Fim-de-vida e não-abandono.
Um tríptico a partir de Timothy E. Quill[1]
«Penso que este [T. Quill] é o tipo de médico
que gostaria de ter junto de mim quando estiver a morrer: sério, cuidadoso e
solícito – capaz de saber ajuizar bem de que tipo de «ajuda» eu possa estar a
precisar e pretender quando pedir «ajuda médica no morrer» (Constance E. Putnam,
«Hospice or Hemlock? Searching
for Heroic Compassion», Foreword by Thimothy E. Quill, Westport
(Connecticut)/London:Praeger, 2002: 138).
I. Introdução: a razão de ser de um tríptico em torno
do não-abandono
Numa
perspectiva de não-abandono, escreveu-se neste livro que as pessoas a ponto de
morrer foram já consideradas os nossos "boat people»: querem ser acolhidos
dentro das nossas fronteiras, mas são constantemente repelidos para os seus
países de origem, de vulnerabilidade extrema. Contra esta situação tem-se
debatido Timothy
E. Quill, respeitado médico norte-americano, Professor de Medicina,
Psiquiatria e Medical Humanities na
Universidade de Rochester, School of
Medicine and Dentistry (Nova Iorque), tendo, durante oito anos, dirigido
uma unidade de cuidados paliativos.[2]
Nos Estados
Unidos, o seu nome tornou-se conhecido fundamentalmente por duas razões. Por um
lado, por ter publicado, em 1991, no New
England Journal of Medicine, um artigo (NEJM, 1991;324:691-694)
em que assumia a sua cumplicidade no suicídio de uma doente sua de longa
data, num caso de leucemia muito grave.[3] Por
outro, por ter sido um dos médicos que, entre 1994 e 1997, esteve envolvido
numa acção que chegou ao Supremo Tribunal dos EUA e que visava alterar a lei do
estado de Nova Iorque sobre a proibição do suicídio medicamente assistido. T.
E. Quill tem dedicado uma grande atenção às questões de fim-de-vida,
preocupando-se com o cuidado e os direitos das pessoas que estão para morrer. Grande adepto
dos cuidados paliativos, pensa que nem sempre eles conseguem fornecer a melhor resposta,
pretendendo a despenalização do que, à falta de uma expressão mais adequada, se
chama habitualmente «suicídio medicamente assistido», como instância de último
recurso para os casos de processos de morte que implicam um sofrimento
impossível de controlar, quer seja ou não acompanhado de dor física.
Fundamentalmente,
Quill pretende que entre
quem cuida e quem é cuidado se possa estabelecer uma relação estreita pautada
pelo compromisso de não-abandono por parte de quem cuida. A partir da
leitura de três dos seus livros (e de um que editou em 2004 conjuntamente com
Margaret Battin), o capítulo que aqui apresento pretende elaborar um tríptico
em torno das questões ligadas ao morrer, à morte e ao não-abandono de quem se encontra gravemente
doente ou na fase final da sua vida. Embora se trate de um tríptico escrito, o
que lhe serve de inspiração e modelo são na verdade os trípticos medievais e
renascentistas da pintura ocidental e, dentro deles, os que também têm os
painéis laterais posteriores pintados. De facto, antes de escrever este texto
desenhei vagamente em duas folhas o tríptico de que queria falar, como se
alguém pudesse depois vir a tomá-lo em conta e concretizá-lo plasticamente.
Nunca antes como neste texto senti a necessidade de utilizar este recurso
prévio, nem nunca pensar poder vir a utilizá-lo. Penso que, fundamentalmente,
dois motivos me conduziram nesta direcção.
Em primeiro
lugar, o facto de já ter investigado muita literatura sobre eutanásia e
suicídio assistido que, frequentemente, se faz acompanhar de vários casos concretos
em que, consoante as/os autores, se vê ou não a pertinência de recorrer a essas
hipóteses. Muitas dessas histórias permaneceram no meu cérebro, como se se
tratasse de pequenos excertos de filme, com os dramas vividos pelas suas
personagens principais. O próprio Timothy Quill é considerado um óptimo «story-teller», estando um dos seus
livros – «A Midwife through the Dying
Process», (1996) – fundamentalmente dedicado à descrição do que vai
acontecendo a nove «almas» em processo de morte. Nove histórias dramáticas,
nove documentários que se poderiam realizar em torno de cada uma delas.
Por outro
lado, o cinema do início deste século XXI – e quem diz cinema diz também
imagens – tem-nos ajudado a pensar nestas questões, como já se disse neste
livro no início do capítulo dedicado à Philosopher's Brief. De um modo ainda mais
decisivo do que nos livros, os filmes impregnam-nos de histórias e de imagens.
Por isso, para mim, debater a temática das
diversas formas de «morte assistida» está associada a pessoas, a casos difíceis
com que se debatem, a alguns dos seus nomes, mesmo que fictícios.
Como que reforçando implicitamente esta minha abordagem, Michael J. Hyde, a
propósito de Timothy Quill, afirma o seguinte:
«[ ... ] depois de ler as suas narrativas [o
autor refere-se também a Joni Eareckson Tada] sobre a humanidade ferida, fica-se com a sensação de que se o debate
sobre a eutanásia for alguma vez decidido, o resultado será determinado, pelo
menos numa grande parte, por aqueles que contam as «melhores» histórias sobre
os actos heróicos de pessoas que, como eles próprios, têm frequentemente de
olhar a morte de frente» (Hyde, 2001: 231).
Talvez que,
de facto, o debate sobre a eutanásia e o suicídio assistido seja na verdade
«ganho» por quem souber contar as melhores histórias em torno deles, não no
sentido de histórias melhor compostas literariamente, mas histórias mais
«verdadeiras», no sentido de nos revelarem toda a complexidade das
problemáticas nelas envolvidas. Segundo o próprio Timothy Quill, «Se vai haver mudança, ela será accionada
pelas histórias e paixões destas testemunhas» (Quill, «Death and Dignity: Making Choices and Taking
Charge», 1993, p. 22), ou seja, destas pessoas que
testemunharam «indignidade» e abandono no fim-de-vida, quer se
tratasse de familiares ou amigos/as. De uma forma semelhante, afirma noutro
livro: «Através de narrativas, aprendemos frequentemente mais sobre a
natureza multidimensional da vida humana — as intenções, emoções e
significados aparecem matizados, contraditórios, e muito mais complexos do que
é capaz de reconhecer a ética habitual, baseada em regras» (Quill, «Caring for Patients at the End of Life. Facing an
Uncertain Future Together», NY,
Oxford University Press, 2001, p. 70).
Daí o
interesse destas narrativas para mim. No meu caso concreto e nesta temática
concreta, não
consigo apenas pensar princípios abstractos sem os ligar à experiência concreta
de algumas pessoas, pois são elas que,
em última análise, julgam os princípios, não o contrário, melhor, os
princípios só terão validade se ajudarem a respeitar a vulnerabilidade de cada
uma delas, possibilitando-lhes uma morte mais de acordo com a sua situação
particular de doença e os seus valores mais arraigados e reflectidos. (…)
Laura Ferreira
dos Santos,
doutorada em Filosofia da Educação e Professora Associada da Universidade do
Minho.
«Fim-de-vida e não abandono. Um
tríptico a partir de Timothy E. Quill», in "A morte assistida e outras
questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra 2015, pp. 185-207. ISBN
978-972-40-6106-1.
[2] Para algumas informações sobre o autor, cf., por ex.: