teologia para leigos

10 de julho de 2014

ÉTICA FAMILIAR [M.VIDAL]

ÉTICA FAMILIAR
− da moral autoritária ao ethos do afecto





A família tradicional e autoritária deu lugar à família desenvolvimentista e consumista[1]. Os presumíveis valores éticos que justificam a vida desta família pertencem à «ética do desenvolvimentismo consumista». O seu conteúdo básico traduz-se nas seguintes apreciações:

− a realização da pessoa como exigência individualista à custa seja lá de que bem for.

− a contínua promoção e ascensão dos membros da família num crescendo de «sempre mais»: os filhos «mais» que os pais; hoje «mais» do que ontem, etc.

− o consumismo como sinal de vitalidade e de progresso: consumo de bens (económicos, culturais, educativos, sociais, etc.).

− o trabalho e a ocupação fora de casa como sinal de desenvolvimento pessoal e como meio para alcançar o bem-estar do consumismo.

− a libertação sexual como espaço privilegiado da realização individual e do afã consumista.


O ethos do desenvolvimentismo consumista conduziu a vida familiar a uma profunda insatisfação e infelicidade[2]. A análise de Paulo VI na encíclica Populorum progessio sobre a vacuidade da ética do «ter» pode ser verificada na família consumista. A pseudo-ética do «ter» opõe-se à genuína ética do «ser». «O ter mais, seja para povos, seja para pessoas, não é o fim último (…). A busca exclusiva do possuir converte-se em obstáculo para o crescimento do ser e opõe-se à sua verdadeira grandeza; para as nações, como para as pessoas, a avareza é a forma mais do que evidente de subdesenvolvimento moral.[3]»


A ética da privacidade

Na vida familiar está-se a instalar o ethos da privacidade, que tanta influência exerce já em outros âmbitos da nossa existência humana. Da família consumista, sucessora da família autoritária, surgiu a família privaticista.

Os «valores» que a ética da privacidade projecta sobre a vida familiar são, sobretudo, os seguintes:

− a incomunicação sem protestos nem violências, mas como forma de vida que se livra de «implicações» ou «complicações».

− o prazer sem estridências ou com tonalidades de mediania.

− o trabalho (ou o desemprego) como «necessidade» e não como caminho de realização pessoal ou como dinâmica socialmente útil.

− a cultura do individual, do singular, do diferente como sinal de uma nova estética da existência humana.

− a promoção, certamente implícita e inconsciente, das virtudes do estoicismo ("sem stress", tranquilidade, harmonia, etc.), mas dum estoicismo sem sonhos de universalidade e sem paixão pela ‘humanitas’.


Recapitulando

Os três sistemas morais que acabei de referir desvirtuam o autêntico ethos da vida familiar. A família que surge de tais alicerces éticos não possui a função humanizadora a que corresponde a vida das pessoas (dinamismo personalizador), nem a relação com o conjunto da vida social (força socializadora). É preciso, portanto, reorientar a ética da vida familiar propondo uma alternativa moral para a família do futuro.

A imagem ideal de família surge, em grande medida, como reacção de contraste ante a contra-imagem que projectam as deformações éticas anteriormente descritas. Sintetizando, estes são os principais traços deformados que a contra-imagem da família apresenta:

Empresa (de produção e/ou de consumo), mais do que comunidade de pessoas.

Base reprodutora da sociedade repressiva e alienante.

A procriação como razão última da vida familiar em detrimento da fecundidade humana da relação inter-pessoal.

Distorção dos papéis:

a)   Autoritarismo e paternalismo, por parte do pai;
b)  Hipertrofia da afectividade e diminuição da autonomia, por parte da mãe;
c)   Obediência e diminuição dos direitos, por parte dos filhos.

Constelação de sistemas relacionais despersonalizados: individualismo; desconciencialização e manipulação; repressão educativa (sobretudo sexual); estabilização como critério omnipresente e asfixiante.

Autarcia familiar: vida familiar fechada; insularidade, a-politicidade; educação descomprometida.


Os valores e as atitudes autênticas da vida familiar

A vida familiar desenvolve-se mediante um conjunto de valores e de atitudes. Nem todos os sistemas de valores servem para orientar a vida da família. É por isso que convém perguntar pelos valores e atitudes que devem configurar a família que queira ser humanizadora, quer ao nível pessoal (dinamismo personalizador), quer na sua relação com a sociedade (função socializadora).

A reorientação moral da família tem de se realizar mediante a proposta de uma ética alternativa às éticas apresentadas: ética dos deveres; do desenvolvimentismo consumista; da privacidade.

O novo modelo moral que proponho compõe-se de duas características que resumem a ética: a relação personalizadora e a solidariedade comprometedora.

[…]

Marciano Vidal
Redentorista, professor de Teologia Moral


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LINKS:











[1] C. Thiebaut, «Los valores morales de la familia española», VÁRIOS, "Estudios sobre la familia española" (Madrid, 1987) 121-196.
[2] M. Gómez Ríos, «Familia y sociedad de consumo» (Madrid, 1985).
[3] Populorum progessio, 19.