teologia para leigos

24 de junho de 2014

ALIMENTAR O AMOR CONJUGAL [BOFF]

Ternura: a seiva do amor




Mesmo no coração da actual crise social não podemos esquecer a ternura que subjaz a todas as iniciativas que têm a ver com valores: ela afecta o coração humano.

São misteriosos os caminhos que vão do coração de um homem ao coração de uma mulher e do coração da mulher ao coração de um homem. Igualmente misteriosas são as viagens entre o coração de dois homens ou entre os de duas mulheres que se encontram e declaram mutuamente os seus afectos. Desse ir e vir nasce o enamoramento, o amor e, por fim, o casamento  ou a união estável. Estamos a falar de liberdades e isso pressupõe que os parceiros se encontram, inevitavelmente, expostos a acontecimentos imponderáveis.

A própria existência nunca está formatada de uma vez por todas. Vive em permanente diálogo com o meio envolvente. Essa troca não deixa ninguém imune. Cada um está exposto. As fidelidades mútuas são postas à prova. No matrimónio, passada a paixão, inicia-se a vida quotidiana com a sua rotina cinzenta. No convívio a dois, ocorrem desencontros, irrompem paixões vulcânicas provocadas pelo fascínio por uma terceira pessoa. Não raro, o êxtase é seguido de decepção. Há regressos, perdões, renovação de promessas e reconciliações. Acabam sempre por ficar feridas que, mesmo cicatrizadas, lembram que um dia sangraram.

O amor é uma chama viva que arde, mas que pode bruxulear e lentamente cobrir-se de cinzas até apagar-se. Não é que as pessoas se odeiem. Elas, apenas, ficaram indiferentes uma à outra. É a morte do amor. O verso 11 do Cântico Espiritual do místico S. João da Cruz − canção de amor entre a alma e Deus − diz com agudeza de observação: "a doença do amor não se cura sem a presença e a figura"[1]. Não basta o amor platónico, virtual ou à distância. O amor exige presença. Reclama pela figura concreta, figura que é mais do que o corpo-a-corpo, mas o cara-a-cara, o coração sentindo o palpitar do coração do outro.

Diz bem o poeta místico: o amor é uma doença que − no meu modo de dizer − só se cura com aquilo que eu chamaria ternura essencial. A ternura é a seiva do amor. «Se quiseres guardar, fortalecer, dar sustentabilidade ao amor, sê terno para com o teu companheiro ou a tua companheira». Sem o azeite da ternura não se alimenta a chama sagrada do amor. Ela apaga-se.

O que é a ternura? Para começar, excluamos as concepções psicologizantes e superficiais que identificam a ternura com a mera emoção e excitação do sentimento face ao outro. A focalização apenas no sentimento gera o sentimentalismo. O sentimentalismo é um produto da subjectividade mal integrada. É o sujeito que se dobra sobre si mesmo e celebra as sensações que o outro provocou em si. Não sai de si mesmo.

Ao contrário, a ternura irrompe quando a pessoa se descentra de si mesma, sai  em direcção ao outro, sente o outro como outro, participa de sua existência, deixa-se impressionar pela sua história de vida. O outro marca o sujeito. Este demora-se no outro, não pelas sensações que lhe produz, mas por amor, pelo apreço pela sua pessoa  e pela valorização da  sua vida e da sua luta. "Eu amo-te, não porque és bela; és bela, porque te amo".

A ternura é o afecto que devotamos às pessoas em si mesmas. É o cuidado sem obsessão. Ternura não é efeminação e renúncia ao rigor. É um afecto que, à sua maneira, nos abre ao conhecimento do outro. O Papa Francisco, no Rio, falando aos bispos latino-americanos presentes, pediu-lhes "a revolução da ternura" como condição para um encontro pastoral verdadeiro.

Na verdade só conhecemos bem quando nutrimos afecto e nos sentimos envolvidos com a pessoa com quem queremos estabelecer comunhão. A ternura pode e deve conviver com o empenho radical por uma causa, como foi exemplarmente demonstrado pelo  revolucionário, incontestável, Che Guevara (1928-1968). Dele guardamos a máxima inspiradora: "há que redobrar de dureza, mas sem nunca perder a ternura". A ternura inclui a criatividade e a auto-realização da pessoa junto e através da pessoa amada.

A relação de ternura  não envolve angústia, porque não busca  vantagens ou dominação. O enternecimento é a própria força do coração, é o desejo profundo de partilhar caminhos juntos. A angústia do outro é  a minha angústia, o seu sucesso é o meu sucesso, a sua salvação ou perdição  é a minha salvação  e a minha perdição − no fundo, não só minha, mas de ambos.

Blaise Pascal (1623-1662), filósofo e matemático francês do século XVII, introduziu uma distinção importante que nos ajuda a entender  a ternura: distingue o esprit de finesse do esprit de géometrie.[2]

O esprit de finesse é o espírito de finura, de sensibilidade, de cuidado e de ternura. O espírito não só pensa e raciocina. Vai para além disso, porque acrescenta ao raciocínio sensibilidade, intuição e capacidade de sentir em profundidade. Do espírito de finura nasce o mundo das excelências, dos grandes sonhos, dos valores e dos compromissos pelos quais vale a pena despender energias e tempo.

O esprit de géometrie é o espírito calculista e obreirista, interessado na eficácia e no poder. Mas onde há concentração de poder aí não há ternura nem amor. Por isso, pessoas autoritárias são duras e sem ternura e, às vezes,   sem piedade. Porém, foi esse o modo-de-ser que imperou na modernidade. A modernidade colocou num canto, sob muitas suspeitas, tudo o que tem a ver com o afecto e a ternura.

Daí deriva também o vazio aterrador de nossa cultura "geométrica" com sua pletora de sensações, mas sem experiências profundas; com um acúmulo fantástico de saber, mas com parca sabedoria, com demasiado vigor da musculação, do sexualismo, dos artefactos de destruição revelados nos serial killer, mas sem ternura e cuidado de uns para com os outros,  para com a Terra, para com seus filhos e filhas, para com o futuro comum de todos.

O amor e a vida são frágeis. A sua força invencível vem da ternura com a qual os cercamos e os alimentamos, sempre.


Leonardo Boff
16 de Fevereiro de 2014

FONTES consultadas:


Leonardo Boff é autor de A força da ternura, Mar de Idéias, Rio 2012.




A Interioridade humana e divina:
– deixar Deus alimentar a ternura humana
− superar a mediocridade espiritual dos católicos
− não impor plafond’s ou caixilhos a Deus


José Antonio Pagola:

Ecclesalia:









[1] A edição portuguesa, Edições Carmelo, 62005, p. 541, diz assim: «Mostra a tua presença, / Matem-me a tua vista e formosura, / Pois olha que a doença / De amor jamais se cura / Senão com a presença e a figura». O verso 1, diz: «Aonde Te escondeste, Amado, e me deixaste num gemido?» [NdE/pb]
[2] «Les "PENSÉES" de Port-Royal, XXXI, nº 2», Œuvres Complètes, Vol. II, Gallimard 2000, p. 1037. [NdE]