A dimensão política do sofrimento
A partir de Ronald Dworkin e Eric J. Cassell
Paralelamente,
mas cada um a seu modo, Ronald Dworkin, filósofo do Direito e da Política, e
Eric J. Cassell, médico internista
que, após se ter reformado em 1998, se manteve ligado aos cuidados paliativos,
insistem no carácter único do ser humano, melhor, de cada ser humano. E como ambos
acentuam de modo radical este carácter único, é também de modo radical que
ressalta a desrazoabilidade de, em questões bioéticas e biopolíticas tão
intensas quanto a da legitimidade da morte assistida (eutanásia e/ou suicídio
medicamente assistido) e a da interpretação a dar ao sofrimento, se optar por respostas uniformes que ignoram a complexidade que cada
um de nós é. É também por isso – de modo distinto mas essencial – que
eles insistem em que só conhecendo a narrativa pessoal de quem sofre
é que é possível compreender verdadeiramente a posição do doente perante a
morte assistida ou o modo como encara e vive o seu sofrimento. A meu ver, é
esta atenção muito especial que cada um destes autores dá às "narrativas
pessoais" que faz com que ambos, embora através de argumentações muito
distintas, aceitem a legitimidade da morte assistida.
Esta é precisamente uma das ideias que
tentarei defender e desenvolver ao longo deste texto. Por outro lado, esta
mesma atenção especial que cada um dos autores atribui às narrativas pessoais
far-me-á ressaltar a dimensão política do sofrimento, em todas as
fases da vida e não apenas no seu final, ideia que podemos
considerar implícita ou em não-contradição com as obras aqui analisadas, mas
que não surge nelas de forma clara, e muito menos de forma desenvolvida. Para
chegar a estas conclusões basear-me-ei no famoso e clássico livro de Ronald
Dworkin, «Life's Dominion. An
Argument about Abortion and Euthanasia» (1993), e no igualmente famoso e
clássico livro de Eric Cassell intitulado «The Nature of Suffering and the Goals
of Medicine» (1991; 2004, 2.ª edição), assim como num seu artigo de 2004 (cf.
Cassell, «When Suffering Patients Seek
Death», in QUILI, Timothy & BATTIN, Margaret (eds.),
«Physician-Assisted Dying. The Case for Palliative Care & Patient Choice»,
Baltimore and London: The John Hopkins University Press, 75-88, 2004). Esta
perspectiva obrigar-me-á a revisitar posições de Dworkin já expostas (sobretudo,
neste livro: «Morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina, em
1.2.). Ainda assim, acabei por considerar produtiva esta minha opção, não só
pela riqueza do pensamento de Dworkin neste âmbito, mas também por essa riqueza
ajudar a perceber melhor a perspectiva de E. Cassell, contribuindo, assim, os
dois, de forma muito significativa, para a reflexão sobre a temática
extremamente importante daquilo que designei como a dimensão política do sofrimento.
1. Ronald Dworkin:
uma narrativa sobre as condições necessárias para que cada um possa defender os
seus melhores interesses
1.1. O valor
intrínseco da vida humana
Dworkin
está convencido de que a maior parte da humanidade tende a pensar que a vida
humana tem valor por si mesma – um valor intrínseco –, independentemente de
outros valores que lhe possam ser atribuídos. Para o entendermos melhor,
vejamos como Dworkin distingue entre alguns tipos de valores. Assim, podemos
dizer que algo tem "valor intrínseco" por ter um valor
incrementalmente valioso, ou seja, quanto mais possuirmos esse objecto ou ele «ser»
melhor. Nesta categoria podemos colocar "o conhecimento", que tem
valor em si mesmo, mas que liga a ele a necessidade de ser cada vez maior,
mesmo em áreas que aparentemente não trazem benefícios directos à humanidade,
como a cosmologia. Contudo, a vida humana, embora tenha valor em si mesma, não
tem, segundo Dworkin, um valor
incremental: não dizemos que, quanto mais vida humana houver no planeta, melhor.
