teologia para leigos

4 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 2/7



A RECUSA DE TRATAMENTO EM PORTUGAL:
— questões de filosofia, direito, saúde e educação[1]

 1. Considerações prévias
Como já foi assinalado, Portugal aprovou finalmente a Lei nº 25/2012, publicada em Diário da República de 16 de Julho, regulando desse modo «as directivas antecipadas de vontade, designadamente sob a forma de testamento vital, e a nomeação de procurador de cuidados de saúde», ao mesmo tempo que criava o «Registo Nacional do Testamento Vital» (RENTEV). No entanto, só mediante a publicação, em Maio de 2104, de Portarias que complementavam a Lei de 2012 – e que por ela eram exigidas –, foi possível que os portugueses, a partir de 1 de Julho de 2014, pudessem inscrever a sua Directiva Antecipada no RENTEV, já não tendo necessidade de recorrer aos Notários para esse efeito.
Obviamente, esta nova Lei veio colocar em novos moldes a questão da recusa de tratamento no caso de pessoas incapazes. Por isso, tendo este capítulo sido escrito antes da entrada em vigor dessa Lei, pôs-se a hipótese de o eliminar ou de o alterar substancialmente.
Porém, quatro considerações se impuseram:
1. A recusa de tratamento não diz respeito apenas a pessoas incapazes;
2. O próprio direito à recusa de tratamento por pessoas capazes ainda é pouco conhecido por parte dos cidadãos e pouco reconhecido por parte dos profissionais de saúde;
3. As considerações efectuadas, deliberadamente abrangentes, ajudam muito a enquadrar o direito à recusa de tratamento por parte de pessoas capazes e incapazes, e, portanto, também o próprio «testamento vital» (embora se saiba que este não tem de enumerar apenas actos de «recusa»);
4. Infelizmente, o número de Testamentos Vitais efectuados em Portugal começará por ser diminuto. Por isso, haverá casos que terão de ser resolvidos na sua ausência.
Nessa perspectiva, embora o capítulo pudesse ser actualizado em certos pormenores, continuo a pensar que, globalmente, mantém a sua pertinência neste campo. Daí que acabe por figurar neste meu livro («A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina).
A verdade é que a importância crescente que o princípio de autonomia e autodeterminação foi adquirindo nas sociedades ocidentais contemporâneas fez com que, no âmbito dos cuidados de saúde, passasse a ser dada uma grande atenção aos direitos das pessoas doentes. Daí o relevo que ganhou o princípio do «consentimento informado», que fosse de facto livre e esclarecido, e não apenas uma assinatura num formulário de ordem burocrática. No entanto, ao contrário do que se poderia eventualmente pensar, o direito a consentir num tratamento ou intervenção médicas tem uma história mais longa do que o seu reverso, que é precisamente o direito a recusar esse mesmo tratamento ou intervenção médicas. Este último direito só começou a ser extensamente articulado pelos norte-americanos nos finais dos anos setenta (cf. Lawrence P. Ulrich, «The Patient Self-Determination Act. Meeting the Chalanges in Patient Care», Washington, D. C.:Georgetown University Press, 1999: 12), sabendo nós que este país, na linha da common law britânica, considera que tocar o outro sem o seu consentimento pode assemelhar-se a um ataque. De qualquer modo, esta ênfase nos direitos das pessoas doentes passou a ser uma preocupação de outros países, plasmando-se até em Convenções e Declarações Internacionais, ao nível do Conselho da Europa, da Unesco e outras organizações representativas. No entanto, se nos parece legítima a recusa de tratamento por parte de uma pessoa com capacidade decisional intacta, já a recusa de tratamento por parte de uma pessoa que perdeu essa capacidade decisional nos soa a algo de problemático. No que se segue, é destas duas situações que se irá falar, dando-se uma atenção particular à situação portuguesa. Por outro lado, as questões serão abordadas dentro de um enquadramento abrangente, que passa por questões de ordem ético-filosófica, legais, educacionais e de saúde.

2. Os cuidados de saúde perante a queda das metanarrativas e da moral «canónica»
Através de diversas designações, tem-se apontado para o facto de as nossas sociedades ocidentais contemporâneas terem sofrido um processo de erosão quanto à confiança nos grandes princípios e valores que as conduziram ao longo de séculos. A este respeito, ficou famoso o livro de Lyotard de 1979, «La condition postmoderne», em que se abordava a denominada queda das grandes metanarrativas, grandes sistemas de sentido que propunham os princípios fundadores de uma vida boa, no sentido de eticamente correcta, e cuja queda se teria feito sentir mais a partir dos anos 60 e 70 do século XX. O facto é que as sociedades de cultura ocidental, embora de influência cristã, já não possuem estados confessionais, pelo menos no sentido de tentarem impor à população certos princípios religiosos. Pelo contrário, vivemos agora em sociedades seculares em que o pluralismo moral é inevitável: não há uma única concepção de bem, ou do que deve ser uma vida «decente» ou moralmente correcta, não há uma única concepção do que em língua inglesa se designa como «a good life». Na terminologia de Tristam Engelhardt, não há agora lugar para uma visão moral canónica, no sentido de ser algo indiscutível e de a todos dever abranger. Por isso, tão-pouco há lugar para a imposição pela força de uma qualquer moral, pois as concepções de bem divergem (cf., por ex., Herman Tristam Engelhardt, «Physician-Assisted Suicide and Euthanasia: Another Battle in the Culture Wars», et al, 2001).
É este novo contexto social, filosófico e político que, obviamente, dá lugar à contestação de cuidados de saúde de índole paternalista (ou «parentalista») que, embora afirmando visar o melhor bem do/a cidadão/ã-doente, se desinteressavam dele como centro de decisão com vontades e desejos eventualmente diferentes dos do médico, enfermeiro ou equipa médica e de enfermagem. Nessas circunstâncias, os cuidadores de saúde geririam a saúde do cidadão-doente segundo o que lhes parecia defender os seus «melhores interesses», desinteressando-se de saber se esses denominados «melhores interesses» obtinham o acordo do próprio doente, ou seja, se essa era uma defesa que ele próprio assumia como sua, por considerar que estava de acordo com a sua mundivisão e, portanto, com a sua noção de «bem». De um modo simultaneamente ingénuo e autoritário, partia-se do princípio de que só a classe médica podia estipular o que seria um «benefício» para o doente (privilégio desmesurado dado ao denominado «princípio de beneficência»), não sendo necessário pedir a esse ser «enfermo» e «débil» que o procurava senão a descrição das maleitas que o afligiam, sendo suposto obter-se a sua obediência imediata em relação ao tratamento proposto. Tratava-se, como se disse, de procedimentos que estavam de acordo com a realidade sociológica que se viveu durante séculos em vários domínios, mas que agora têm cada vez menos base de sustentação. O que seria de estranhar é que a prática médica permanecesse enquistada em práticas que já não fazem sentido no resto da sociedade, como se precisará melhor a seguir.

