teologia para leigos

25 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 7/7




A dimensão política do sofrimento
A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell

Paralelamente, mas cada um a seu modo, Ronald Dworkin, filósofo do Direito e da Política, e Eric J. Cassell, médico internista que, após se ter reformado em 1998, se manteve ligado aos cuidados paliativos, insistem no carácter único do ser humano, melhor, de cada ser humano. E como ambos acentuam de modo radical este carácter único, é também de modo radical que ressalta a desrazoabilidade de, em questões bioéticas e biopolíticas tão intensas quanto a da legitimidade da morte assistida (eutanásia e/ou suicídio medicamente assistido) e a da interpretação a dar ao sofrimento, se optar por respostas uniformes que ignoram a complexidade que cada um de nós é. É também por isso – de modo distinto mas essencial – que eles insistem em que só conhecendo a narrativa pessoal de quem sofre é que é possível compreender verdadeiramente a posição do doente perante a morte assistida ou o modo como encara e vive o seu sofrimento. A meu ver, é esta atenção muito especial que cada um destes autores dá às "narrativas pessoais" que faz com que ambos, embora através de argumentações muito distintas, aceitem a legitimidade da morte assistida.
 Esta é precisamente uma das ideias que tentarei defender e desenvolver ao longo deste texto. Por outro lado, esta mesma atenção especial que cada um dos autores atribui às narrativas pessoais far-me-á ressaltar a dimensão política do sofrimento, em todas as fases da vida e não apenas no seu final, ideia que podemos considerar implícita ou em não-contradição com as obras aqui analisadas, mas que não surge nelas de forma clara, e muito menos de forma desenvolvida. Para chegar a estas conclusões basear-me-ei no famoso e clássico livro de Ronald Dworkin, «Life's Dominion. An Argument about Abortion and Euthanasia» (1993), e no igualmente famoso e clássico livro de Eric Cassell intitulado «The Nature of Suffering and the Goals of Medicine» (1991; 2004, 2.ª edição), assim como num seu artigo de 2004 (cf. Cassell, «When Suffering Patients Seek Death», in QUILI, Timothy & BATTIN, Margaret (eds.), «Physician-Assisted Dying. The Case for Palliative Care & Patient Choice», Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 75-88, 2004). Esta perspectiva obrigar-me-á a revisitar posições de Dworkin já expostas (sobretudo, neste livro: «Morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina, em 1.2.). Ainda assim, acabei por considerar produtiva esta minha opção, não só pela riqueza do pensamento de Dworkin neste âmbito, mas também por essa riqueza ajudar a perceber melhor a perspectiva de E. Cassell, contribuindo, assim, os dois, de forma muito significativa, para a reflexão sobre a temática extremamente importante daquilo que designei como a dimensão política do sofrimento.

