«A
santidade primordial»
c/
Dar a palavra ao “anónimo” por contraposição ao “elitismo”
(…) Para além dos “argumentos” que tentei aduzir para falar de «santidade
primordial» e de «martírio primordial», pretendo acrescentar outro
argumento de tipo pessoal e existencial. Quer a vida primária – mesmo depois dum
terramoto – quer a morte primária – aquando de massacres – são
frequentemente massivos, mas rapidamente terminam no anonimato. E, o que é pior
do que isso, do ponto de vista cristão, a Igreja e os cristãos não sabem o que
fazer com essa massividade de vítimas anónimas que não nos saem da frente. Nem sequer
temos nome para esses milhões de homens e mulheres.
Na Igreja, e na teologia, na tradição das Ordens Religiosas, todos
sabemos o que fazer com os santos e mártires activos, mas quase ninguém sabe –
salvo raras excepções – o que fazer com os povos pobres e crucificados. Todos
sabemos o que fazer com os santos canonizados, mas não com a santidade primordial.
Julgo que o que aqui está em causa é uma certa visão da santidade, do martírio
e uma certa visão da vida cristã como se devesse ser algo excepcional, digamos
“elitista” (não querendo dar-lhe qualquer conotação pejorativa ao termo
‘elitista’, mas relevando-lhe a característica de termo perigoso…). Sem dúvida
que chama mais a atenção e é mais fácil conhecer o que algumas pessoas são e
fazem (monsenhor Óscar Romero), do que o que são e fazem, sofrem e padecem as
maiorias. Certamente que existe algo por trás desta tendência para o
excepcional e elitista.
Há passagens bíblicas, por exemplo nos sinópticos, que revelam admiração
e sabem o que fazer dos discípulos e dos seguidores de Jesus, mas o mesmo não
acontece quando se trata das multidões que acorrem a Jesus vindas de todos os
lados: pobres, enfermos, pecadores, mulheres, publicanos. E, no entanto, é
destes que Jesus diz que é o Reino de Deus. Como jesuíta, às vezes digo, sem
ironia, mas para iluminar a tensão entre o elitista excepcional e brilhante e a
realidade monótona e descarnada, que, sem conhecer Santo Inácio de Loyola, nem
sequer ter feito Exercícios Espirituais,
nem ter tido a visão de La Storta[1],
dois ou três milhões de seres humanos foram escolhidos para «viver na pobreza»
e que o Pai os «juntou ao Filho»… - enternecedora oração que santo Inácio
fazia. Sabemos o que fazer com os seguidores de Jesus que pedem para «ser
juntados ao Filho», mas é frequente não sabermos que fazer com aqueles que – sem nunca o
terem pedido – foram postos juntos com o Filho, sem dúvida alguma,
numa Cruz bem real.
Algo semelhante ocorre com as vítimas e os mártires. Sabemos sempre o que
fazer com os «mártires jesuânicos», mas regra geral não sabemos o que fazer
com o «povo crucificado» - esse não saber não é coisa pouca. Devemos
sublinhar que seria irónico concentramo-nos nos santos exímios e ignorar as “maiorias
vítimas”, na medida em que o que os primeiros nos pedem é que, precisamente,
estejamos junto às suas cruzes, que respeitemos profundamente esse seu mistério,
o qual, ao mesmo tempo, esconde e transparencia[2]
o mistério de Deus, que nos deixemos agraciar, perdoar e salvar por esse
mistério divino, que nos apouquemos ao ponto de dar as nossas vidas e de os
fazer baixar das suas cruzes.
É a partir da primariedade da vida, e não apenas a partir dos santos
exímios, que teremos que repensar o que é a virtude
cristã e a vida heróica; que significa seguir Jesus e reproduzir a
sua vida; o que quer dizer amor e fidelidade ao Povo de Deus; quem cumpre e como
cumpre as bem-aventuranças e também Mateus 25. Julgo que teremos que ampliar o
horizonte em que a santidade é pensada. Ela nada tem a ver com os massacres em El Mozote[3] ou o
acantonamento – desumano, na máxima pobreza, indefensável e indigno – em Kigali?
