teologia para leigos

18 de julho de 2018

A MORTE ASSISTIDA 5/7



Fim-de-vida e não-abandono.
Um tríptico a partir de Timothy E. Quill[1]

«Penso que este [T. Quill] é o tipo de médico que gostaria de ter junto de mim quando estiver a morrer: sério, cuidadoso e solícito – capaz de saber ajuizar bem de que tipo de «ajuda» eu possa estar a precisar e pretender quando pedir «ajuda médica no morrer» (Constance E. Putnam, «Hospice or Hemlock? Searching for Heroic Compassion», Foreword by Thimothy E. Quill, Westport (Connecticut)/London:Praeger, 2002: 138).


I. Introdução: a razão de ser de um tríptico em torno do não-abandono
Numa perspectiva de não-abandono, escreveu-se neste livro que as pessoas a ponto de morrer foram já consideradas os nossos "boat people»: querem ser acolhidos dentro das nossas fronteiras, mas são constantemente repelidos para os seus países de origem, de vulnerabilidade extrema. Contra esta situação tem-se debatido Timothy E. Quill, respeitado médico norte-americano, Professor de Medicina, Psiquiatria e Medical Humanities na Universidade de Rochester, School of Medicine and Dentistry (Nova Iorque), tendo, durante oito anos, dirigido uma unidade de cuidados paliativos.[2]
Nos Estados Unidos, o seu nome tornou-se conhecido fundamentalmente por duas razões. Por um lado, por ter publicado, em 1991, no New England Journal of Medicine, um artigo (NEJM, 1991;324:691-694) em que assumia a sua cumplicidade no suicídio de uma doente sua de longa data, num caso de leucemia muito grave.[3] Por outro, por ter sido um dos médicos que, entre 1994 e 1997, esteve envolvido numa acção que chegou ao Supremo Tribunal dos EUA e que visava alterar a lei do estado de Nova Iorque sobre a proibição do suicídio medicamente assistido. T. E. Quill tem dedicado uma grande atenção às questões de fim-de-vida, preocupando-se com o cuidado e os direitos das pessoas que estão para morrer. Grande adepto dos cuidados paliativos, pensa que nem sempre eles conseguem fornecer a melhor resposta, pretendendo a despenalização do que, à falta de uma expressão mais adequada, se chama habitualmente «suicídio medicamente assistido», como instância de último recurso para os casos de processos de morte que implicam um sofrimento impossível de controlar, quer seja ou não acompanhado de dor física.
Fundamentalmente, Quill pretende que entre quem cuida e quem é cuidado se possa estabelecer uma relação estreita pautada pelo compromisso de não-abandono por parte de quem cuida. A partir da leitura de três dos seus livros (e de um que editou em 2004 conjuntamente com Margaret Battin), o capítulo que aqui apresento pretende elaborar um tríptico em torno das questões ligadas ao morrer, à morte e ao não-abandono de quem se encontra gravemente doente ou na fase final da sua vida. Embora se trate de um tríptico escrito, o que lhe serve de inspiração e modelo são na verdade os trípticos medievais e renascentistas da pintura ocidental e, dentro deles, os que também têm os painéis laterais posteriores pintados. De facto, antes de escrever este texto desenhei vagamente em duas folhas o tríptico de que queria falar, como se alguém pudesse depois vir a tomá-lo em conta e concretizá-lo plasticamente. Nunca antes como neste texto senti a necessidade de utilizar este recurso prévio, nem nunca pensar poder vir a utilizá-lo. Penso que, fundamentalmente, dois motivos me conduziram nesta direcção.
Em primeiro lugar, o facto de já ter investigado muita literatura sobre eutanásia e suicídio assistido que, frequentemente, se faz acompanhar de vários casos concretos em que, consoante as/os autores, se vê ou não a pertinência de recorrer a essas hipóteses. Muitas dessas histórias permaneceram no meu cérebro, como se se tratasse de pequenos excertos de filme, com os dramas vividos pelas suas personagens principais. O próprio Timothy Quill é considerado um óptimo «story-teller», estando um dos seus livros – «A Midwife through the Dying Process», (1996) – fundamentalmente dedicado à descrição do que vai acontecendo a nove «almas» em processo de morte. Nove histórias dramáticas, nove documentários que se poderiam realizar em torno de cada uma delas.
Por outro lado, o cinema do início deste século XXI – e quem diz cinema diz também imagens – tem-nos ajudado a pensar nestas questões, como já se disse neste livro no início do capítulo dedicado à Philosopher's Brief. De um modo ainda mais decisivo do que nos livros, os filmes impregnam-nos de histórias e de imagens. Por isso, para mim, debater a temática das diversas formas de «morte assistida» está associada a pessoas, a casos difíceis com que se debatem, a alguns dos seus nomes, mesmo que fictícios. Como que reforçando implicitamente esta minha abordagem, Michael J. Hyde, a propósito de Timothy Quill, afirma o seguinte:
«[ ... ] depois de ler as suas narrativas [o autor refere-se também a Joni Eareckson Tada] sobre a humanidade ferida, fica-se com a sensação de que se o debate sobre a eutanásia for alguma vez decidido, o resultado será determinado, pelo menos numa grande parte, por aqueles que contam as «melhores» histórias sobre os actos heróicos de pessoas que, como eles próprios, têm frequentemente de olhar a morte de frente» (Hyde, 2001: 231).
Talvez que, de facto, o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido seja na verdade «ganho» por quem souber contar as melhores histórias em torno deles, não no sentido de histórias melhor compostas literariamente, mas histórias mais «verdadeiras», no sentido de nos revelarem toda a complexidade das problemáticas nelas envolvidas. Segundo o próprio Timothy Quill, «Se vai haver mudança, ela será accionada pelas histórias e paixões destas testemunhas» (Quill, «Death and Dignity: Making Choices and Taking Charge», 1993, p. 22), ou seja, destas pessoas que testemunharam «indignidade» e abandono no fim-de-vida, quer se tratasse de familiares ou amigos/as. De uma forma semelhante, afirma noutro livro: «Através de narrativas, aprendemos frequentemente mais sobre a natureza multidimensional da vida humana — as intenções, emoções e significados aparecem matizados, contraditórios, e muito mais complexos do que é capaz de reconhecer a ética habitual, baseada em regras» (Quill, «Caring for Patients at the End of Life. Facing an Uncertain Future Together», NY, Oxford University Press, 2001, p. 70).
Daí o interesse destas narrativas para mim. No meu caso concreto e nesta temática concreta, não consigo apenas pensar princípios abstractos sem os ligar à experiência concreta de algumas pessoas, pois são elas que, em última análise, julgam os princípios, não o contrário, melhor, os princípios só terão validade se ajudarem a respeitar a vulnerabilidade de cada uma delas, possibilitando-lhes uma morte mais de acordo com a sua situação particular de doença e os seus valores mais arraigados e reflectidos. (…)

Laura Ferreira dos Santos, doutorada em Filosofia da Educação e Professora Associada da Universidade do Minho.
«Fim-de-vida e não abandono. Um tríptico a partir de Timothy E. Quill», in "A morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra 2015, pp. 185-207. ISBN 978-972-40-6106-1.