A
MORTE ASSISTIDA:
CONTEXTUALIZAÇÃO
FILOSÓFICA, ÉTICA E POLÍTICA
I.
Existência, Morte e Educação: uma reflexão em três andamentos
1. Existência, finitude e mortalidade
Ao
«existirmos», afirmamos através desse mesmo facto a nossa finitude: não existimos
em nós próprios, mas fora de nós ("ex-sistentia"). E se somos finitos, somos
também vulneráveis, expostos ao espaço e ao tempo, numa vulnerabilidade que Goya
bem retratou ao representar o deus Cronos, deus do tempo, a devorar o seu
próprio filho, num acto que ia repetindo ao longo dos anos, numa visão bem
humana do que poderia afinal ser a «eternidade». No entanto, para a maior parte
de nós, a finitude não significa imediatamente a morte, mas uma vida que se vai
desenrolando entre o nascimento e a morte, fora de qualquer definição
substancial ou absoluta do ser humano que, mesmo a existir, teria de
expressar-se na linguagem finita de um espaço e tempo concretos. Quer isto
dizer, por outras palavras, que mesmo a existir essa definição substancial ou
absoluta do ser humano, a linguagem em que se expressaria seria relativa,
sujeita a interpretação, o que já de si lhe retiraria o carácter tão substancial ou absoluto
que gostaria de assumir.
(…)
2. A pedagogia da infinitude, em que se
sabe tudo sobre os dinossauros e nada sobre a morte do avô
Se há
realidade que nos coloca diante da questão do sentido da vida é precisamente a
da morte. Talvez por isso, num mundo que gostaria de eliminar as incertezas e,
portanto, ignorar a finitude, a morte também é ignorada. Daí que Concepció Poch
e Olga
Herrero escrevam que «A contingência, a finitude, o sofrimento e a
morte – e também o fracasso e a perda em geral – não fazem parte do sistema de
ideias do homem ocidental, e não somente não fazem parte dele, mas são notas
incómodas e estranhas à sua cosmovisão» (Poch & Herrero, «La muerte y
el duelo en el contexto educativo. Reflexiones,
testimonios y actividades», Barcelona/Buenos Aires/México, Ed. Paidós, 2003: 19).
Por isso, segundo estas autoras, em vez de termos feito uma pedagogia da
finitude humana, abordando também estes temas, dir-se-ia que fizemos e continuamos a fazer uma pedagogia
da infinitude, que, precisamente por ser da infinitude, não pode incluir a
morte nos seus projectos educativos. Dizia-lhes uma professora com quem
contactaram para a sua investigação deste tema: se «a escola fala de drogas, de
sexo, de educação rodoviária, de paz, da sida... porque é que não havia de
falar da morte?» (ibid.: 37).
A
prioridade que crianças, pais e educadores/as adultos dão a estas questões da
morte é diferente, mas, curiosamente, a diferença reside em que são as próprias
crianças a considerarem que o tema lhes é mais importante do que os adultos
julgam. Assim, para um estudo feito em Londres, distribuiu-se um questionário a
milhares de alunas/os de escolas primárias, assim como a pais, professores e
outras pessoas que pudessem estar interessadas. O questionário era composto por
43 perguntas sobre «o bem-estar e a saúde das crianças» (ibid.: 51; as autoras seguem a descrição existente em Carol Lee, «La
muerte de los seres queridos. Cómo afrontarla y superarla», Trad. Barcelona,
Plaza y Janés, 1995: 196). Pediu-se então que as pessoas estabelecessem entre
os temas uma ordem de prioridades, em função da importância que lhes
reconheciam. Quanto à morte, o interessante é que foram as crianças de 9 e 10
anos a darem-lhe maior relevo do que os pais e os educadores: para os pais a
questão ficava no 14º lugar, os educadores e profissionais sanitários
colocavam-na no 41º, mas as crianças no 11º lugar.
Este é
apenas um dos factores a levar-nos a pensar que se deve educar em todas as
dimensões do ser humano, incluindo a morte. Aliás, são também as próprias
crianças a queixarem-se de como são tratadas por ocasião de uma doença grave de
um irmão ou irmã, ou aquando da morte do pai, da mãe, ou de um familiar
próximo: de um modo geral, impera a mentira e os procedimentos que visam
afastar a criança da situação que se vive ao seu lado, mentiras e afastamentos
que confundem e, muitas vezes, magoam as crianças. Eis o testemunho que Sofia
fez aos 35 anos, remontando à época em que tinha 9 anos de idade, altura em que lhe morreu o
pai:
"Sempre senti muito o facto de não ter podido
assistir ao funeral do meu pai. Foi como se não tivesse podido despedir-me. De
repente já não estava em casa, houve uma série de mudanças bruscas e no dia do
funeral deixaram-me em casa de uma vizinha. Oxalá tivesse podido ver o meu pai
pela última vez. Deviam ser tidos em conta os desejos e as necessidades das
crianças perante a morte de uma pessoa querida. Às tantas, se me tivessem
perguntado nessa altura se queria ir, quem sabe se eu não teria dito que não.
Mas, pelo menos, teria tido a possibilidade de dizer alguma coisa"
(citado em Poch & Herrero, 2003: 105-6).
O
desfasamento enorme existente entre a série de conhecimentos académicos que se
pretende inculcar nas crianças ou jovens e as suas necessidades mais íntimas é
por demais descrita e simbolizada por esta frase de uma criança: «Já sei muitas coisas sobre os dinossauros, agora o que
quero saber é porque é que o meu avô morreu» (citado em ibid: 50). Note-se que a criança não se
queixa de que lhe tenham transmitido conhecimentos académicos acerca dos
dinossauros, sobre os quais era natural que tivesse curiosidade. Do que se
queixa é da parcialidade do tipo de conhecimentos que lhe transmitem: se o avô,
de quem decerto gostava muito, morreu, porque é que não lhe falam das razões
pelas quais morreu, ou do facto de as pessoas estarem naturalmente condenadas a
morrer? Aliás, não só as pessoas, mas também os outros animais, e todo o ser
vivo terrestre?
(…)
Laura
Ferreira dos Santos, «Existência, Morte
e Educação: uma reflexão em três andamentos», in "A Morte
Assistida e outras questões de fim-de-vida", Coimbra, Almedina 2015, pp.
13-26. ISBN 978-972-40-6106-1.