2.1. A crise das instâncias de mediação
De uma forma acentuada, na nossa cultura ocidental, os padres (ou membros das hierarquias das Igrejas), os professores e os médicos foram durante séculos encarados como instâncias de mediação por excelência, gozando quase do estatuto de intocabilidade. Os padres «mediavam» entre Deus e os «fiéis», os professores entre a sociedade, o saber e as crianças/jovens, os médicos entre a vida e a morte ao nível da saúde corporal[2], ou entre a saúde «perfeita» e a saúde possível, ou, se se quiser ainda, entre a «ciência médica» e os doentes concretos. Nos três casos, o poder destas instâncias era genericamente incontestado, sabendo nós que quem possui fortes convicções e poder para impô-las, dificilmente renuncia a esse poder quando tem ao seu alcance a possibilidade de afectar e diminuir a capacidade de agir do outro, mesmo com a melhor das intenções. Por isso, a caminhada da humanidade para o respeito pelas convicções «razoáveis» foi extremamente lenta (ver John Rawls, «Uma teoria da justiça», Lisboa:Presença, 2001).
Com a emergência do pluralismo dos valores, com a noção crescente de que não há uma moral «canónica» e de que faz parte de uma cidadania democrática e responsável proporcionar às pessoas elementos com que possam livre e conscientemente[3] decidir sobre como escrever as suas próprias vidas, estas instâncias de mediação tiveram e têm forçosamente de se remodelar face às novas reivindicações de liberdade e autodeterminação, sob o risco de deixarem de ser tomadas a sério. O desejável seria mesmo que, deliberadamente, quisessem contribuir para dar respostas satisfatórias às novas exigências das pessoas que visam servir. No campo da saúde – assim como noutras áreas –, estas novas reivindicações por parte dos cidadãos não surgem assim de forma extemporânea, mas limitam-se a reflectir as novas realidades sociológicas, filosóficas e políticas que as sociedades ocidentais passaram a vivenciar. É neste contexto que, como veremos melhor, se situa a necessidade, no âmbito da saúde, de um «consentimento informado, livre e esclarecido» para uma série de actos médicos. No fundo, não se trata senão de fazer ecoar no âmbito dos cuidados de saúde preocupações já existentes noutros âmbitos da sociedade no que diz respeito ao respeito pela dignidade das pessoas e, consequentemente, pela sua autodeterminação e o seu livre desenvolvimento da personalidade. Neste aspecto, porém, dir-se-ia haver ainda muita resistência por parte do pessoal médico em querer fazer face às necessidades emergentes, como por exemplo acontece quando, ao nível hospitalar, ou ao nível de qualquer outra entidade pública prestadora de cuidados de saúde, os doentes são tratados por «tu», sobretudo se originários de meios economicamente pouco favorecidos, ou quando não lhes são fornecidos elementos necessários para uma «escolha informada», que alguns consideram ser a vertente mais moderna do direito ao consentimento informado, como veremos. (…)


Laura Ferreira dos Santos, «XIII – A recusa de tratamento em Portugal: questões de filosofia, direito, saúde e educação», in "A MORTE ASSISTIDA E OUTRAS QUESTÕES DE FIM-DE-VIDA", Almedina, Coimbra 2015, pp. 237-260. ISBN 978-972-40-6106-1.








[1] Este capítulo retoma, em parte, um Parecer de que fui relatora como membro da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde do Norte (ARSN; Janeiro de 2009/ Dezembro 2011). Esse Parecer – nº 19 –, pedido por um organismo público e aprovado por unanimidade em 16 de Outubro de 2009, foi disponibilizado no site da ARSN, como era então hábito fazer-se com todos os Pareceres (http://www.arsnorte.min-saude.pt/ acedido em 29/12/ 2013).
[2] Como se sabe, não só a psiquiatria surgiu tarde, como demorou a obter resultados que fizessem apostar nela.
[3] Curiosamente, é este o espírito que subjaz ao Deus-criador, por exemplo, nos relatos bíblicos de Génesis 1, 28-31 em inteira liberdade responsável e em 3, 1-24 sem fatalismo nem tragédia (grega). [NdE]