A
RECUSA DE TRATAMENTO EM PORTUGAL:
— questões de
filosofia, direito, saúde e educação[1]
1. Considerações prévias
Como já
foi assinalado, Portugal aprovou finalmente a Lei nº 25/2012, publicada em
Diário da República de 16 de Julho, regulando desse modo «as directivas
antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a
nomeação de procurador de cuidados de saúde», ao mesmo tempo que criava o
«Registo Nacional do Testamento Vital» (RENTEV). No entanto, só mediante a
publicação, em Maio de 2104, de Portarias que complementavam a Lei de 2012 – e
que por ela eram exigidas –, foi possível que os portugueses, a partir de 1 de
Julho de 2014, pudessem inscrever a sua Directiva Antecipada no RENTEV, já não
tendo necessidade de recorrer aos Notários para esse efeito.
Obviamente,
esta nova Lei veio colocar em novos moldes a questão da recusa de tratamento no
caso de pessoas incapazes. Por isso, tendo este capítulo sido escrito antes da
entrada em vigor dessa Lei, pôs-se a hipótese de o eliminar ou de o alterar
substancialmente.
Porém, quatro
considerações se impuseram:
1. A
recusa de tratamento não diz respeito apenas a pessoas incapazes;
2. O próprio
direito à recusa de tratamento por pessoas capazes ainda é pouco conhecido por
parte dos cidadãos e pouco reconhecido por parte dos profissionais de saúde;
3. As considerações
efectuadas, deliberadamente abrangentes, ajudam muito a enquadrar o direito à
recusa de tratamento por parte de pessoas capazes e incapazes, e, portanto,
também o próprio «testamento vital» (embora se saiba que este não tem de enumerar
apenas actos de «recusa»);
4. Infelizmente,
o número de Testamentos Vitais efectuados em Portugal começará por ser
diminuto. Por isso, haverá casos que terão de ser resolvidos na sua ausência.
Nessa
perspectiva, embora o capítulo pudesse ser actualizado em certos pormenores,
continuo a pensar que, globalmente, mantém a sua pertinência neste campo. Daí
que acabe por figurar neste meu livro («A morte assistida e outras questões de fim-de-vida»,
Almedina).
A verdade
é que a importância crescente que o princípio de autonomia e autodeterminação
foi adquirindo nas sociedades ocidentais contemporâneas fez com que, no âmbito
dos cuidados de saúde, passasse a ser dada uma grande atenção aos direitos das
pessoas doentes. Daí o relevo que ganhou o princípio do «consentimento
informado», que fosse de facto livre e esclarecido, e não apenas uma assinatura
num formulário de ordem burocrática. No entanto, ao contrário do que se poderia
eventualmente pensar, o direito a consentir num tratamento ou intervenção
médicas tem uma história mais longa do que o seu reverso, que é precisamente o
direito a recusar esse mesmo tratamento ou intervenção médicas. Este último
direito só começou a ser extensamente articulado pelos norte-americanos nos
finais dos anos setenta (cf. Lawrence P. Ulrich, «The Patient
Self-Determination Act. Meeting the Chalanges in Patient Care», Washington, D.
C.:Georgetown University Press, 1999: 12), sabendo nós que este país, na linha
da common law
britânica, considera que tocar o outro sem o seu consentimento pode assemelhar-se
a um ataque. De qualquer modo, esta ênfase nos direitos das pessoas doentes
passou a ser uma preocupação de outros países, plasmando-se até em Convenções e
Declarações Internacionais, ao nível do Conselho da Europa, da Unesco e outras
organizações representativas. No entanto, se nos parece legítima a recusa de
tratamento por parte de uma pessoa com capacidade decisional intacta,
já a recusa de tratamento por parte de uma pessoa que perdeu essa capacidade decisional
nos soa a algo de problemático. No que se segue, é destas duas situações que se
irá falar, dando-se uma atenção particular à situação portuguesa. Por outro
lado, as questões serão abordadas dentro de um enquadramento abrangente, que
passa por questões de ordem ético-filosófica, legais, educacionais e de saúde.
2. Os cuidados de saúde
perante a queda das metanarrativas e da moral «canónica»
Através de
diversas designações, tem-se apontado para o facto de as nossas sociedades
ocidentais contemporâneas terem sofrido um processo de erosão quanto à
confiança nos grandes princípios e valores que as conduziram ao longo de
séculos. A este respeito, ficou famoso o livro de Lyotard de 1979, «La condition postmoderne», em que se
abordava a denominada queda das grandes metanarrativas, grandes sistemas de
sentido que propunham os princípios fundadores de uma vida boa, no sentido de
eticamente correcta, e cuja queda se teria feito sentir mais a partir dos anos
60 e 70 do século XX. O facto é que as sociedades de cultura ocidental, embora
de influência cristã, já não possuem estados confessionais, pelo menos no sentido
de tentarem impor à população certos princípios religiosos. Pelo contrário,
vivemos agora em sociedades seculares em que o pluralismo moral é inevitável:
não há uma única concepção de bem, ou do que deve ser uma vida «decente» ou moralmente correcta, não há
uma única concepção do que em língua inglesa se designa como «a good life». Na terminologia de Tristam
Engelhardt, não há agora lugar para uma visão moral canónica, no sentido de ser
algo indiscutível e de a todos dever abranger. Por isso, tão-pouco há lugar
para a imposição pela força de uma qualquer moral, pois as concepções de bem
divergem (cf., por ex., Herman Tristam Engelhardt, «Physician-Assisted Suicide
and Euthanasia: Another Battle in the Culture Wars», et al, 2001).
