teologia para leigos

17 de janeiro de 2012

A IGREJA NÃO É O REINO DE DEUS


Há 50 anos – Roma, 11 Out. 1962
Abertura Solene do Concílio Ecuménico Vaticano II




A Igreja que o Concílio quis


Após os diversos esquemas preparatórios e as numerosas intervenções de bispos durante o Concílio, na Constituição Dogmática sobre a Igreja que foi aprovada a 21 de Novembro de 1964 define-se, a Igreja, primeiro e antes de mais nada, como Mistério, a seguir, como Sacramento, e, em terceiro lugar, como Povo de Deus. Podemos afirmar com certeza absoluta que o Concílio pensou e quis, antes de mais nada, uma Igreja na qual se realizassem e se presentificassem essas três grandes ideias: o «mistério», o «sacramento» e «o povo de Deus», a ponto de, só a partir de tal triplo projecto, se poder perceber o que é a Igreja, como se organiza a sua presença e qual o seu modo de actuar neste mundo e na sociedade concreta em que vive.

Ao apresentar a Igreja segundo estes três conceitos fundamentais, a profunda intenção do Concílio terá sido afirmar que a Igreja é, essencialmente e antes de tudo, comunhão[1]. Porém, não o afirmou de ânimo leve, mas explicando essa «comunhão» a partir da sua origem última a fonte do seu próprio ser e que é a Trindade de Deus: o Pai, o Filho e o Espírito Santo, comunhão perfeita. Por isso, no capítulo primeiro da Constituição sobre a Igreja ocupam-se três pontos consecutivos a explicar a origem trinitária da mesma [Lumen Gentium, LG 2, 3 e 4]. Daí esse primeiro capítulo intitular-se «O mistério da Igreja». Neste ponto coincidiam todos os projectos elaborados durante a preparação do Concílio. Todos eles intitulavam o primeiro capítulo da Constituição sobre a Igreja com a palavra «mistério», porque todos pensavam que, ao falar da Igreja, o ponto de partida teria de ser o que a Bíblia e a tradição dos primeiros séculos diz sobre o assunto.

Espantoso é que, em matéria tão evidente, tenha havido alguns que se lamentassem do «excessivo» (?) recurso à Sagrada Escritura. Opinavam que se deviam citar mais as encíclicas papais! Foi neste último sentido que se manifestou o cardeal Ottaviani, perfeito do Santo Ofício, facto, ainda que estranho, perfeitamente compreensível. E, isso, por uma razão muito simples: interpretar a Igreja a partir da ‘comunhão perfeita’, aquela que se dá no mistério da Trindade divina, equivaleria a conceber todos os cristãos unidos por igual numa unidade que tem abundantes argumentos nas Sagradas Escrituras; ao passo que, as encíclicas papais (do século XIX e primeira metade do XX), ao que dão mais destaque, é a toda uma série de argumentos que apoiam os direitos e os poderes da hierarquia. Consequentemente, aqueles que defendiam a unidade e a comunhão por igual (como na Trindade Santíssima) não negavam a necessidade e a importância da hierarquia. O que acontecia é que Ottaviani, e com ele muita gente da Cúria Vaticana, tremiam diante duma eclesiologia que começasse por afirmar, assim de maneira tão taxativa e firme, a igualdade fundamental de todos os crentes. Ao cabo e ao rabo, os «homens da Cúria romana» sempre se sentiram inclinados a defender uma espécie de «ontologia das diferenças», antepondo-o a todo o tipo de argumento a favor da «igualdade fundamental» de todos.

Contudo, o Concílio não começou por falar de diferenças, mas afirmou que «as condições do tempo presente acrescentam ao dever da Igreja uma maior urgência, de modo a que todos os homens (hoje mais intimamente unidos entre si em virtude das novas relações sociais, técnicas e culturais) consigam também a plena unidade em Cristo». [LG 1] Ora, falar de unidade é, antes de mais nada, falar de igualdade. As diferenças, sejam elas quais forem, terão que ser entendidas em função da unidade e, portanto, colocadas ao serviço da igualdade básica de todos. Diferenças que criem divisões, e pior ainda se o que criam são enfrentamentos, são diferenças que não podem ser queridas por Deus. E, portanto, elas não têm lugar na Igreja que o Concílio quis.

