teologia para leigos

17 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 4/7



«Dêem-me liberdade
e, se eu quiser, dêem-me a morte»

Pensar o suicídio medicamente assistido a partir de duas posições antagónicas

1. Introdução: a necessidade de educar para o debate
Geralmente, são tão diversos e contraditórios os argumentos de quem se manifesta a favor ou contra a legalização ou despenalização da eutanásia ou/e do suicídio medicamente assistido (em inglês, "physician-assisted suicide", PAS), que uma conhecida expressão de Thomas Kuhn nos ocorre para caracterizar este «estado de coisas»: incomensurabilidade de paradigmas (cf. Th. Kuhn, «La structure des révolutions scientifiques», Flammarion, 1983: 172). Mesmo quando há acordos pontuais – necessidade de melhorar os mecanismos de alívio da dor, por exemplo –, logo surgem divisões quanto aos modos eticamente legítimos de a eliminar ou atenuar e quanto ao que entender por «dor» ou «sofrimento».
As posições a tomar e a defender, no seio deste debate, em torno do morrer e da morte, exige formação e, sobretudo, educação. Como tenho repetido por diversas vezes ao longo deste livro, entendo o processo educativo na linha de Paulo Freire: criar condições para que as pessoas possam ler e escrever as suas próprias vidas. É um processo que ocorre dentro e fora das instituições educativas, abrangendo todas as idades e tentando unir de uma forma criativa as componentes mais teóricas e mais práticas da vida humana. Paulo Freire acentuou sobretudo as possibilidades críticas e socialmente transformadoras deste processo, visando em primeira instância uma maior consciencialização das relações de domínio existentes, denunciando privilégios injustos e tentando dar uma voz consciencializada a quem se encontra sujeito à dominação. Inspirado no pensamento existencial cristão e no dialogismo buberiano[1], Paulo Freire reforçou a base teórica da defesa dos oprimidos indo buscar também elementos a Hegel (dialéctica do escravo-senhor e problemática da consciência), a Marx (crítica do capitalismo, para a qual se socorre também de E. Mounier), a Erich Fromm (oposição biofilia-necrofilia) e à fenomenologia (a consciência como intencionalidade). Experimentando de perto as injustiças sociais da realidade latino-americana, Paulo Feire não dirigiu a sua atenção para os aspectos ligados ao morrer e à morte. Afinal, para quê insistir na defesa de uma «boa morte» se se vive num continente em que a maior parte da população nem sequer tem direito a uma vida «razoável», pelo menos em termos económicos, culturais e de cuidados de saúde?[2] Provavelmente por isso, o movimento para a escolha quanto ao morrer será tipicamente um movimento de países económica, cultural e medicamente desenvolvidos, como, entre outros, a Holanda, a Suíça, a Bélgica, o Luxemburgo, os Estados Unidos, o Canadá, o Reino Unido ou a França. Não quer isto dizer, no entanto, que o modo como P. Freire encarava a educação não possa ser legitimamente apropriado para mostrar a necessidade de, individual e colectivamente, reflectirmos sobre o morrer e a morte. Afinal, o morrer e a morte ocorrem ainda dentro da vida, constituindo o seu último capítulo, e não será decerto preciso invocar aprofundadamente o pensamento de Ronald Dworkin para nos apercebermos da importância do último acto de uma peça teatral ou da última estrofe de um poema, pois todas/os nós sabemos como esse último acto ou última estrofe pode alterar substancialmente ou arruinar toda a peça ou todo o poema (cf. Dworkin, «Life’s Dominion», 1993: 199). Por isso, creio ser legítimo dizer que o processo educativo deve tentar proporcionar-nos condições para que possamos ler e escrever as nossas próprias vidas, mesmo quando se trata do seu capítulo derradeiro.
Neste sentido, vou recorrer a dois livros organizados por nomes importantes do mundo norte-americano ligado à reflexão sobre o suicídio medicamente assistido e que, nos últimos anos, consubstanciaram os principais argumentos que se poderiam invocar na sua oposição ou defesa. Estou a referir-me a «The Case Against Assisted Suicide. For The Right to End-of-Life Care» (Foley & Hendin, 2002, adiante designado apenas por «The case against») e «Physician-Assisted Dying. The Case for Palliative Care & Patient Choice» (Quill & Battin, 2004, adiante designado apenas por «The case for»). Ao tomar estes dois livros como ponto de referência, faço-o na convicção não só da sua importância, mas também na convicção de que, fora da Europa, os Estados Unidos, provavelmente mais do que qualquer outro país (faltaria fazer um levantamento da literatura sobre este tema existente no Canadá, sobretudo na província do Quebeque), têm debatido arduamente as questões de fim-de-vida, mais concretamente as que dizem respeito às escolhas que o processo de morrer deve ainda permitir a quem se encontra num estado terminal. De um lado e do outro da barricada, erguem-se vozes a salientar a necessidade de não só educar os profissionais de saúde para este debate, mas também o público em geral (ver, por ex., «The case against»: 306-7,326-7, e «The case for»: 152).
No entanto, atendendo precisamente a que o debate de ideias se fará aqui a partir da realidade americana, julgo ser necessário, antes de avançar na temática, introduzir três informações.
Em primeiro lugar, relembrar que, nos Estados Unidos, até 1992, tentou promover-se a legalização da eutanásia, tendo a primeira proposta sido elaborada e derrotada no Ohio, em 1906 (cf. Ezekiel J. Emanuel[3], «The History of Euthanasia Debates in the United States and Britain», in Shannon, Thomas A. (ed.), «Death and Dying. A Reader», 1994: 793; e Ian R. Dowbiggin, «A Merciful End. The Euthanasia Movement in Modern America», New York:Oxford University Press, 2003: 18 e 45). Porém, a partir de 1992, passou a reivindicar-se apenas o "suicídio medicamente assistido", por se ter verificado que não havia adesão pública à reivindicação anterior, pelos temores de abuso que suscitava (cf Quill & Battin, 2004: 254). Como se sabe, no suicídio medicamente assistido não se trata de aplicar uma injecção letal a pedido da/o doente, procedimento típico da eutanásia, mas é o/a próprio/a doente que ingere uma medicação que lhe dará a morte, com ou sem a presença do médico (para obter pormenores muito concretos sobre esta prática no estado do Oregon, cf. Barbara C. Lee, «Compassion in Dying: Stories of Dignity and Choice», Troutdale (Oregon): NewSage Press, 2003). Cumpre no entanto acrescentar que, na Suíça, numa prática que se pode considerar atípica ao nível europeu, a assistência final no suicídio está fundamentalmente entregue a não-médicos/as, prevendo o código penal que tal ajuda não é considerada crime desde que nela não se encontrem motivações egoístas (cf Hurst & Mauron, 2003; tanto no caso do Oregon como no da Suíça, cf mais pormenores em Laura F. dos Santos, «Ajudas-me a morrer?», Lisboa:Sextante, 2009).