Não sei quem ama mais a Deus, se os santos canonizados ou se esses homens
e essas mulheres anónimas, por vezes, verdadeiros dejectos humanos. Muito menos
sabemos quem Deus mais ama – desculpem-me estas perguntas despropositadas
diante do mistério de Deus. Porém, Deus disse com a máxima clareza quem são os
seus predilectos. Curiosamente, ninguém tem isso em conta quando se pensa a
teoria e a prática das canonizações. O que é que, como novidade, a Igreja, e a
teologia, produziu de modo a mostrar, com clareza, esse amor predilecto de Deus
pelos pobres e pelas vítimas e de modo a colocar esse amor no centro da sua
missão?
Seja lá o que tenha feito, creio que é imperioso repensar a própria noção
de santidade, não para acrescentar, às que já existem, mais precisões
canónicas, mas para levar ao cumprimento o facto incontestavelmente maior da
humanidade: - a santidade
primordial dos que querem viver e o martírio primordial dos que são
vítimas inocentes e indefesas do poder de sempre e, seguramente, vítimas da
humanidade de agora. Acreditamos que os pobres,
vítimas da injustiça quotidiana, de terramotos e de repressão, participam duma santidade que é de uma ordem distinta, quase metafísica, diria!,
pelo seu elementaríssimo trabalho e pela esperança em tão só procurar terem mão
na vida, e pelo mistério de estarem privados de viver quando são inocentemente
assassinados. Eis a santidade primária.
1.2 A ultimidade[4]
da vida e a parcialidade para o pobre. A intuição da Bíblia
Será que, na Escritura, existe este tipo de reflexão? Estou convicto que
a intuição central da Escritura converge com o que até aqui dissemos,
conferindo-lhe uma definitiva justificação teologal. Recordemos, resumidamente,
aspectos fundamentais por todos já conhecidos[5],
que podem ser tomados como equivalentes da santidade primordial.
Num terramoto explode a primariedade da vida e nos massacres explode a
primariedade da morte. Esta primariedade é independente da condição das vítimas
– pobre, classe média, endinheirados –, mas onde mais claramente surge a
primariedade da vida é nos pobres.[6]
Pobre
quer dizer vida vulnerável, ameaçada, negada, mas também vida ansiada e
defendida, podendo-se, assim, a partir desta perspectiva, analisar a
importância que tem a vida primária na tradição bíblico-cristã. É fundamental
que o lembremos, já que tal facto não aparece assim tão claramente noutras
tradições, incluindo a da democracia, a qual põe mais a tónica sobre os
direitos e os valores do cidadão. A explicação para isso talvez tenha a ver com
a forma como se olha a realidade social, a qual, pelo menos nos países onde a
democracia ocidental vigora, seja vista a partir do elemento ‘cidadão’ e menos
a partir do elemento ‘pobre’. Ao contrário, a tradição bíblico-cristã,
repescada hoje em dia sobretudo pelo Terceiro Mundo, confere ultimidade à “vida
primária” e isso acontece porque se outorga ultimidade ao pobre. Ao mesmo
tempo, esta ultimidade do pobre surge na parcialidade de Deus para com o pobre:
vida primária
do pobre e parcialidade de Deus correlacionam-se.
No acontecimento fundante da tradição bíblica, Deus revela-se a um povo pobre e oprimido ao nível do mais
básico da vida e da dignidade do ser humano, desejando
libertá-lo. (…)
Porém, é específico dessa tradição que essa salvação vem do débil e do
pequeno: uma velha estéril, o minúsculo povo de Israel, um judeu
marginal… O débil e o pequeno estão no centro do
dinamismo da salvação. Eles são os seus portadores, não apenas os seus
beneficiários. A utopia responde à sua esperança e não à esperança dos
poderosos. A sua pequenez expressa a gratuitidade
da salvação - não a hybris.
