teologia para leigos

23 de janeiro de 2012

ASSISTIR À MISSA NÃO AJUDA A DESCOBRIR QUEM É JESUS

Henri-Marie Le Boursicaud




CORRESPONDÊNCIA LE BOURSICAUD - B. HÄRING


Paris, 16 de Março de 1992

Caro padre Bernhard Häring:

Escrevo-lhe tal como escrevia antes ao nosso grande amigo François Bourdeau, por uma necessidade indizível de me exprimir, de me dizer, de ser escutado.

Hoje, gostaria de lhe propor como tema da nossa conversa o seguinte: a IGREJAgraças à qual penso ter encontrado Cristo de uma forma bastante profunda, mas que, no entanto, me sinto capaz de trair.

Não acredito que Jesus de Nazaré queira que esta sociedade [a Igreja], que fundou há vinte séculos, se afaste cada vez mais dos homens, tal como um mar que, constante e inevitavelmente, se evaporasse pouco a pouco. Mas a realidade é mesmo essa. A Igreja, organizada pelos apóstolos segundo o modelo da religião judaica, sem grandes alterações, não foi capaz de transmitir totalmente aos homens o que Jesus realmente fez e viveu, embora nela tenha havido sempre verdadeiros discípulos de Jesus, verdadeiros pioneiros de caminhos novos.

Devido à minha orientação pessoal e graças também a Santo Afonso, nosso fundador, sou particularmente interpelado pelos mais desfavorecidos, sejam eles quem for. Acho que posso mesmo dizer – é uma constatação minha – que a Igreja, enquanto instituição, nunca esteve do lado dos mais pobres partilhando da sua vida, acolhendo-os e defendendo-os. Apesar das aparências em contrário, ela esteve sempre do lado dos mais poderosos.

Também, assistir à Missa – acto central do cristianismo – não ajuda muito a descobrir quem é Jesus, nem a alcançá-Lo. Não poderíamos até dizer que a Missa se afasta do seu verdadeiro objectivo, tornando-se ela própria um fim em si mesma?

Começo a adivinhar a necessidade de uma mutação da Igreja a partir das bases. Isso inquieta-me, abala-me, angustia-me, mas, ao mesmo tempo, enche-me de alegre entusiasmo. Parece-me que o povo cristão, em geral gente simples, e sobretudo aqueles que por coerência vão abandonando a Igreja-Instituição, se apercebe, sem o poder exprimir claramente, que o cristianismo vai desaparecer se os seus membros não encontrarem uma solução, se não mudarem, tornando-se autênticos discípulos de Jesus sempre vivo entre nós.

No passado domingo, sendo convidado pela Comunidade Emaús-Fraternidade de Saint-Agnan, em Charante, falei em duas pequenas Igrejas dos arredores. (…) Há muita gente, sobretudo jovens e gente pobre, que gosta imenso de me ouvir exprimir a minha Fé. Outros, principalmente padres, dizem que estou queimado e não falta quem me queira queimar ainda mais. Recentemente, o Superior Provincial escreveu-me uma carta em que me dizia: «…Coragem! Oxalá possas levar a cabo os teus objectivos, que continues a anunciar com ardor a Palavra, fazendo dom completo de ti mesmo. Tu semeias. Deus não deixará de fazer desabrochar a vida». Palavras sem dúvida amigáveis e animadoras nesta minha missão de ir à frente a desbravar caminho para que outros por ele possam avançar. Que acha?

Esta minha carta está já longa. Vou ficar por aqui. O meu muito obrigado por ter a paciência de me ouvir, de me ler e de me responder.

Henri Le Boursicaud




Gars, 27 de Março de 1992


Caro irmão Henri,

Muitos se questionam sobre o mesmo que o senhor. «Será que esta Igreja pode ser mesmo obra de Cristo?» Esta pergunta é inevitável. Procurando responder um pouco a ela, começo por lhe lembrar uma pequena história: Um judeu vem a Roma a fim de procurar encontrar todos os possíveis erros da Igreja e assim poder combater mais eficazmente contra ela. Descoberta após descoberta, acaba por se converter, apoiando-se no seguinte argumento: Se a Igreja pode dar-se ao luxo de cometer tantos erros, sem se destruir, é porque, de facto, é obra de Deus.

Nós não pregamos a Igreja, mas sim a Boa Nova de Jesus Cristo. Mas se pregarmos esta Boa Nova e vivermos de acordo com ela também, tanto nós como as autoridades da Igreja devemos submeter-nos ao julgamento do Evangelho.

Jesus funda a Igreja: chama discípulos, escolhe apóstolos, quer uma comunidade de crentes, de servidores do Reino do Pai. Mas já S. Paulo, referindo-se às Igrejas do Senhor, encontra nelas motivos suficientes de censura. Tal e tal Igreja não era suficientemente fiel ao chamamento. Durante os primeiros séculos, houve mesmo vários profetas, por toda a parte, para chamarem as Igrejas a uma maior conversão.