O critério quantitativo
não se aplica aqui. Por isso, Dworkin irá dizer que a vida humana, em
vez de um valor incremental, tem um valor intrínseco que reputa de sagrado ou
inviolável: «o seu valor é independente
do que as pessoas gostam, desfrutam ou necessitam, ou do que é bom para elas»
(Dworkin, 1993: 71). Não se trata, tão-pouco, de algo que é instrumentalmente
valioso, no sentido de ter utilidade para conseguir um bem, como é o caso do
dinheiro ou dos medicamentos. Tão-pouco estamos a falar de algo que é apenas
subjectivamente valioso, como pode ser para mim apanhar muito sol ou ver filmes
de determinado realizador.
Evidentemente,
a vida
humana é valiosa subjectivamente, na medida em que tem um valor
pessoal para cada um de nós, assim como instrumentalmente importante, na medida em que
beneficia os outros (por exemplo, fomos muito beneficiados pelas existências de
Mozart ou Pasteur). Mas o que Dworkin quer ressaltar na vida humana é precisamente
«algo que devemos respeitar, honrar e proteger por ser maravilhoso em si mesmo»
(ibid.: 75), de modo que a sua
destruição deliberada provocaria em nós uma sensação de vergonha (neste contexto,
o termo «shame» pode ser
abundantemente encontrado no livro de Dworkin). Neste caso, Dworkin diz-nos que
costumamos encontrar dois modos de transformar algo em sagrado:
através de um processo de associação ou designação – por exemplo, a bandeira que
acaba por ser identificada com a vida de um país e representá-lo – e através do
modo como algo chegou à existência, sobretudo através da sua história. Neste
último caso, Dworkin chama-nos sobretudo a atenção para as obras de arte, as
espécies animais e as culturas humanas. O que nestes três casos estaria
presente seria um grande investimento criativo (quer fosse de ordem
humano ou biológico) que nos sentiríamos obrigados a respeitar de um modo muito
especial. Se todo esse investimento criativo fosse perdido, sentiríamos que um
grande esforço natural ou biológico tinha sido frustrado, o que, já se disse,
nos traria um sentimento
de vergonha, por não conseguirmos dar condições de subsistência a tanto
esforço desenvolvido.
Repare-se,
no entanto, que estes três exemplos não se enquadram na categoria do que é
incrementalmente valioso: não gostaríamos propriamente de ter mais pinturas de Botticelli,
nem mais espécies animais vivas ou culturas humanas. O que valorizamos é o facto de terem
chegado a existir, pelo esforço criativo que representam. Dworkin
introduz ainda alguns matizes nestas categorizações: crê que a maior parte de
nós admite graus de sagrado e, por
outro lado, que somos selectivos na atribuição do
carácter de inviolabilidade. Em termos concretos, quer isto dizer
que atribuiríamos muito maior gravidade à destruição de uma pintura de Bellini
do que à destruição de uma pintura de um autor menor e que, por exemplo no
campo da natureza, não é simplesmente o facto de algo ter derivado de um longo
processo natural que lhe confere imediata inviolabilidade. Este último caso
seria o dos poços de petróleo, dos depósitos de carvão e de algumas espécies
animais: «as nossas escolhas são moldadas pelas nossas necessidades e
reflectem-nas, e, de modo semelhante, moldam outras opiniões que tenhamos e são
moldadas por elas» (ibid.: 80).
Apesar
destas ressalvas, vemos que as duas principais tradições do sagrado que Dworkin
menciona são as que derivam do respeito por fortes investimentos naturais ou
humanos. Na discussão do valor sagrado ou inviolável da vida humana,
problemática que se coloca sobretudo no domínio das questões éticas sobre o aborto
e a morte
assistida, os argumentos expostos por Dworkin alicerçar-se-ão
nestas duas tradições e no valor moral relativo dado a cada uma delas.