(…)
Essas «vítimas de hoje» trazem salvação, e uma salvação também histórica.[7]
(…)
2. Santidade primordial e
solidariedade: «carregarmo-nos mutuamente»
Um terramoto desencadeia ajuda,
e já dissemos que por causa do seu dinamismo intrínseco – para além de pôr em
marcha conhecimentos e capacidades técnicas necessárias – pode levar a atitudes
profundamente humanas: «dar-se» e não
apenas dar; «fixar-se» (de alguma
maneira: física ou espiritualmente) no lugar da catástrofe, e não apenas ir até
lá; e fazê-lo «para sempre» (uma vez
mais, física ou espiritualmente), e não só durante uma temporada. Estes são
elementos que já mencionamos ao falar de como a ajuda pode desembocar na solidariedade. Agora pretendemos
aprofundar dois aspectos fundamentais desta solidariedade. Quem convoca a solidariedade e que significa
‘carregar-se mutuamente’. (…)
Pois bem, o primeiro passo da
solidariedade é que «os outros» ajudem a «carregar com o peso da realidade» dos
povos crucificados, o que pressupõe que sejam eles mesmos a carregá-lo.
O segundo passo é dar-se
conta que – inesperadamente –, nesse carregar com a
realidade, a realidade carrega com eles (com os solidários, com os
que ajudam). O povo crucificado
carrega com eles, oferece-lhes luz, força,
ânimo. Então, a relação que se estabelece é já a de dar e receber.
Na medida do possível, quebram-se atitudes seculares que pareciam impossíveis
de se romperem, relações intocáveis entre «ajudantes» e «ajudados». Chega-se,
assim, à conclusão existencial de que ninguém pode ser tão prepotente ao ponto
de pensar que só pode dar e não receber nada. E de que ninguém deve ser tão
timorato assim ao ponto de pensar que só tem a receber e nada a dar. Assim, os desiguais carregam-se mutuamente. Vejamos
isso, então. (…)
Jon Sobrino, sj
“La
santidad primordial”, in «Terremoto,
Terrorismo, Barbarie y Utopía – El Salvador, Nueva York, Afganistán», Ed.
Trotta 2002, 123-168, cit. 132-136.
[1]
Em Outubro de 1538, quando se prestava para se pôr ao serviço do Papa a fim de
receber a aprovação papal para a sua viagem à Terra Santa, Inácio de Loyola
parou para rezar na capela de La Storta, próxima de Roma, onde acabaria por ter
uma experiência profunda, que iria marcar decisivamente o futuro do seu grupo
de companheiros. [Nota do tradutor]
[2]
Do verbo ‘transparenciar’, tornar transparente. [Nota do tradutor]
[3]
Aldeia de ‘El Mozote’, 11 de Dezembro de 1981, em El Salvador, apoiado por
Ronald Reagen, 800 civis foram chacinados pelas tropas salvadorenhas (cf. a
obra de MARK
DANNER, jornalista norte-americano).
[4]
‘Ultimidade’ significa ‘realidade última’,
definitiva porque definidora. [Nota do
tradutor]
[5]
Jon Sobrino, Jesucristo Liberador,
Trotta, Madrid, 42001, pp. 115-121 [pp. 111-120 na 5ª Edição de
2010]
[6]
Na Escritura surge muito mais frequentemente a opressão dos pobres no
quotidiano que a repressão sob a forma de massacres. Por isso, iremos
referir-nos mais ao primeiro do que ao segundo modo.
[7]
O subtítulo do artigo citado de Ellacuría é «Ensayo
de soteriología histórica». De igual modo, o seu último artigo
teológico, «Utopía y profetismo desde América Latina», (Revista Latinoamericana
de Teologia 17 [1989], pp. 141-184) tem como subtítulo «Un
ensayo concreto de soteriologia histórica».