Ora, quando uma Igreja fala apenas de magistério e de obediência, sem que aceite o incómodo ministério dos profetas, é sinal de que carece de fidelidade às origens. As intolerâncias e o autoritarismo são sempre estruturas de pecado. S. Bernardo, meu patrono, apelida a política do Papa da altura de «adúltera», por estar toda ela imbuída de leis mundanas de Justiniano e não de leis  do Senhor. É este o estilo dos profetas. (…)

Numa altura em que se torna necessário denunciar as tendências restauracionistas, os triunfalismos, o centralismo totalmente anti-ecuménico, devemos dizer claramente e sem hesitar: a nomeação romana do sucessor de Dom Hélder Câmara é um claro sintoma de uma Igreja de estruturas doentias. Cristo quis e quer a Igreja, mas Ele não pode estar satisfeito com o rosto da Igreja apresentado pelo Vaticano, com todos os seus títulos anti-evangélicos e situações escandalosas a diversos níveis.

Naturalmente, que, apesar de tudo, temos na passagem do Génesis (18:16-33) uma consolação: certamente que há mais do que dez justos na cristandade. De facto, no meio de tanto aspecto negativo da Igreja-instituição, não deixo de ver simultaneamente nela milhões de cristãos, verdadeiros heróis, verdadeiros santos, que dedicam totalmente as suas vidas ao autêntico serviço do Evangelho. Até mesmo entre os Bispos houve e há santos, embora os santos de hoje não tenham grandes possibilidades de virem a ser bispos. Realmente, não deixa de ser este um momento crítico, mas um momento que, apesar de tudo, nos permite ter esperanças numa nova Primavera.

Que a alegria do Senhor e da Boa Nova evangélica nunca nos falte.

Shalom,

Bernard



Paris, 23 de Abril de 1993

Padre Häring:

Bom dia.
Gostei imenso da resposta que deu à questão que lhe tinha posto sobre a falta de padres para a celebração da Eucaristia. Também o bispo de Évreux, Jacques Gaillot, gostou, como pode deduzir das seguintes palavras que a seguir transcrevo de uma carta dele: «Obrigado pela sua carta e pela fotocópia da linda carta do P. Bernhard Häring. Penso exactamente da mesma forma. No entanto, uma das dificuldades que encontro surge das ADAP (Assembleias Dominicais na Ausência de Padre), onde tem lugar a comunhão. Os responsáveis dizem-me que o preceito do Senhor «tomai e comei todos» está a ser cumprido, embora estas assembleias sejam missas sem consagração.
Na minha opinião, a generalização das ADAP, que têm sem dúvida um papel pedagógico incontestável, não adianta muito porque, nelas, os cristãos continuam a comungar tal como antes, sem que o problema real fique resolvido. (…)»

1.A pergunta que agora lhe faço e que vem a propósito das palavras deste corajoso bispo de Évreux, é a seguinte: «O que é isso de ter Missa?» Será que o acto de assistir à Missa se limita a assistir ao milagre da consubstanciação realizado pelo padre, sem que se faça memória daquilo que Jesus viveu na véspera da sua paixão? Sim, o que é que significa realmente isto de se ter Missa? E, se um dia, no futuro, celebrantes casados tornarem possível que todos os cristãos possam já ter missa, porque já há consagração, só por isso, não será que o problema vai continuar inalterável? A sua resposta será certamente esclarecedora.

2.Uma outra questão que para mim é mesmo importante. Lutei e continuo a lutar com todas as minhas forças por um mundo mais justo e mais fraterno. Estou convencido de que só aquilo que construirmos em Fraternidade e Justiça será transformado pela vitória de Cristo ressuscitado. Acredito que será possível acabar com as marés negras da exploração. Naturalmente, que tanto eu como todos aqueles que lutam por uma mudança de estruturas sociais, somo considerados idealistas em sentido pejorativo. Mais. No movimento Emaús, onde Abbé Pierre tantas vezes repetiu que aliviar a miséria sem lutar contra as suas causas é desonesto, há quem afirme que os companheiros de Emaús não podem lutar contra as causas da miséria, porque, através do seu trabalho de recuperação, se estão também a aproveitar da sociedade de consumo e tudo isto seria para eles como um novo ópio. A sua opinião sobre isto será importante para mim, porque no congresso internacional do movimento Emaús, que irá ter lugar em Colónia em 1993, este tema será de certeza abordado (…).

3.Ainda uma terceira questão sobre uma realidade concreta da vida. Há um padre de sessenta anos que se confessa homossexual e que está a ser apoiado pelo Abbé Pierre. Ora, os responsáveis por Emaús em França reclamam que ele seja afastado o mais depressa possível de Abbé Pierre. François Bourdeau dizia-me que, segundo opinião médica, cerca de três por cento dos homossexuais poderiam curar-se. Quais? Como o saber, sem darmos a todos oportunidade de se curarem, depositando neles confiança e fé? Não será que, no fundo do seu ser, haverá alguém que trabalha com eles, com cada um deles, através de acções que são deles, mas não apenas deles, através de apelos interiores que são deles, mas também de alguém mais?