A segunda palavra que o Concílio utiliza para explicar a Igreja que quis defender e que quis apresentar diante do mundo actual, é a palavra sacramento. Essa afirmação encontra-se precisamente no começo da Constituição Lumen Gentium: «A Igreja é, em Cristo, como um sacramento ou sinal e instrumento da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» [LG 1]. E mais. No nº 9 da mesma Constituição, dá a seguinte definição de Igreja: «A congregação de todos os crentes que vêem Jesus como autor da salvação e princípio da unidade e da paz, é a Igreja convocada e constituída por Deus para ser sacramento visível dessa união salvadora de todos e de cada um». Nesta definição de Igreja volta a aparecer a palavra «sacramento» e, certamente, se refere ao sacramento da «unidade». Antes de mais nada, isto significa que a Igreja que o Concílio quis é uma Igreja pensada a partir da unidade e em função da unidade de todos os seres humanos, a unidade com o Deus de Jesus que se deu a conhecer no próprio Jesus, e a unidade entre eles mesmos. Ou seja, se a Igreja pretende ser fiel ao que o Concílio disse dela, terá que organizar-se de tal maneira que surja diante das pessoas como a instituição que promove e fomenta tudo aquilo que é indispensável para que haja realmente unidade entre os seres humanos. Ou seja, a Igreja é fiel ao Concílio quando defende, a todo o custo, as pessoas, quando luta pelos direitos das pessoas, quando denuncia os que atropelam os mais miseráveis impossibilitando, assim, a unidade entre todos. Pelo contrário, a Igreja é infiel ao Concílio quando se organiza e funciona de maneira a que a unidade e a igualdade básica de todos se torne impossível no concreto.

Mas existe mais um aspecto nesta Igreja sacramento da unidade. O Concílio não definiu o que entende por ‘Igreja como sacramento’. Deixou esta questão entregue aos teólogos, para que estes a tornem mais precisa. Em todo o caso, é necessário ter em conta que, quando se fala de Igreja como sacramento, não se trata (como acertadamente assinalou O. Semmelroth) de uma ‘definição essencial’ (da essência) da Igreja, mas de uma descrição funcional. Isto é, falar da Igreja como sacramento não é falar da essência da Igreja, mas da sua funcionalidade, da sua actuação e, nesse sentido, da sua eficácia para cumprir a tarefa que tem que cumprir neste mundo. Por outro lado, nos anos do Concílio, um «sacramento» entendia-se, e ainda hoje se entende, como uma realidade visível («signo» ou «símbolo», segundo as diversas teorias) que nos comunica algo invisível, ou seja, algo que transcende as coisas imediatas. Pois bem, daqui seguem-se consequências de uma enorme importância. Com isto quer-se dizer que a Igreja tem que aparecer diante do mundo de forma que o visível que nela existe aquilo que entra pelos olhos adentro e de que toda a gente se apercebe de imediato esteja pensado e organizado de modo que qualquer pessoa veja, toque e palpe, nos «homens da Igreja», nas «cerimónias religiosas», nas «personagens eclesiásticas» (do Papa até ao último dos últimos) algo que leve a superar divisões, atropelos, agressões e as mil formas de violência que se cometem neste mundo. Sobretudo, as agressões e os atropelos que se cometem contra os mais indefesos e os mais débeis.

Por conseguinte, quando a Igreja é vista como uma instituição que está ao lado de uns contra outros, os dirigentes eclesiásticos têm que se interrogar por que o fazem. E os cristãos em geral também têm que se fazer a mesma pergunta. Jesus foi imensamente respeitador e tolerante para com os ignorantes, os pobres e os pecadores, os perdidos e os marginais do seu tempo. Jesus só foi intolerante para com os intolerantes, para com os fanáticos que, baseando-se na religião, se presumiam melhores do que os outros e se tomavam como ‘a norma’ à qual, todo o mundo, teria que se ajustar. Isso é que Jesus nunca tolerou! A partir desse tipo de comportamento é que se tem de compreender o que significa Igreja como sacramento da unidade.

Por último, a terceira expressão que o Concílio destaca, a fim de afirmar o modelo de Igreja que ele quis, é a conhecida fórmula de Povo de Deus [LG 9]. A ela, a Constituição sobre a Igreja dedica todo o segundo capítulo, sinal claro que esta questão foi de grande importância para o Concílio. No Novo Testamento já a comunidade cristã é denominada como «Povo de Deus» [1 Pe 2:9-10]. Esta ideia foi desenvolvida amplamente pelos Padres da Igreja nos primeiros séculos do cristianismo e, de seguida, na Tradição cristã. Mas foi, sobretudo a partir do final dos anos 30 do século XX, que se acentuou a compreensão da Igreja como «povo de Deus». O Concílio Vaticano II, como muito bem assinalou Juan A. Estrada, representou o fim deste processo e, ao mesmo tempo, o ponto de partida para a revalorização da comunidade e do povo como elemento característico da Igreja.

Chegados aqui, importa recordar que, no Esquema preparatório que se elaborou antes do Concílio, se falava primeiro da hierarquia e só depois do «povo de Deus». Mas o Concílio decidiu mudar esta ordem e antepôs o capítulo do «povo de Deus» ao capítulo terceiro, aquele que trata da hierarquia. Esta ordenação manifesta, claramente, as intenções do Concílio: primeiro, fala-se do que é comum a todos os cristãos, pois, sem dúvida, isso é básico e determinante; depois, estudam-se as diferenças e determinam-se o que distingue uns dos outros. Desta maneira acabou-se com aquela teologia antiga, na qual a hierarquia era o principal, o essencial e o decisivo na Igreja, enquanto os fiéis não passavam (na prática) da clientela do clero. O teólogo do século XX mais bem preparado nestas matérias, o dominicano Yves Congar, denominou aquela «eclesiologia» de «hierarcologia». Era assim que, nos manuais anteriores ao Concílio, se estudava a matéria sobre a Igreja e o resultado era que os sacerdotes saíam dos seminários com a firme convicção que eles eram os que, antes de tudo e essencialmente, constituíam a Igreja. Os bispos e os sacerdotes eram os que sabiam das coisas da Fé e os que decidiam o que os fiéis tinham que fazer ou deixar de fazer. O resto dos cristãos não tinha outra tarefa se não aceitar o que lhes diziam e cumprir o que lhes ordenavam.

Portanto, a grande novidade que o Vaticano II trouxe foi afirmar que aquilo que há que dizer dos cristãos (desde o Papa até ao último membro da Igreja) é que todos são iguais diante de Deus e, por isso, todos participam da mesma condição.

O motivo teológico desta igualdade fundamental está, antes de tudo, em que todos os baptizados participam por igual do sacerdócio que é comum a todos os membros do «Povo de Deus», já que Cristo «fez de nós um reino, sacerdotes para Deus e seu Pai» [Ap 1:6; 5:9-10]. Isto quer dizer que o sacerdócio primeiro e essencial que existe na Igreja não é o sacerdócio ritual (que se realiza no culto e nas cerimónias dos templos), mas é o sacerdócio existencial que se realiza na vida de todos os dias e a todas as horas, ao longo da vida de cada pessoa. Isto é prévio e é mais importante que todos os ritos e todas as liturgias que se possam oferecer nas melhores catedrais do mundo. Importa que todos os cristãos tenham isto bem claro!, pois com frequência se dá mais importância a uma cerimónia sagrada, que ao comportamento diário que cada um adopta na sua vida familiar, no trabalho ou nas suas relações com os outros ou com a sociedade em que está.

A igualdade básica e fundamental de todos os cristãos também se explica porque os sacramentos primordiais da Igreja são comuns a todos os seus membros. Esses sacramentos são, antes de mais, os tradicionalmente chamados «sacramentos da iniciação cristã»: o baptismo, a confirmação e a eucaristia [LG 11]. Através do baptismo, os fiéis são incorporados na Igreja por igual e têm o dever, todos por igual, de «confessar diante dos homens a Fé que receberam». Através da confirmação, estão todos «obrigados, de modo reforçado, a difundir e a defender a Fé através de palavras e actos». E, pela eucaristia, todos «oferecem a Deus a Vítima divina» e «todos tomam parte na acção litúrgica, não de modo sincrético, mas cada um segundo a sua condição» [LG 11,1].