1.2. Discordâncias
filosófico-espirituais acerca do valor intrínseco da vida humana
Ateus,
agnósticos e crentes podem partilhar a mesma convicção de que a vida humana é
extremamente valiosa, ao ponto de a considerarem sagrada, no sentido de que
todo o respeito lhe é devido. Porém, os motivos que levam a essa mesma
convicção partilhada podem revestir-se, como se disse já, de matizes
diferentes, levando, em casos concretos da vida humana, a apreciações
igualmente diferentes. Assim, no caso do aborto, os grupos menos conservadores
(ou mais liberais) tenderão a olhar à qualidade das vidas em presença, não
simplesmente ao facto natural de haver uma vida humana em gestação. Interessará
identificar as situações em que haja menos frustração da vida (termo
usado pelo próprio Dworkin, «frustration»,
cf., por ex., ibid.: 88), o que,
nesta perspectiva, não poderá ser simplesmente apreciada ou medida pela perda
de vida que possa ocorrer, no sentido de implicar a sua morte. Este último
critério não é o mais adequado para Dworkin, por se centrar sobretudo no futuro
e suas possibilidades, ignorando que é fundamentalmente em função do que já aconteceu no passado que
podemos apreciar melhor o que denomina de desperdício de vida («waste of life», cf, por ex., ibid.: 86). Aliás, o que mais
distinguirá a posição conservadora da posição liberal será precisamente o facto
de esta última, perante escolhas difíceis e trágicas sobre o melhor modo de
manifestar respeito pelo valor intrínseco da vida humana, estar sobretudo
preocupada com o investimento humano já feito nessa
vida – tanto mais importante quanto mais significativo ou
substantivo – do que numa existência natural cujo futuro se desconhece, ou
já se sabe ir ser extremamente penoso, para o próprio ou familiares. Por
outras palavras, no campo mais liberal acredita-se «que o desperdício de vida,
medido em termos de frustração mais do que de mera perda,
é muito maior quando a vida de uma jovem mão solteira é arruinada do que quando
um feto, nos seus inícios, deixa de viver, numa altura em que o investimento
humano na sua vida é ainda muito negligenciável» (ibid.: 99; outro caso em que os liberais tendem a aprovar o aborto
é quando se pressupõe que a vida do feto será altamente frustrada por vir a
sofrer de grande
deformidade). Daí que esta perspectiva liberal insista mais na vida que as pessoas já estão a viver do que na
vida incerta que o futuro poderá trazer-lhes. Em linguagem grega, a que outros
autores também já recorreram, Dworkin alerta-nos para a distinção entre zôé, «vida física ou biológica» (ibid.: 82) e bios,
a vida «constituída pelas acções, decisões, motivos e acontecimentos que
compõem o que agora chamamos uma biografia» (ibid.: 83). Na nota 7 do capítulo 3, Dworkin reconhece que a
distinção foi já explorada por James Rachels, e, de facto, um dos grandes fios
condutores da obra de Rachels — «The End of
Life» — baseia-se na ideia de que há uma grande diferença entre «estar vivo
e ter uma vida» (Rachels, 1987: 25), ou seja, que os seres
humanos não estão simplesmente vivos, no sentido de terem um organismo que
funciona biologicamente, mas que têm uma vida biográfica. Nesta perspectiva, se a morte é uma infelicidade, é-o acima de tudo por pôr
termo a uma vida biográfica e não a uma vida biológica (cf. ibid.: 50). É também nesta perspectiva
que se entende um exemplo dado por Rachels, em que a família de um doente que
ficara em coma durante oito anos antes de falecer, comentou deste modo o seu
falecimento: «O Miguel morreu com a idade
de 34 anos depois de ter vivido 26» (ibid.: 55). Em tempos mais recentes, é de assinalar que é
precisamente pela distinção entre zôé
e bios que começa a Introdução do livro de
Giorgio Agamben, «O poder soberano e a
vida nua. Homo Sacer» (1998; original de 1995. A distinção entre vida biológica e vida biográfica foi já abordada neste livro – «A morte assistida e outras questões de fim-de-vida», Almedina –,
sobretudo no cap. II, ponto 2.2.2).