1. Ronald Dworkin: uma narrativa sobre as condições necessárias para que cada um possa defender os seus melhores interesses
1.1. O valor intrínseco da vida humana
Dworkin está convencido de que a maior parte da humanidade tende a pensar que a vida humana tem valor por si mesma – um valor intrínseco –, independentemente de outros valores que lhe possam ser atribuídos. Para o entendermos melhor, vejamos como Dworkin distingue entre alguns tipos de valores. Assim, podemos dizer que algo tem "valor intrínseco" por ter um valor incrementalmente valioso, ou seja, quanto mais possuirmos esse objecto ou ele «ser» melhor. Nesta categoria podemos colocar "o conhecimento", que tem valor em si mesmo, mas que liga a ele a necessidade de ser cada vez maior, mesmo em áreas que aparentemente não trazem benefícios directos à humanidade, como a cosmologia. Contudo, a vida humana, embora tenha valor em si mesma, não tem, segundo Dworkin, um valor incremental: não dizemos que, quanto mais vida humana houver no planeta, melhor. O critério quantitativo não se aplica aqui. Por isso, Dworkin irá dizer que a vida humana, em vez de um valor incremental, tem um valor intrínseco que reputa de sagrado ou inviolável: «o seu valor é independente do que as pessoas gostam, desfrutam ou necessitam, ou do que é bom para elas» (Dworkin, 1993: 71). Não se trata, tão-pouco, de algo que é instrumentalmente valioso, no sentido de ter utilidade para conseguir um bem, como é o caso do dinheiro ou dos medicamentos. Tão-pouco estamos a falar de algo que é apenas subjectivamente valioso, como pode ser para mim apanhar muito sol ou ver filmes de determinado realizador.
Evidentemente, a vida humana é valiosa subjectivamente, na medida em que tem um valor pessoal para cada um de nós, assim como instrumentalmente importante, na medida em que beneficia os outros (por exemplo, fomos muito beneficiados pelas existências de Mozart ou Pasteur). Mas o que Dworkin quer ressaltar na vida humana é precisamente «algo que devemos respeitar, honrar e proteger por ser maravilhoso em si mesmo» (ibid.: 75), de modo que a sua destruição deliberada provocaria em nós uma sensação de vergonha (neste contexto, o termo «shame» pode ser abundantemente encontrado no livro de Dworkin). Neste caso, Dworkin diz-nos que costumamos encontrar dois modos de transformar algo em sagrado: através de um processo de associação ou designação – por exemplo, a bandeira que acaba por ser identificada com a vida de um país e representá-lo – e através do modo como algo chegou à existência, sobretudo através da sua história. Neste último caso, Dworkin chama-nos sobretudo a atenção para as obras de arte, as espécies animais e as culturas humanas. O que nestes três casos estaria presente seria um grande investimento criativo (quer fosse de ordem humano ou biológico) que nos sentiríamos obrigados a respeitar de um modo muito especial. Se todo esse investimento criativo fosse perdido, sentiríamos que um grande esforço natural ou biológico tinha sido frustrado, o que, já se disse, nos traria um sentimento de vergonha, por não conseguirmos dar condições de subsistência a tanto esforço desenvolvido.
Repare-se, no entanto, que estes três exemplos não se enquadram na categoria do que é incrementalmente valioso: não gostaríamos propriamente de ter mais pinturas de Botticelli, nem mais espécies animais vivas ou culturas humanas. O que valorizamos é o facto de terem chegado a existir, pelo esforço criativo que representam. Dworkin introduz ainda alguns matizes nestas categorizações: crê que a maior parte de nós admite graus de sagrado e, por outro lado, que somos selectivos na atribuição do carácter de inviolabilidade. Em termos concretos, quer isto dizer que atribuiríamos muito maior gravidade à destruição de uma pintura de Bellini do que à destruição de uma pintura de um autor menor e que, por exemplo no campo da natureza, não é simplesmente o facto de algo ter derivado de um longo processo natural que lhe confere imediata inviolabilidade. Este último caso seria o dos poços de petróleo, dos depósitos de carvão e de algumas espécies animais: «as nossas escolhas são moldadas pelas nossas necessidades e reflectem-nas, e, de modo semelhante, moldam outras opiniões que tenhamos e são moldadas por elas» (ibid.: 80).
Apesar destas ressalvas, vemos que as duas principais tradições do sagrado que Dworkin menciona são as que derivam do respeito por fortes investimentos naturais ou humanos. Na discussão do valor sagrado ou inviolável da vida humana, problemática que se coloca sobretudo no domínio das questões éticas sobre o aborto e a morte assistida, os argumentos expostos por Dworkin alicerçar-se-ão nestas duas tradições e no valor moral relativo dado a cada uma delas.