Houve pressões e encontros daqueles responsáveis com o Abbé Piere para lhe exigir que rejeitasse o padre homossexual, seu secretário. O Abbé Pierre, porém, acabou por lhes dizer: «Antes de eu o despedir a ele, tereis vós de me despedir a mim». (…)

Fico a aguardar a sua resposta.


Henri Le Boursicaud




Caro irmão Henri,

É com prazer que respondo às três questões da sua última carta.

1.Quanto à primeira, estou de acordo com o bispo de Évreux, Jacques Gaillot, tão conhecido e admirado entre nós. De facto, a acção das ADAP (Assembleias Dominicais na Ausência de Padre) é uma acção muito deficiente e, do ponto de vista teológico, incómoda. Porquê? Trata-se de uma solução evasiva e até contrária ao espírito da instituição da Memória Eucarística. Porquê essas celebrações com o pão pré-consagrado? Porque é que, em África, os catequistas são por vezes obrigados a fazer viagens de mais de 100 km para transportar o pão pré-consagrado? Porquê? Só porque são casados? Mesmo que as suas mulheres sejam umas santas…?!!

Esta prática revela bem o complexo neurótico do paternalismo anti-feminista. Impedir cristãos de poderem ter Missa, pura e simplesmente por causa da lei eclesiástica do celibato, condição considerada absolutamente necessária para a celebração válida da Ceia, revela uma mentalidade mesquinha e uma teologia desastrosa. Por agora, no entanto, penso que é melhor tolerar esta prática deficiente e teologicamente falsa para evitar uma injustiça ainda maior. Todavia, não podemos deixar de dizer que isto não pode continuar por muito tempo. Claro que os celebrantes casados quando, através da ordenação, estiverem autorizados a celebrar a Missa, devem, igualmente, ser autorizados a serem pastores das comunidades.

A ordenação de pessoas casadas não é apenas necessária para que todos os fiéis possam usufruir do seu direito fundamental «fazei isto em minha memória…», mas é também importante como testemunho do respeito pelo sacramento do matrimónio; além do mais, a pastoral da Igreja precisa também de padres que conheçam a vida, que tenham experiência profissional, etc. Mais – o testemunho do celibato vivido pelo Reino de Deus tornar-se-á certamente mais credível se se admitirem também clérigos casados. Poder-se-iam ainda acrescentar muitas outras razões que fariam com que a Igreja se tornasse mais credível, neste domínio.

2.Quanto à segunda questão, não há dúvida de que o capitalismo, na sua forma actual, não é coisa boa: urge que seja profundamente corrigido. Antes do congresso do movimento Emaús em Colónia, hei-de poder dizer algo mais. Por agora, o seu testemunho é indispensável, necessário, tal como o testemunho dos monges contra uma Igreja «constantiniana», que vive em concubinagem com os mais poderosos. A sua escolha de vida enche-se plenamente de sentido quando aliada à luta por um mundo mais justo.

3.Sobre o problema dos homossexuais, já estudei e escrevi bastante. Contudo, ainda não o cheguei a compreender claramente. O que o padre Bourdeau diz é, de facto, a opinião de muitos especialistas. Com a graça de Deus, acho que consegui curar várias pessoas bem intencionadas e dispostas a uma intensa espiritualidade, mas conheço também o insucesso de pessoas muito generosas.

Privar os homossexuais da misericórdia e da compreensão por parte da Igreja seria um desastre. Eles precisam de compreensão, de respeito e de encorajamento. Os juízes eclesiásticos jamais curaram um único homossexual. Eu agiria tal como o Abbé Pierre. Mas não possuo nenhuma solução geral. A nova geração de especialistas (teólogos, psicólogos, terapeutas) devem encarar este grave problema com humildade. Já mostraremos misericórdia se não julgarmos nem condenarmos, se mostrarmos respeito, se libertarmos os outros do complexo de culpa, se ajudarmos o homossexual concreto a compreender melhor a origem da sua doença…

Eis um modesto contributo, como resposta às suas tão importantes perguntas. Continuarei sempre pronto a aprofundar os meus pensamentos.

No amor de Cristo,

Bernhard Häring



[Excertos de «Em crente e activa liberdade» - 7 anos de Correspondência entre Bernhard Häring, padre Redentorista e pioneiro teólogo de Teologia Moral (falecido a 3 Julho 1998, com 85 anos) e Henri-Marie le Boursicaud, padre-operário Redentorista, membro-cofundador do Movimento Emaús] Ed. Perpétuo Socorro, Porto, Julho 1999.

http://osprodigios.blogspot.com/2010/05/henri-le-boursicaud.html