso potencial de «unidade» ao serviço da reforma da Igreja. Nesse sentido, o facto do Papa ter um imenso poder pode ser uma providência de Deus, desde que o ponha ao serviço da liberdade dos cristãos e das igrejas, sem medo da liberdade, sem medo da presença de Cristo nas comunidades cristãs e no mundo.
10. Um futuro nas mãos de Deus, isto é, da Nova Humanidade
Segundo o princípio da Encarnação, Deus revela-se no humano (Concílio de Calcedónia, 451 dC). Este caminho de recriação do Papado não é para negar a unidade, mas para criar uma Unidade de Comunhão. Estes poderão ser alguns dos seus traços característicos:
a) Deve ser um tempo «conciliar», isto é, de conciliação
b) Deve ser um caminho de «alianças», isto é, de comunhão na vida, no pão e no vinho, isto é, na eucaristia
c) Deve ser um caminho de evangelização dos pobres, dos últimos do mundo, não a partir das culturas triunfantes, mas a partir do sofrimento do mundo
d) Deve ser um tempo de «cruz», de saber sofrer, não por masoquismo, mas segundo a criação pascal
e) Deve ser um tempo de criação profética nas mãos do Espírito de Deus…
Xabier Pikaza
11 Set 2011