É este
novo contexto social, filosófico e político que, obviamente, dá lugar à
contestação de cuidados de saúde de índole paternalista (ou «parentalista»)
que, embora afirmando visar o melhor bem do/a cidadão/ã-doente, se
desinteressavam dele como centro de decisão com vontades e desejos
eventualmente diferentes dos do médico, enfermeiro ou equipa médica e de
enfermagem. Nessas circunstâncias, os cuidadores de saúde geririam a saúde do
cidadão-doente segundo o que lhes parecia defender os seus «melhores
interesses», desinteressando-se de saber se esses denominados «melhores
interesses» obtinham o acordo do próprio doente, ou seja, se essa era uma
defesa que ele próprio assumia como sua, por considerar que estava de acordo
com a sua mundivisão e, portanto, com a sua noção de «bem». De um modo simultaneamente ingénuo e autoritário, partia-se do princípio de que
só a classe médica podia estipular o que seria um «benefício» para o doente
(privilégio desmesurado dado ao denominado «princípio de beneficência»), não
sendo necessário pedir a esse ser «enfermo» e «débil» que o procurava senão a
descrição das maleitas que o afligiam, sendo suposto obter-se a sua obediência
imediata em relação ao tratamento proposto. Tratava-se, como se disse, de procedimentos
que estavam de acordo com a realidade sociológica que se viveu durante séculos
em vários domínios, mas que agora têm cada vez menos base de sustentação. O que
seria de estranhar é que a prática médica permanecesse enquistada em práticas
que já não fazem sentido no resto da sociedade, como se precisará melhor a seguir.
2.1. A crise das
instâncias de mediação
De uma
forma acentuada, na nossa cultura ocidental, os padres (ou membros das
hierarquias das Igrejas), os professores e os médicos foram durante séculos
encarados como instâncias de mediação por excelência, gozando quase do estatuto
de intocabilidade. Os padres «mediavam» entre Deus e os «fiéis», os professores
entre a sociedade, o saber e as crianças/jovens, os médicos entre a vida e a
morte ao nível da saúde corporal[2],
ou entre a saúde «perfeita» e a saúde possível, ou, se se quiser ainda, entre a
«ciência médica» e os doentes concretos. Nos três casos, o poder destas
instâncias era genericamente incontestado, sabendo nós que quem possui fortes convicções
e poder para impô-las, dificilmente renuncia a esse poder quando tem ao seu
alcance a possibilidade de afectar e diminuir a capacidade de agir do outro, mesmo com a
melhor das intenções. Por isso, a caminhada da humanidade para o
respeito pelas convicções «razoáveis» foi extremamente lenta (ver John Rawls, «Uma
teoria da justiça», Lisboa:Presença, 2001).
Com a emergência do
pluralismo dos valores, com a noção crescente de que não há uma moral
«canónica» e de que faz parte de uma cidadania democrática e responsável
proporcionar às pessoas elementos com que possam livre e conscientemente[3]
decidir sobre como escrever as suas próprias vidas, estas instâncias de
mediação tiveram e têm forçosamente de se remodelar face às novas
reivindicações de liberdade e autodeterminação, sob o risco de deixarem de ser
tomadas a sério. O desejável seria mesmo que, deliberadamente, quisessem
contribuir para dar respostas satisfatórias às novas exigências das pessoas que
visam servir. No campo da saúde – assim como noutras áreas –, estas novas
reivindicações por parte dos cidadãos não surgem assim de forma extemporânea,
mas limitam-se a reflectir as novas realidades sociológicas, filosóficas e
políticas que as sociedades ocidentais passaram a vivenciar. É neste contexto
que, como veremos melhor, se situa a necessidade, no âmbito da saúde, de um «consentimento
informado, livre e esclarecido» para uma série de actos médicos. No fundo, não
se trata senão de fazer ecoar no âmbito dos cuidados de saúde preocupações já
existentes noutros âmbitos da sociedade no que diz respeito ao respeito pela
dignidade das pessoas e, consequentemente, pela sua autodeterminação e o seu
livre desenvolvimento da personalidade. Neste aspecto, porém, dir-se-ia haver
ainda muita resistência por parte do pessoal médico em querer fazer face às
necessidades emergentes, como por exemplo acontece quando, ao nível hospitalar,
ou ao nível de qualquer outra entidade pública prestadora de cuidados de saúde,
os doentes são tratados por «tu», sobretudo se originários de meios
economicamente pouco favorecidos, ou quando não lhes são fornecidos elementos necessários
para uma «escolha informada», que alguns consideram ser a vertente mais moderna
do direito ao consentimento informado, como veremos. (…)
Laura
Ferreira dos Santos, «XIII – A recusa de
tratamento em Portugal: questões de filosofia, direito, saúde e educação»,
in "A MORTE ASSISTIDA E OUTRAS QUESTÕES DE FIM-DE-VIDA", Almedina,
Coimbra 2015, pp. 237-260. ISBN 978-972-40-6106-1.
[1]
Este capítulo retoma, em parte, um Parecer de que fui relatora como membro da
Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte
(ARSN; Janeiro de 2009/ Dezembro 2011). Esse Parecer – nº 19 –, pedido por um
organismo público e aprovado por unanimidade em 16 de Outubro de 2009, foi
disponibilizado no site da ARSN, como
era então hábito fazer-se com todos os Pareceres (http://www.arsnorte.min-saude.pt/
acedido em 29/12/ 2013).
[2]
Como se sabe, não só a psiquiatria surgiu tarde, como demorou a obter
resultados que fizessem apostar nela.
[3]
Curiosamente, é este o espírito que subjaz ao Deus-criador, por exemplo, nos relatos
bíblicos de Génesis 1, 28-31 em inteira liberdade
responsável e em 3, 1-24 sem fatalismo
nem tragédia (grega). [NdE]