ÉTICA FAMILIAR
− da moral autoritária ao ethos do afecto
A família
tradicional e autoritária deu lugar à família desenvolvimentista e consumista[1].
Os presumíveis valores éticos que justificam a vida desta família pertencem à
«ética do desenvolvimentismo consumista». O seu conteúdo básico traduz-se nas
seguintes apreciações:
− a realização da pessoa como exigência
individualista à custa seja lá de que bem for.
− a contínua promoção e ascensão dos membros
da família num crescendo de «sempre mais»: os filhos «mais» que os pais; hoje
«mais» do que ontem, etc.
− o consumismo como sinal de vitalidade e de
progresso: consumo de bens (económicos, culturais, educativos, sociais, etc.).
− o trabalho e a ocupação fora de casa como
sinal de desenvolvimento pessoal e como meio para alcançar o bem-estar do
consumismo.
− a libertação sexual como espaço privilegiado
da realização individual e do afã consumista.
O ethos do desenvolvimentismo consumista
conduziu a vida familiar a uma profunda insatisfação e infelicidade[2].
A análise de Paulo VI na encíclica Populorum progessio
sobre a vacuidade da ética do «ter» pode ser verificada na família consumista.
A pseudo-ética do «ter» opõe-se à genuína ética do «ser». «O ter mais, seja
para povos, seja para pessoas, não é o fim último (…). A busca exclusiva do
possuir converte-se em obstáculo para o crescimento do ser e opõe-se à sua
verdadeira grandeza; para as nações, como para as pessoas, a avareza é a forma
mais do que evidente de subdesenvolvimento moral.[3]»
A
ética da privacidade
Na vida familiar
está-se a instalar o ethos da privacidade, que tanta influência exerce já em
outros âmbitos da nossa existência humana. Da família consumista, sucessora da
família autoritária, surgiu a família privaticista.
Os «valores» que a
ética da privacidade projecta sobre a vida familiar são, sobretudo,
os seguintes:
− a incomunicação sem protestos nem violências,
mas como forma de vida que se livra de «implicações» ou «complicações».
− o prazer sem estridências ou com tonalidades
de mediania.
− o trabalho (ou o desemprego) como «necessidade» e não como caminho de
realização pessoal ou como dinâmica socialmente útil.
− a cultura do individual, do singular, do diferente
como sinal de uma nova estética da existência humana.
− a promoção,
certamente implícita e inconsciente, das virtudes do estoicismo
("sem stress", tranquilidade, harmonia, etc.), mas dum
estoicismo sem
sonhos de universalidade e sem paixão pela ‘humanitas’.
Recapitulando
Os três sistemas
morais que acabei de referir desvirtuam o autêntico ethos da vida familiar. A família que surge de tais alicerces
éticos não possui a função humanizadora a que corresponde a vida das pessoas (dinamismo
personalizador), nem a relação com o conjunto da vida social (força
socializadora). É preciso, portanto, reorientar a ética da vida
familiar propondo uma alternativa moral para a família do futuro.
A imagem ideal de
família surge, em grande medida, como reacção de contraste ante a contra-imagem
que projectam as deformações éticas anteriormente descritas. Sintetizando,
estes são os principais traços deformados que a contra-imagem da
família apresenta:
− Empresa
(de produção e/ou de consumo), mais do que comunidade de pessoas.
− Base reprodutora
da sociedade repressiva e alienante.
− A procriação
como razão última da vida familiar em detrimento da fecundidade humana da
relação inter-pessoal.
− Distorção dos
papéis:
a) Autoritarismo e
paternalismo, por parte do pai;
b) Hipertrofia da
afectividade e diminuição da autonomia, por parte da mãe;
c) Obediência e
diminuição dos direitos, por parte dos filhos.
− Constelação de sistemas
relacionais despersonalizados: individualismo; desconciencialização e
manipulação; repressão educativa (sobretudo sexual); estabilização como critério
omnipresente e asfixiante.
− Autarcia
familiar: vida familiar fechada; insularidade, a-politicidade; educação descomprometida.
Os valores e as atitudes autênticas da
vida familiar
A vida familiar
desenvolve-se mediante um conjunto de valores e de atitudes. Nem todos os sistemas de valores servem para
orientar a vida da família. É por isso que convém perguntar pelos
valores e atitudes que devem configurar a família que queira ser humanizadora,
quer ao nível pessoal (dinamismo personalizador), quer na sua relação
com a sociedade (função
socializadora).
A reorientação
moral da família tem de se realizar mediante a proposta de uma ética alternativa às éticas
apresentadas: ética dos deveres; do desenvolvimentismo consumista;
da privacidade.
O novo modelo moral
que proponho compõe-se de duas características que resumem a ética: a relação
personalizadora e a solidariedade comprometedora.
[…]
Marciano Vidal
Redentorista, professor de Teologia Moral
[pp.31]
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http://www.ihu.unisinos.br/noticias/506610-marciano-vidal-moralista-espanhol-censurado-pelo-vaticano