Ternura: a seiva do amor
Mesmo no
coração da actual crise social não podemos esquecer a ternura que subjaz a todas
as iniciativas que têm a ver com valores: ela afecta o coração humano.
São misteriosos
os caminhos que vão do coração de um homem ao coração de uma mulher e do
coração da mulher ao coração de um homem. Igualmente misteriosas são as viagens
entre o coração de dois homens ou entre os de duas mulheres que se encontram e
declaram mutuamente os seus afectos. Desse ir e vir nasce o enamoramento, o
amor e, por fim, o casamento ou a união estável. Estamos a falar de
liberdades e isso pressupõe que os parceiros se encontram, inevitavelmente,
expostos a acontecimentos imponderáveis.
A própria existência
nunca está formatada de uma vez por todas. Vive em permanente diálogo com o
meio envolvente. Essa troca não deixa ninguém imune. Cada um está exposto. As fidelidades
mútuas são postas à prova. No matrimónio, passada a paixão, inicia-se
a vida quotidiana com a sua rotina cinzenta. No convívio a dois, ocorrem
desencontros, irrompem paixões vulcânicas provocadas pelo fascínio por uma terceira
pessoa. Não raro, o êxtase é seguido de decepção. Há regressos, perdões,
renovação de promessas e reconciliações. Acabam sempre
por ficar feridas que, mesmo cicatrizadas, lembram que um dia
sangraram.
O amor é uma chama
viva que arde, mas que pode bruxulear e lentamente cobrir-se de cinzas até apagar-se.
Não é que as pessoas se odeiem. Elas, apenas, ficaram indiferentes uma à outra.
É a morte do amor. O verso 11 do Cântico
Espiritual do místico S. João da Cruz − canção de amor entre a alma e
Deus − diz com agudeza de observação: "a doença do amor não se cura sem a presença e a
figura"[1].
Não basta o amor platónico, virtual ou à distância. O amor exige presença. Reclama
pela figura concreta, figura que é mais do que o corpo-a-corpo, mas o
cara-a-cara, o coração sentindo o palpitar do coração do outro.
Diz bem o poeta místico:
o amor é uma doença que − no meu modo de dizer − só se cura com aquilo que eu
chamaria ternura
essencial. A ternura é a seiva do amor. «Se quiseres guardar,
fortalecer, dar sustentabilidade ao amor, sê terno para com o teu companheiro
ou a tua companheira». Sem o azeite da ternura não se alimenta a chama sagrada
do amor. Ela apaga-se.
O que é a ternura? Para
começar, excluamos as concepções psicologizantes e superficiais que identificam
a ternura com a mera emoção e excitação do sentimento face ao outro. A focalização
apenas no sentimento gera o sentimentalismo. O sentimentalismo é um produto da subjectividade
mal integrada. É o sujeito que se dobra sobre si mesmo e celebra as sensações
que o outro provocou em si. Não sai de si mesmo.
Ao contrário, a
ternura irrompe quando a pessoa se descentra de si mesma, sai em direcção
ao outro, sente o outro como outro, participa de sua existência, deixa-se impressionar
pela sua história de vida. O outro marca o sujeito. Este demora-se no
outro, não pelas sensações que lhe produz, mas por amor, pelo apreço pela sua
pessoa e pela valorização da sua vida e da sua luta. "Eu amo-te,
não porque és bela; és bela, porque te amo".
A ternura é o afecto
que devotamos às pessoas em si mesmas. É o cuidado sem obsessão. Ternura não é efeminação
e renúncia ao rigor. É um afecto que, à sua maneira, nos abre ao conhecimento
do outro. O Papa
Francisco, no Rio, falando aos bispos latino-americanos presentes, pediu-lhes
"a revolução da ternura" como
condição para um encontro pastoral verdadeiro.
Na verdade só
conhecemos bem quando nutrimos afecto e nos sentimos envolvidos com a pessoa
com quem queremos estabelecer comunhão. A ternura pode e deve conviver com o empenho
radical por uma causa, como foi exemplarmente demonstrado pelo
revolucionário, incontestável, Che Guevara (1928-1968). Dele guardamos a máxima
inspiradora: "há que redobrar de dureza, mas sem nunca perder a ternura".
A ternura inclui a criatividade e a auto-realização da pessoa junto e através
da pessoa amada.
A relação de
ternura não
envolve angústia, porque não busca vantagens ou dominação. O
enternecimento é a própria força do coração, é o desejo profundo de partilhar
caminhos juntos. A angústia do outro é a minha angústia, o seu sucesso é o
meu sucesso, a sua salvação ou perdição é a minha salvação e a
minha perdição − no fundo, não só minha, mas de ambos.
Blaise Pascal (1623-1662),
filósofo e matemático francês do século XVII, introduziu uma distinção
importante que nos ajuda a entender a ternura: distingue o esprit de finesse do esprit de géometrie.[2]
O esprit de finesse é o espírito de finura, de
sensibilidade, de cuidado e de ternura. O espírito não só pensa e raciocina.
Vai para além disso, porque acrescenta ao raciocínio sensibilidade, intuição e
capacidade de sentir em profundidade. Do espírito de finura nasce o mundo das
excelências, dos grandes sonhos, dos valores e dos compromissos pelos quais
vale a pena despender energias e tempo.
O esprit de géometrie é o espírito calculista e
obreirista, interessado na eficácia e no poder. Mas onde há concentração de
poder aí não há ternura nem amor. Por isso, pessoas autoritárias são duras e
sem ternura e, às vezes, sem piedade. Porém, foi esse o modo-de-ser que
imperou na modernidade. A modernidade colocou num canto, sob muitas suspeitas,
tudo o que tem a ver com o afecto e a ternura.
Daí deriva também o vazio
aterrador de nossa cultura "geométrica" com sua pletora de
sensações, mas sem
experiências profundas; com um acúmulo fantástico de saber, mas
com parca sabedoria, com demasiado vigor da musculação, do sexualismo, dos artefactos
de destruição revelados nos serial killer, mas sem ternura e cuidado de
uns para com os outros, para com a Terra, para com seus filhos e filhas,
para com o futuro comum de todos.
O amor e a vida são frágeis. A sua força
invencível vem da ternura com a qual os cercamos e os alimentamos, sempre.
Leonardo
Boff
16
de Fevereiro de 2014
FONTES consultadas:
Leonardo Boff é autor de A força da
ternura, Mar de Idéias, Rio 2012.
A Interioridade humana e divina:
– deixar Deus alimentar a ternura
humana
− superar a mediocridade espiritual
dos católicos
− não impor plafond’s ou caixilhos a Deus
José
Antonio Pagola:
Ecclesalia:
[1] A edição
portuguesa, Edições Carmelo, 62005, p. 541, diz assim: «Mostra a tua
presença, / Matem-me
a tua vista e formosura, / Pois olha que a doença / De amor jamais
se cura / Senão com a presença e a figura». O verso 1, diz:
«Aonde Te
escondeste, Amado, e me deixaste num gemido?» [NdE/pb]
[2] «Les "PENSÉES" de Port-Royal,
XXXI, nº 2», Œuvres Complètes, Vol. II, Gallimard 2000, p. 1037. [NdE]