teologia para leigos

9 de março de 2011

A NARRATIVA DA DES-SOLIDARIEDADE NEOLIBERAL


 A era da precariedade


De repente, a precariedade chegou à generalidade dos meios de comunicação social, ocupando as manchetes e o horário nobre. O rastilho que impôs a sua visibilidade foi um encontro. De um lado estava uma canção, Que parva que eu sou, dos Deolinda, que parece um álbum de fotografias. Mas, em vez de registar momentos de felicidade, esse álbum mostra-nos imagens do pior que está a acontecer na vida de uma juventude que só conhece, ou só perspectiva, o trabalho precário. Entre o sarcasmo e a auto-ironia, a canção regista a aceitação passiva da situação, mas também a insuportabilidade e a revolta. Do outro lado estava um público que imediatamente reconheceu essa condição como sendo a sua. Apropriou-se da canção de forma política, isto é, como veículo de denúncia e de protesto, e fê-la percorrer as redes sociais, entrar pelo debate público e sair para a rua, em protesto marcado para 12 de Março. Saberiam eles que estavam a suscitar a identificação, directa e indirecta, de tantas outras gerações, de tantos outros trabalhadores, mais ou menos escolarizados?

O fenómeno da precariedade laboral, que a partir do mundo do trabalho metastiza todo o viver com incerteza e insegurança, não é novo. Começou na década de 1980 [1], quando o projecto neoliberal se lançou ao ataque de direitos associados ao mundo do trabalho, direitos esses que vinham sendo decisivos na eliminação de desigualdades socioeconómicas e na construção de sociedades mais decentes.

 
Dessa recomposição do «mercado de trabalho», desde então empreendida, fizeram parte a flexibilização da «oferta» e da «procura» de mão-de-obra; a alteração de dispositivos legais que traduziam formas de protecção e dignificação do trabalho; e as múltiplas desregulações dos contratos que, com a ameaça do desemprego, facilitaram diminuições de vencimentos, o aumento de ritmos e tempos de trabalho, a extensão de contratos a termo, a aceitação de trabalho a tempo parcial e outros vínculos precários.

O aumento da precariedade, da exploração e das desigualdades − que a crise e a austeridade ainda vêm agravar − afecta quem está hoje a sair das universidades, mas já afectou quem há vinte anos, senão mais, começou a receber as primeiras bolsas de investigação ou a «passar recibos verdes» e nunca mais abandonou os vínculos precários. Vinte anos depois, muitos desses precários têm já filhos que não sabem o que é ter pais com direito a férias, subsídios de doença ou de desemprego, tal como têm pais cujas legítimas expectativas de tempo de reforma foram já muito «precarizadas» pela ajuda (financeira e não só) que os filhos são forçados a pedir-lhes. Outros têm pais que nem sequer chegaram a ter reformas minimamente decentes − e não têm como os ajudar. Décadas passadas, a precariedade afecta também aqueles que, aproximando-se da reforma, tenham passado por experiências de desemprego ou tenham tido carreiras contributivas tão precárias que nem podem sonhar com a aposentação.

A precarização do emprego, fenómeno comum a todos os países da União Europeia mesmo que tenha especial incidência em Portugal, não é de facto um problema que atinja apenas uma geração. Os dados hoje comprovam-no. Basta olhar, por exemplo, para a evolução do trabalho temporário que, entre 1995 e 2008, cresceu em todas as classes etárias. Mas a tendência geral de aumento é acompanhada de um outro padrão: a da manutenção da classe mais jovem, entre os 15-24 anos, como a que apresenta os valores mais elevados, seguindo-se a dos 25-49 anos e, menos afectada, a dos 50-64 [2].

Todas estas situações, do desemprego à precariedade e ao salário, tendem a agravar-se quando o nível de escolarização é menor. Isto é particularmente grave se pensarmos que Portugal é um país que tem ainda reduzidas taxas de escolarização superior e que tem vindo a assistir, na década posterior ao aumento das propinas no ensino superior e agora com a crise (e na ausência de alterações significativas no apoio escolar), a uma preocupante reelitização da frequência desses graus de ensino. A maior visibilidade que a era da precariedade hoje vai tendo no espaço público e mediático, transbordando dos âmbitos associativos e sindicais, decorre também, sem dúvida, da extensão e aprofundamento do fenómeno, da consciência de que ele não é passageiro. Mas com a visibilidade pública torna-se também um campo em disputa.

As narrativas que apostam na quebra de solidariedades intergeracionais ou interprofissionais vão fazer tudo o que estiver ao seu alcance para dizer que mais vale a instabilidade da precariedade do que a estabilidade do desemprego; para opor os direitos dos mais velhos à flexibilidade dos mais novos; para fazer apelos paternalistas ao realismo assumindo culpas próprias nos ultrapassados utopismos − para onde atiram toda a geração de direitos socioeconómicos que o Estado social e os serviços públicos devem assegurar.

As narrativas que consideram que a precariedade, bem como o desemprego, são formas moralmente inaceitáveis, e além disso economicamente insustentáveis, de organizar as sociedades têm de desmontar os discursos que apenas apresentam «soluções» individuais para o emprego precário (da cenoura dos casos de sucesso ao bastão da falta de «boa atitude» ou «pró-actividade») e desenvolver formas de actuação colectiva que possam trazer transformações sociais. Nesse sentido, abrir brechas na era da precariedade terá de passar pela articulação de lutas comuns, da defesa dos serviços públicos e do emprego até todos os combates pela igualdade. Março anuncia-se como um bom mês para essa articulação: depois do protesto contra a precariedade a 12 vem o protesto contra a austeridade e o desemprego, dia 19.

segunda-feira, 7 de Março de 2011

Notas
[1] Cf. José Nuno Matos, «Precariado: de condicionado a condicionante político», Le Monde diplomatique − edição portuguesa, Setembro de 2007. O tema da precariedade vem sendo há anos regularmente tratado nestas páginas. Alguns artigos estão disponíveis em http://pt.mondediplo.com/.
[2] Ver Renato Carmo (org.), Desigualdades Sociais 2010. Estudos e indicadores, Mundos Sociais, Lisboa, 2010, p. 191 ss.


Foto: Anselm Kiefer [1945-.]