Em segundo lugar, chamo a atenção para que, na «Introdução» a «The case for», Timothy Quill e Margaret Battin esclarecem que, ao longo do livro — e para além da expressão utilizada no seu próprio título, "physician-assisted dying" —, encontraremos vários termos para com eles significar a ajuda que um médico pode proporcionar a um/a doente quando esteja, em estado terminal (como já se disse, a definição deste estado implica, segundo o entendimento americano, que a pessoa terá menos de seis meses de vida), deseja antecipar a sua morte. Esses termos a que Quill e Battin se referem são: physician-assisted suicide, physician aid in dying e physician-assisted death. Como também já foi referido, atendendo às conotações negativas do termo suicídio, tido muitas vezes por um acto «irracional» ou fruto da depressão, há quem se preocupe em evitá-lo, pois quando se apresenta uma situação de suicídio assistido não há uma escolha entre a vida e a morte, típica dos suicídios habituais, mas uma escolha entre duas formas de morrer, uma mais rápida, outra mais lenta. De qualquer modo, atendendo a que a expressão «suicídio medicamente assistido» é, a meu ver, a que oferece menos dúvidas sobre a prática de que estamos a falar — sobretudo num país como Portugal, em que estas questões são bastante subtraídas ao debate público —, foi por ela que optei no título deste texto e ao longo dele.
Em terceiro lugar, deve ser dito que, nos Estados Unidos, existe o entendimento já muito enraizado de que ser-se tocado sem consentimento prévio constitui um ataque (a battery). Aplicando esse princípio aos procedimentos médicos a que uma pessoa doente pode ser submetida, considerou-se que o «consentimento informado», impedindo precisamente esse «ataque» ou «invasão» do corpo, possibilitava também que a/o doente, em estado terminal ou não, recusasse um tratamento médico — como cirurgia, transfusões de sangue, diálise, antibióticos, reanimação cardiorrespiratória, alimentação e hidratação artificiais —, mesmo que daí derivasse a morte. Com base neste mesmo princípio, admite-se também muitas vezes que mesmo tratamentos ou procedimentos médicos de ordem vital podem ser interrompidos ou não iniciados a pedido da pessoa doente adulta, capaz ("competent") e informada.[4]
Voltando agora aos dois livros que vão aqui ser tomados como ponto de referência para o debate sobre o suicídio medicamente assistido — «The Case Against Assisted Suicide» e «Physician-Assisted Dying» —, devo desde já avisar que a opção que me guia na sua abordagem assume certos constrangimentos: para não tornar o capítulo demasiado extenso, optou-se por não trazer ao de cima todos os argumentos invocados de um lado e do outro da polémica.
Assim, em primeiro lugar assume-se que nada será mencionado sobre as questões que dizem respeito à legalização do suicídio medicamente assistido no estado do Oregon, à despenalização da eutanásia e suicídio medicamente assistido na Holanda ou ao breve período (nove meses, entre 1996 e 1997) em que o Northern Territory da Austrália despenalizou também estas duas práticas (este país, porém, não é objecto de comentário em «The case for»). Deve ser dito, no entanto, que, a este propósito, em «The case for», todos ou quase todos os argumentos inflamados apresentados em «The case against» são discutidos, sendo-nos dada uma perspectiva completamente diferente (e positiva) das questões abordadas no outro livro. A meu ver, é aliás notável o modo aberto e claro como os autores holandeses que participam em «The case for» falam das dificuldades que o seu país tem enfrentado no sentido de que os médicos declarem oficialmente todos os casos de eutanásia, por receios vários. Assume-se a dificuldade, mas tenta-se dar uma explicação razoável para ela, contrariando os argumentos de «slippery slope» ("rampa escorregadia") habitualmente invocados pelos adversários[5].
Em segundo lugar, também não vai ser abordada toda a problemática ética que se levanta hoje em torno de formas permitidas e não permitidas de antecipar a morte, espelhada nesta frase de Dan Brock: «Em termos éticos, nem a doutrina do duplo efeito, nem a distinção activo-passivo, justificam que se autorize deixar voluntariamente de comer e beber, assim como a sedação terminal (ou abandonar suportes vitais), se ao mesmo tempo pretenderem proibir o suicídio medicamente assistido» («The case for»: 144).
Em terceiro lugar, assumo que só de raspão irei falar de um argumento muito utilizado pelos defensores do suicídio medicamente assistido, que é o do não-abandono da/o doente por parte da/o médica/o. Implícito na temática do sofrimento, não será aqui objecto da abordagem que mereceria. Tão-pouco se abordará o tema do modo como as relações médico/a–doente poderiam ser alteradas com a introdução do suicídio medicamente assistido (temas desenvolvidos mais adiante neste livro, «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», por ex. nos caps. X «Fim-de-vida e não-abandono. Um tríptico a partir de Timothy E. Quill» e cap. XII, «A dimensão política do sofrimento. A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell»). No entanto, algumas reflexões sobre outras problemáticas poderão deixar algumas pistas sobre esses assuntos.
Em resumo, tratarei apenas as questões da autonomia, das finalidades da medicina e do sofrimento. (…)