Aparentemente,
é também o interesse pela preservação da vida que foi objecto de vários
investimentos humanos – ou seja, a vida biográfica – que torna os liberais
mais sensíveis à defesa de legislações sociais que, entre outras coisas,
defendam mais direitos para os deficientes. Nesta perspectiva, não há razões
para fazer equivaler a morte prematura evitável à frustração mais grave que
pode ocorrer à vida humana, tanto no caso do aborto como no da morte assistida.
Não quer isto dizer, no entanto, que, para Dworkin, o aborto – ou qualquer
terminação deliberada da vida – deva ser encarado com ligeireza, precisamente
pelo imenso respeito que toda a vida humana nos merece (porque este texto não
visa directamente esta problemática, não vou aqui explanar a argumentação de
Dworkin, presente em vários dos capítulos do seu livro, segundo a qual o aborto
é, a seu ver, condenado por causa do valor intrínseco dado à vida humana, e não
pelos supostos interesses e direitos de que o embrião e o feto disporiam como
pessoa).
Não
obstante estas considerações, Dworkin não crê que a maior parte das pessoas
possa ser situada claramente num extremo ou noutro destes posicionamentos –
importância exclusiva dada à vida biológica ou dada à vida biográfica –, mas
que é a sua maior aproximação a um dos lados que determina o seu carácter mais
ou menos conservador ou liberal, mais ou menos religioso ou secular. Por outro
lado, Dworkin pensa que estes posicionamentos têm na base uma apreciação do
valor da vida humana que é de ordem filosófico-espiritual, devendo o Estado abster-se de pretender
impor aos seus cidadãos convicções desta ordem. Mais ainda, pensa
que a consideração de que o valor da vida humana transcende ou está para além
do valor que a própria pessoa lhe possa dar, possuindo assim um valor cósmico
impessoal e objectivo, é algo que caracteristicamente define uma crença
religiosa, mesmo que sustentada por pessoas que se consideram alheias ao
religioso. Logo,
é em nome da liberdade religiosa que os estados democráticos deverão impedir-se
de tentar obrigar os cidadãos a optar entre interpretações distintas
do valor sagrado da vida humana, o que não quer dizer que não devam encontrar
formas de incentivar o debate e contribuir para a tomada de posições
esclarecidas e não para o conformismo. Nas palavras de Dworkin,
"Um estado não pode coarctar a liberdade, em
ordem a proteger um valor intrínseco, quando o efeito sobre um grupo de
cidadãos seria especialmente grave, quando a comunidade está seriamente
dividida sobre o respeito que esse valor requer, e quando as opiniões sobre a
natureza desse valor reflectem convicções essencialmente religiosas que são
fundamentais para a personalidade moral" (Dworkin, 1993: 157).
No entanto, foi assim que procedeu o
Supremo Tribunal dos Estados Unidos no famoso caso de Nancy Cruzan, quando a maioria
afirmou que era legítimo continuar a manter a jovem mulher viva de modo a
reafirmar o valor da defesa da vida humana, apesar de considerar que essa
decisão ia decerto contra a defesa dos melhores interesses de Nancy — Nancy
estava em estado vegetativo persistente há vários anos, sem qualquer
expectativa de recuperação, e eram os próprios pais a pedir que a alimentação e
a hidratação artificiais cessassem (cf. ibid.:
12 e 194-5). Como se diz mais adiante neste livro, posteriormente, com recurso
a novos dados, foi obtida autorização judicial para «desligar as máquinas» e
deixar Nancy morrer – cf. Colby, 2002). Cf. o «caso Nancy Cruzan» [Missuri] em «Eluana – a liberdade e a vida», no
seguinte link, sobretudo na p. 13s:
(…)
Laura Ferreira dos Santos, «A dimensão política do sofrimento - A partir de Ronald Dworkin e
Eric J. Cassell», in "A
morte assistida e outras questões de fim-de-vida", Almedina, Coimbra. ISBN
978-972-40-6106-1.