teologia para leigos

16 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 3/7



THE PHILOSOPHER’S BRIEF
— seis filósofos morais defendem o suicídio assistido

Nos Estados Unidos, há o costume de, perante casos judiciais envolvendo assuntos polémicos, serem enviadas cartas ao Tribunal em nome de pessoas ou organizações que, não estando envolvidas no litígio, pretendem fazer ouvir a sua voz, aduzindo argumentos que reputam de significativos em favor da posição que defendem. Um/a amicus curiæ é então «um/a amigo/a do Tribunal» muito interessado/a em favorecer uma determinada decisão e que crê estar na posse de importantes informações legais ou de argumentações extremamente válidas que ainda não são suficientemente conhecidas ou não foram ainda sequer esboçadas. No entanto, há regras específicas para que essas cartas sejam aceites, apenas podendo ser apresentadas ou com o consentimento de todas as partes, ou com a autorização ou pedido por parte do Tribunal. Destas exigências apenas estarão escusadas as cartas que provierem de elementos ligados ao próprio Estado ou estados, por lhes ser dado um carácter oficial (cf. por ex., Amicus curiæ, s/d). Quando as cartas são boas, as e os juízes têm interesse em conhecê-las, podendo lê-las todas ou usando outra estratégia para tomarem conhecimento do seu conteúdo. Podem assim solicitar a certos funcionários que escolham as mais importantes, lendo então todo o seu conteúdo mas apenas dessas. Podem também ler só as partes sublinhadas pelos funcionários ou solicitar-lhes a entrega de resumos. A atestar a importância destas cartas — geralmente provenientes de áreas "liberais» —, afirma-se que, durante os anos noventa do século XX, elas foram citadas ou referidas em 18% das opiniões dos Tribunais ou dos juízes individualmente considerados (para muitos outros pormenores, cf. por ex., Shapiro, s/d[1]). Como é óbvio, os casos de aborto e de suicídio assistido deram origem à elaboração de muitas destas cartas. De entre as que ficaram mais conhecidas no que diz respeito a esta última problemática vou salientar, como disse, a que ficou conhecida por «The Philosopher's Brief». Foi elaborada, como também já afirmei, por seis filósofos morais americanos, sendo Ronald Dworkin o autor da «Introdução» ao texto. Foi publicada no New York Review of Books em 27 de Março desse ano (cf. Dworkin, et aI., 1997)[2]. Antes de avançarmos, porém, convém saber, embora muito rapidamente, as circunstâncias em que esta carta surgiu.
Em Janeiro de 1994 e em Julho desse mesmo ano, respectivamente em Washington e Nova Iorque, surgiam duas acções judiciais que pretendiam pôr em causa a proibição do suicídio assistido existente nos dois estados, acções subscritas por médicos e doentes seus em estado terminal. A acção foi-se desenrolando ao longo dos anos, passando por diversas instâncias judiciais até chegar ao Supremo Tribunal dos Estados Unidos. É precisamente antes de o Supremo se pronunciar (negativamente) sobre estas solicitações que a Philosopher's Brief surge, salientando, a sua primeira nota, o carácter aparentemente inusitado de este grupo pretender intervir junto do Supremo valendo-se apenas da característica de serem filósofos (morais), não se enquadrando numa classificação mais vasta. No corpo da carta dir-se-á que, não obstante as diferenças que os separam no campo da filosofia moral e política, estão unidos no respeito por princípios fundamentais de liberdade e justiça, assim como pelo respeito do que consideram ser a tradição constitucional americana. É isso que os leva a afirmar que as decisões defendidas pelos tribunais de Recurso, que tinham deliberado a favor dos queixosos, deveriam ser mantidas no Supremo. Fundamentalmente, a «Introdução» visa dois objectivos: em primeiro lugar, descrever a discussão oral mantida entre os defensores de cada uma das partes envolvidas e os juízes do Supremo em Janeiro desse ano (1997), descrevendo-se também as tendências que os comentários dos juízes indiciavam; em segundo lugar, para o caso de o Tribunal vir a pronunciar-se contra os pedidos de suicídio assistido, como parecia provável, fazer algumas sugestões que minimizassem os danos que, na perspectiva deste subscritores, daí resultariam para a lei constitucional americana.
Quanto à discussão mantida em Janeiro desse ano, Ronald Dworkin considera que os juízes utilizaram recorrentemente duas versões do argumento da vertente escorregadiaslippery slope argument» - "rampa deslizante"): uma de ordem teórica e outra de ordem prática. Pela primeira, recusava-se a ideia de que pudesse ser traçada uma linha clara entre os casos em que o suicídio assistido, segundo os queixosos, seria apropriado, e os casos em que não o seria. Afinal, porque é que se havia de restringir o suicídio assistido aos doentes terminais em grande sofrimento? Porque não abranger outros casos em que as pessoas estavam em sofrimento físico ou emocional? E porque não autorizar a eutanásia para quem não pudesse já tomar os medicamentos letais? Mas, estendendo assim tanto a possibilidade de se recorrer ao suicídio assistido, como negá-lo a uma pessoa que tivesse vontade de morrer, como por exemplo um/a jovem em situação de amor não retribuído?