1.2. Discordâncias filosófico-espirituais acerca do valor intrínseco da vida humana
Ateus, agnósticos e crentes podem partilhar a mesma convicção de que a vida humana é extremamente valiosa, ao ponto de a considerarem sagrada, no sentido de que todo o respeito lhe é devido. Porém, os motivos que levam a essa mesma convicção partilhada podem revestir-se, como se disse já, de matizes diferentes, levando, em casos concretos da vida humana, a apreciações igualmente diferentes. Assim, no caso do aborto, os grupos menos conservadores (ou mais liberais) tenderão a olhar à qualidade das vidas em presença, não simplesmente ao facto natural de haver uma vida humana em gestação. Interessará identificar as situações em que haja menos frustração da vida (termo usado pelo próprio Dworkin, «frustration», cf., por ex., ibid.: 88), o que, nesta perspectiva, não poderá ser simplesmente apreciada ou medida pela perda de vida que possa ocorrer, no sentido de implicar a sua morte. Este último critério não é o mais adequado para Dworkin, por se centrar sobretudo no futuro e suas possibilidades, ignorando que é fundamentalmente em função do que já aconteceu no passado que podemos apreciar melhor o que denomina de desperdício de vidawaste of life», cf, por ex., ibid.: 86). Aliás, o que mais distinguirá a posição conservadora da posição liberal será precisamente o facto de esta última, perante escolhas difíceis e trágicas sobre o melhor modo de manifestar respeito pelo valor intrínseco da vida humana, estar sobretudo preocupada com o investimento humano já feito nessa vida – tanto mais importante quanto mais significativo ou substantivo – do que numa existência natural cujo futuro se desconhece, ou já se sabe ir ser extremamente penoso, para o próprio ou familiares. Por outras palavras, no campo mais liberal acredita-se «que o desperdício de vida, medido em termos de frustração mais do que de mera perda, é muito maior quando a vida de uma jovem mão solteira é arruinada do que quando um feto, nos seus inícios, deixa de viver, numa altura em que o investimento humano na sua vida é ainda muito negligenciável» (ibid.: 99; outro caso em que os liberais tendem a aprovar o aborto é quando se pressupõe que a vida do feto será altamente frustrada por vir a sofrer de grande deformidade). Daí que esta perspectiva liberal insista mais na vida que as pessoas já estão a viver do que na vida incerta que o futuro poderá trazer-lhes. Em linguagem grega, a que outros autores também já recorreram, Dworkin alerta-nos para a distinção entre zôé, «vida física ou biológica» (ibid.: 82) e bios, a vida «constituída pelas acções, decisões, motivos e acontecimentos que compõem o que agora chamamos uma biografia» (ibid.: 83). Na nota 7 do capítulo 3, Dworkin reconhece que a distinção foi já explorada por James Rachels, e, de facto, um dos grandes fios condutores da obra de Rachels — «The End of Life» — baseia-se na ideia de que há uma grande diferença entre «estar vivo e ter uma vida» (Rachels, 1987: 25), ou seja, que os seres humanos não estão simplesmente vivos, no sentido de terem um organismo que funciona biologicamente, mas que têm uma vida biográfica. Nesta perspectiva, se a morte é uma infelicidade, é-o acima de tudo por pôr termo a uma vida biográfica e não a uma vida biológica (cf. ibid.: 50). É também nesta perspectiva que se entende um exemplo dado por Rachels, em que a família de um doente que ficara em coma durante oito anos antes de falecer, comentou deste modo o seu falecimento: «O Miguel morreu com a idade de 34 anos depois de ter vivido 26» (ibid.: 55). Em tempos mais recentes, é de assinalar que é precisamente pela distinção entre zôé e bios que começa a Introdução do livro de Giorgio Agamben, «O poder soberano e a vida nua. Homo Sacer» (1998; original de 1995. A distinção entre vida biológica e vida biográfica foi já abordada neste livro – «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina –, sobretudo no cap. II, ponto 2.2.2).
Aparentemente, é também o interesse pela preservação da vida que foi objecto de vários investimentos humanos – ou seja, a vida biográfica – que torna os liberais mais sensíveis à defesa de legislações sociais que, entre outras coisas, defendam mais direitos para os deficientes. Nesta perspectiva, não há razões para fazer equivaler a morte prematura evitável à frustração mais grave que pode ocorrer à vida humana, tanto no caso do aborto como no da morte assistida. Não quer isto dizer, no entanto, que, para Dworkin, o aborto – ou qualquer terminação deliberada da vida – deva ser encarado com ligeireza, precisamente pelo imenso respeito que toda a vida humana nos merece (porque este texto não visa directamente esta problemática, não vou aqui explanar a argumentação de Dworkin, presente em vários dos capítulos do seu livro, segundo a qual o aborto é, a seu ver, condenado por causa do valor intrínseco dado à vida humana, e não pelos supostos interesses e direitos de que o embrião e o feto disporiam como pessoa).
Não obstante estas considerações, Dworkin não crê que a maior parte das pessoas possa ser situada claramente num extremo ou noutro destes posicionamentos – importância exclusiva dada à vida biológica ou dada à vida biográfica –, mas que é a sua maior aproximação a um dos lados que determina o seu carácter mais ou menos conservador ou liberal, mais ou menos religioso ou secular. Por outro lado, Dworkin pensa que estes posicionamentos têm na base uma apreciação do valor da vida humana que é de ordem filosófico-espiritual, devendo o Estado abster-se de pretender impor aos seus cidadãos convicções desta ordem. Mais ainda, pensa que a consideração de que o valor da vida humana transcende ou está para além do valor que a própria pessoa lhe possa dar, possuindo assim um valor cósmico impessoal e objectivo, é algo que caracteristicamente define uma crença religiosa, mesmo que sustentada por pessoas que se consideram alheias ao religioso. Logo, é em nome da liberdade religiosa que os estados democráticos deverão impedir-se de tentar obrigar os cidadãos a optar entre interpretações distintas do valor sagrado da vida humana, o que não quer dizer que não devam encontrar formas de incentivar o debate e contribuir para a tomada de posições esclarecidas e não para o conformismo. Nas palavras de Dworkin,

"Um estado não pode coarctar a liberdade, em ordem a proteger um valor intrínseco, quando o efeito sobre um grupo de cidadãos seria especialmente grave, quando a comunidade está seriamente dividida sobre o respeito que esse valor requer, e quando as opiniões sobre a natureza desse valor reflectem convicções essencialmente religiosas que são fundamentais para a personalidade moral" (Dworkin, 1993: 157).

No entanto, foi assim que procedeu o Supremo Tribunal dos Estados Unidos no famoso caso de Nancy Cruzan, quando a maioria afirmou que era legítimo continuar a manter a jovem mulher viva de modo a reafirmar o valor da defesa da vida humana, apesar de considerar que essa decisão ia decerto contra a defesa dos melhores interesses de Nancy — Nancy estava em estado vegetativo persistente há vários anos, sem qualquer expectativa de recuperação, e eram os próprios pais a pedir que a alimentação e a hidratação artificiais cessassem (cf. ibid.: 12 e 194-5). Como se diz mais adiante neste livro, posteriormente, com recurso a novos dados, foi obtida autorização judicial para «desligar as máquinas» e deixar Nancy morrer – cf. Colby, 2002). Cf. o «caso Nancy Cruzan» [Missuri] em «Eluana – a liberdade e a vida», no seguinte link, sobretudo na p. 13s:
(…)

Laura Ferreira dos Santos, «A dimensão política do sofrimento - A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra. ISBN 978-972-40-6106-1.