A conclusão disto tudo é algo de que muitos cristãos não estão de todo conscientes, mas que é determinante: a Igreja diz respeito a todos os baptizados, é da responsabilidade de todos e é um direito que, basicamente, concerne a todos por igual. Porque o sacramento que configura a Igreja na sua essência não é o sacramento da «ordem» que os bispos e presbíteros recebem, mas o sacramento do «baptismo» que é igual para todos os cristãos. Por outro lado, a eucaristia que é «fonte e cume» de toda a vida cristã [LG 11,1], − centro da vida da Igreja, como tantas vezes se diz − é acto de todos e oferenda de todos, independentemente do posto e da tarefa que cada um exerça na celebração (non promiscue sed alii aliter). O que significa que, obviamente, ainda que na eucaristia um é que preside enquanto os demais participam, isso não quer dizer que o sacerdote é o que «diz» a missa e os fiéis a «oiçam», nem tão pouco significa que o presbítero «celebra» enquanto os outros «assistem» à celebração que o clérigo de turno realiza. Todas estas expressões não são meras deformações linguísticas – expressam uma perversão teológica grave. Perversão que atinge o cume quando alguém pergunta ao padre: «A que horas dá a missa?», como se a eucaristia fosse algo parecido com um concerto ou um recital que o artista «dá» e ao qual o público «assiste».

A gravidade da perversão teológica que se oculta por de trás destas linguagens consiste em que, se os cristãos falam desta maneira e isso não os escandaliza, é porque todos assumimos que a Igreja continua a ser uma questão do clero. Isto é, os protagonistas e os responsáveis na Igreja são (e continuarão a ser) os que sempre o foram: os bispos e os sacerdotes. Os restantes, os leigos, são (e continuarão a ser) aquilo que sempre foram a vida toda: a clientela do clero. Ao povo sempre se lhe disse que «todos somos igreja», quando se trata de colaborar economicamente numa colecta, mas quando estão em causa decisões importantes ou decidir sobre assuntos sérios que digam respeito à Fé ou aos costumes dos cristãos já não somos todos igreja.

E, no entanto, por mais que isto possa surpreender algumas pessoas, o Concílio, precisamente no que diz respeito à Fé, chegou onde muitos nem sequer imaginam. E isto porquê? Porque, ao tratar do assunto da Fé no Povo cristão, a Constituição sobre a Igreja afirma que «a universalidade dos fiéis que têm a unção do Santo (cf. 1 Jo 2:20 e 27) não pode falar de moto próprio» (in credendo falli nequit) [LG 12,1]. Isto, literalmente, significa que o sujeito primeiro e fundamental da «infalibilidade» (é a isso que se refere a expressão falli nequit), «em matéria de Fé e costumes» (1.c), é a totalidade do povo cristão. Que ninguém se surpreenda com isto! Quando o Concílio Vaticano I definiu a infalibilidade do Papa, disse que o Romano Pontífice «tem o poder de infalibilidade que o Divino Redentor concedeu à sua Igreja» (ea infallibilitate pollere qua divinus Redemptor Ecclesiam suam… instructam esse voluit) (DS 3074). Por isso, têm toda a razão os teólogos quando dizem que «a Igreja, no seu conjunto, é o sujeito total da infalibilidade» (L. Scheffczyk) ou ainda quando afirmam que «não há mais do que um só sujeito de infalibilidade: a Igreja» (B. D. Dupuy). E sabemos bem que falar da Igreja é falar da totalidade do Povo de Deus. Portanto, a totalidade do povo cristão possui esse protagonismo em matéria de Fé, ou seja, o Povo de Deus é o sujeito primeiro e fundamental da infalibilidade. De modo que, se o Papa é infalível, é-o porque exprime a infalibilidade que reside em todo o Povo crente.

A partir de tudo o que está para trás, que Igreja podemos dizer que o Concílio quis? Como conclusões, podemos adiantar o seguinte:

1.                            O Concílio quis uma Igreja que seja entendível a partir da unidade misteriosa e radical que existe na Trindade Santíssima de Deus. Donde, o primeiro capítulo da Constituição sobre a Igreja se ter intitulado «O mistério da Igreja».
2.                            O Concílio quis uma Igreja que se entenda, antes de tudo, a partir da igualdade fundamental de todos os cristãos, já que, ainda que as três pessoas da Trindade Divina sejam distintas, se são entre si divinas, então, entre elas existe uma igualdade essencial.
3.                            O Concílio quis uma Igreja cuja igualdade se entenda a partir do Povo, já que a Igreja realiza em si o projecto de «Povo de Deus», o qual, desde o Antigo Testamento atá à plenitude dos tempos, é a expressão de como Deus quer realizar a salvação dos seres humanos. Trata-se, portanto, dum projecto que se realiza a partir da condição igualitária, solidária e fraterna do povo e não a partir da condição de superioridade dos que detêm o poder, dos notáveis da sociedade. Por isso, no Concílio, o capítulo do «Povo de Deus» é anteposto ao capítulo que trata da hierarquia.
4.                            O Concílio quis uma Igreja que surja e se torna visível de tal maneira que as pessoas se sintam atraídas para as coisas de Deus, pelo Evangelho de Jesus. Isto é, aquilo que toda a gente vê e palpa na Igreja deverá estar pensado e organizado de tal forma que os cidadãos normais e correntes percebam nisso algo que os leva a crer em Deus e, por isso, a sentirem-se vinculados a uma realidade última e definitiva que confira sentido pleno à vida. Por isso o Concílio afirmou que a Igreja é sacramento «da íntima união com Deus e da unidade de todo o género humano» [LG 1].
5.                            O Concílio quis uma Igreja na qual todos são, e se sintam, responsáveis na medida em que possam participar, e de facto participam, no que se pensa, naquilo que se diz e se decide. Porque todos os que pertencem a essa Igreja a sentem e a vivem como coisa sua, como algo que lhes concerne vivamente e com a qual se sentem comprometidos. Trata-se, portanto, duma Igreja em que todos, mulheres e homens, têm voz e são escutados. Uma Igreja, por isso, na qual o clero não concentra e muito menos monopoliza o poder de pensar, de dizer e de decidir. O «Povo de Deus» é, com efeito, um povo unido, no qual todos «participam» e todos realizam «obras várias e ofícios proveitosos para a renovação e uma mais ampla edificação da Igreja» [LG 12].


A conclusão que se deduz de tudo o que fica dito é que, quando a Igreja se organiza de maneira a que as coisas que acabo de indicar se tornem, no dia-a-dia, impossíveis de realizar, essa Igreja não é nem pode ser a Igreja que Deus quis. Repito: falo da prática concreta daquilo que se faz ou deixa de fazer na Igreja. Porque, em teoria, todos estamos de acordo com aquilo que o Concílio disse. Porém, o decisivo é tomar consciência de que, na Igreja, as coisas estão organizadas, de maneira que uma coisa é a teoria que se ensina e outra, bem distinta, é o que se faz na prática.

Ao dizer isto, estamos a pôr o dedo na ferida! Isto é, estamos a tocar no ponto-chave que explica porque é que o Concílio não se tornou vida na vida da Igreja e porquê se esqueceram e se perderam as esperanças que o Vaticano II despertou na Igreja. A questão determinante está em descobrir e compreender porquê, estando todos de acordo com o que disse o Concílio, na prática foi impossível realizá-lo. Isto, e precisamente isto, é o que muita gente, concretamente muitos «homens da Igreja», não conseguem compreender.

Por isso, qualquer pessoa que por um lado leia, desapaixonadamente, os Evangelhos e, por outro, repare no que é a vida e a organização da Igreja, logo logo se apercebe da distância que vai entre ambos e e, em determinadas coisas, de uma alarmante contradição.

Hoje sabemos que o centro da mensagem do Evangelho é o projecto do Reino de Deus que Jesus anunciou com as suas palavras e com a sua vida. O Concílio disse, com muita precisão e rigor, que Jesus, anunciando o Reino de Deus, «pôs em marcha» (initium fecit) aquilo que é a Igreja [LG 5,1]. Donde, a missão da Igreja deva ser «anunciar o Reino de Cristo e de Deus, estabelece-lo no meio das pessoas», de maneira que ela «constitua na terra o gérmen e o princípio deste Reino» [LG 5,2].

A Igreja, portanto, não é o Reino de Deus!

A Igreja é o começo, o sinal e a voz que anuncia aos povos que o projecto de Jesus – o Reino de Deus – está presente neste mundo, na nossa sociedade, na nossa cultura, no nosso meio. Mas, como irá, a Igreja, cumprir esta tarefa se, na prática, se organizou de tal modo que é impossível tornar em vida aquilo que é a sua razão de ser e a sua missão essencial? Eis o nó da questão – a questão da organização − que teremos de analisar e matizar cuidadosamente, se é que queremos realmente conhecer a Igreja que o Concílio quis.

José Maria Castillo [2002]


[1] Em Taizé, o Ir. Roger sempre falou da Igreja como «mistério de comunhão».[Nota do tradutor; pb]