A isto, The Philosopher's Brief responde de dois modos. Por um lado, definindo «um princípio moral e constitucional muito geral: que toda a pessoa lúcida tem o direito de tomar decisões pessoais muito importantes que invocam convicções religiosas ou filosóficas fundamentais acerca do valor que a vida tem para si própria» (p. 2). Em segundo lugar, reconhecendo que, porque pode haver situações perigosas em que alguém deseja morrer por motivos reversíveis ou impulsivos, agradecendo mesmo mais tarde o facto de a terem impedido de praticar o acto que se propunha pois não reflectia as suas convicções profundas, o Estado pode sobrepor-se a esse direito. Quanto à versão prática do argumento da "vertente escorregadia", ela expressa o receio de que doentes em estado muito vulnerável, como é o caso de doentes pobres, pudessem ser pressionados no sentido de solicitarem o suicídio assistido. No entanto, a carta dos filósofos contraria este receio. Na medida em que os princípios orientadores de uma lei regulamentando o suicídio assistido deveria prever uma boa oferta de cuidados paliativos antes de ser atendido o pedido de um suicídio medicamente assistido, os/as doentes pobres estariam até mais protegidos do que agora quanto ao sofrimento, num país em que se supõe que 25% dos doentes terminais morrem com dores. Nesse caso, a qualidade dos cuidados paliativos teria de subir, ao contrário de agora, em que a «sedação terminal» representava a solução barata para os casos mais difíceis. Por outro lado, com essa regulamentação, passariam a beneficiar de uma possibilidade – o suicídio medicamente assistido – que, até aqui, tem sido sobretudo um privilégio de famílias economicamente bem situadas, com bons conhecimentos dentro do pessoal médico. Baseados em estudos vários sobre o modo como médicas e médicos responderam a pedidos de suicídio assistido em várias zonas dos Estados Unidos, os filósofos chegam mesmo a afirmar que as percentagens encontradas se aproximavam das que se registavam na Holanda.
Partindo-se assim do princípio de que nenhuma das mencionadas versões da «vertente escorregadia» tem grande consistência, considera-se que o Supremo tem pela frente duas possíveis opções. A primeira delas declararia que os/as doentes terminais em grande sofrimento não têm o direito de controlar o tempo e o modo das suas mortes, o que, na opinião dos subscritores desta carta e do próprio «Solicitor General», não parecia estar de acordo com o sistema constitucional americano, que permite aos cidadãos pensarem o que quiserem sobre o sentido ou valor da vida humana. Mais ainda, essa posição colidiria com práticas já adoptadas nos Estados Unidos quanto à «medicina terminal», ou seja, aquela que se baseava no direito de os/as doentes poderem pedir para serem «desligados» de mecanismos de suporte vital (e assim morrerem). Não obstante os juízes do Supremo já se terem manifestado, na discussão oral, pela distinção entre actos e omissões para justificarem a prática «terminal», que deixaria a natureza tomar o seu curso, e para justificarem igualmente a oposição ao suicídio assistido, que implicaria um acto que deliberadamente visaria a morte, afirma-se nesta carta que o apelo a essa distinção é falacioso. A distinção fundamental a fazer não seria entre actos e omissões, mas «entre actos ou omissões que visam ou não causar a morte» (p. 3). Assim, pensam que se um/a doente pretende ser desconectado/a de um mecanismo de suporte vital para poder morrer, estará a cometer um suicídio. E as/os médicas/os que desconectam os suportes vitais visarão por vezes a própria morte, algo evidente na sedação terminal acompanhada da supressão de alimentação e hidratação artificiais, pois essa supressão não é feita para aliviar o sofrimento, mas para antecipar a morte. Pelo contrário, um/a médico/a que prescreve drogas letais pode não pretender que a/o doente os tome, mas dar-lhe o conforto psicológico de uma «saída» não excessivamente penosa. Por tudo isto, a distinção efectuada entre actos e omissões seria demasiado frágil, não só para sustentar a prática terminal da medicina que já se encontra legalizada, mas também para proibir a ajuda no suicídio.
A segunda opção pela qual o Supremo poderia enveredar seria a de pronunciar-se a favor de um direito genérico ao suicídio assistido, mas negá-lo a seguir por considerar que os riscos aí implicados eram excessivos. Este é um caminho que a carta julga também frágil e perigoso — então, um Estado vai assumir a negação de um direito apenas porque não acredita na sua competência para o regulamentar? Além de que os supostos perigos práticos da «vertente escorregadia» não teriam sido devidamente analisados.
Perante estas duas más estratégias possíveis abertas diante do Supremo, a carta propõe uma terceira, que lhe parece mais razoável: o adiamento da resolução, com base na pouca experiência recolhida no campo do suicídio assistido.
(…)

Laura Ferreira dos Santos, «The philosopher’s Brief: seis filósofos morais defendem o suicídio assistido», in «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina 2015, pp. 143-154. ISBN 978-972-40-6106-1.






[2] As páginas citadas seguirão a numeração obtida de acordo com a edição efectuada a partir da Internet.