Carta ao cego de nascença que passou a ver
Amigo dos olhos abertos!
Não sei como te chamar porque não nos chegou o teu nome mas o evangelista João deixou-nos um retrato teu que impressiona sempre que o escuto e ficou-me uma vontade de te escrever. Ao contrário de outros cegos dos evangelhos parece que não pediste nenhum milagre a Jesus. Não gritaste nem se ouviu a tua voz. Talvez nem tivesses ouvido falar dele. De facto foi Jesus que te encontrou no caminho e depois de tentar libertar as mentes dos discípulos do preconceito de que a doença e o sofrimento eram castigo dos pecados, pôs-te “na berlinda”. Deves ter ficado surpreendido com aquele lodo feito de saliva e terra que Ele te pôs nos olhos e com a ordem para te ires lavar à piscina de Siloé. E foste, e ainda bem que foste!
Gostava tanto de te ouvir contar como foi o teu abrir de olhos e começares a ver! Sabes, às vezes, andamos com os olhos desfocados ou cheios de escamas que já nem nos maravilhamos com o dom de ver. Como se andássemos doentes dos olhos e só vemos o que é feio, o mal dos outros e do mundo, a escuridão. Imagino o teu olhar como o das crianças, encantado com tudo, maravilhado com o insignificante e com o grandioso, espantado quando viste o teu rosto pela primeira vez e o daqueles que só conhecias pela voz, pelas mãos. Estavas a nascer de novo!
E como isso te transformou. Já não fazia sentido pedir esmola mas era preciso dizer que eras o mesmo e também outro. No meio de acesa polémica foste questionado, levado aos fariseus, quiseram manipular-te, insultaram-te, mas foi crescendo em ti uma voz, uma coragem para até ironizar com os que te julgavam. Não aceitavam que tivesses nascido “inteiramente em pecado” e estivesses a ensiná-los! Continuamos a ter dificuldade em acolher as surpresas de Deus. É tão fácil espalhar o preconceito e viver em condomínios fechados do pensamento. Julgamos ver melhor e talvez estejamos cegos para o essencial. Mas também há modos refinados de prolongar “cegueiras”, de esconder verdades, de manipular pessoas e multidões. Na política, na economia e até na fé há “sábados” intocáveis de inércia e acomodamento, de poderes apetecíveis, de tradições vazias, de injustiças prolongadas. Continua a ser verdade: “o pior cego é aquele que não quer ver”.
Mas foi o olhar de Jesus que mais te impressionou, não foi? Há uma canção brasileira que diz assim “Quando a luz dos olhos meus e a luz dos olhos teus resolvem-se encontrar…”. Ver e acreditar foi um enorme passo. Como se transformou o teu caminho? Como se transformam os nossos que também acreditamos em Jesus? Pode ver-se nos nossos olhos a luz que passou a habitar os teus? Obrigado pela tua paciência em me leres.
Um abraço a Jesus e vemo-nos por aí!
À PROCURA DA PALAVRA
P. Vítor Gonçalves, Lisboa
DOMINGO IV DA QUARESMA
“Nunca se ouviu dizer que alguém
tenha aberto os olhos a um cego de nascença.”
Jo 9, 32