Laura Ferreira dos Santos, «Dêem-me liberdade e, se eu quiser, dêem-me a morte. Pensar o suicídio medicamente assistido a partir de duas posições antagónicas», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, pp. 155-181. ISBN 978-972-40-6106-1.






[2] A Colômbia é o único país latino-americano em que a eutanásia se encontra despenalizada, em virtude de uma decisão do Tribunal Constitucional em 1997 (votação de 6 contra 3). No entanto, como o Congresso ainda não estabeleceu as salvaguardas que ficara encarregado de estabelecer, elas ainda não existem. O juiz Carlos Gaviria, autor da decisão maioritária do Tribunal, ao tornar-se senador em 2005, manifestou a intenção de propor uma lei ao Congresso que introduza salvaguardas semelhantes às existentes na Holanda e na Bélgica. No momento presente, o assunto parece ser resolvido apenas entre a/o médica/o e a/o doente (cf. Scherer & Simon, 1999: 93-95; Housego, 2005; e Santos, 2009, 158-164).
[3]  Ezekiel J. Emanuel, «The History of Euthanasia Debates in the United States and Britain»: 
[4] Para esclarecer melhor este ponto, obtive informações através de Roland L. Halpern, «Director of Community Relations» de uma das mais importantes organizações americanas a favor do que designamos como suicídio assistido, «Compassion & Choices».
[5] Mais uma vez, digamos que esta imagem da «encosta resvaladiça» ou «vertente escorregadia» (slippery slope) é utilizada para significar que as consequências da despenalização da eutanásia seriam imparáveis, passando-se de um modo «escorregadio» da eutanásia voluntária para uma forma de terminação da vida não precedida dos procedimentos necessários para impedir abusos, ou seja, para uma forma de terminar com a vida que não respeitaria a vontade das pessoas.