«Ainda que tenha sido reconhecido em todo o mundo pela sua actividade
teológica, Gutiérrez nunca esqueceu a primazia do seu trabalho pastoral entre os pobres e entre os
insignificantes, uma actividade na qual colocou bem alto as implicações políticas do autêntico compromisso espiritual.
As obras de Gutiérrez enfrentam a questão ‘como viver como cristãos quando uma grande parte do mundo vive na indigência’.
Apesar de escritas originalmente em 1984, as suas palavras adquirem hoje uma
enorme relevância, em que 19% da humanidade luta
por sobreviver com menos de um dólar por dia, 48% com menos de dois dólares por
dia e dois terços do planeta vivendo sob
diversas formas de pobreza. À luz destes números, os textos de
Gutiérrez lançam, não só os custos económicos, mas também os custos humanos,
àqueles que hão-de prestar contas na hora da verificação da sua fidelidade à
mensagem evangélica, num mundo globalizado.» [D. G. Groody]
Fazer-se discípulo
Mística e política
É claro que a palavra «mística» remete-nos para uma experiência de Deus
como experiência de amor, de paz e alegria. Por outro lado, falar de opressão
significa referirmo-nos a uma situação de pobreza, injustiça e marginalização
com a sua sequela de sofrimento, rejeição e rebeldia. Serão vivências humanas
incompatíveis entre si?
Ora, acontece que quem se encontra sob essas duas situações são
simplesmente seres humanos, com todas as
dimensões pessoais que isso implica; e com eles, estão povos com a sua história, cultura e cosmovisão.
Estamos perante pessoas às quais, a pobreza e a espoliação, deixam uma marca na
fé em Deus que possuam e a quem, por sua vez, a fé deixa uma pegada na condição
de oprimidos e de discriminados que são.
É evidente a estreita relação entre mística e
política. Sem contemplação, sem oração e sem acção de graças a Deus
não há vida cristã; muito menos, sem compromisso, sem solidariedade e sem amor
ao próximo. Será possível falar-se duma dimensão mística na vida do crente que
sofre marginalização e injustiça e que, eventualmente, faz esforço por se
libertar dessas condições?
Procurar responder a esta pergunta pressupõe saltar fora do campo individual para nos situarmos em contextos socioculturais, segundo uma perspectiva
histórica a partir de lugares geográficos do planeta, que são diversos. Mas,
sobretudo, exige que sejamos sensíveis a um dos factos mais carregados de
consequências para o cristianismo contemporâneo: a fé cristã não só não surgiu,
como cresceu e amadureceu em povos não ocidentais
secularmente pobres e oprimidos.
Actualmente, na Igreja, certos conflitos de interpretação acerca dos tempos
que vivemos e acerca dos desafios que esses tempos nos colocam provocam
frequentemente tensões, dificuldades, desencontros, temores que impedem que nos
dêmos conta de algo muito mais importante que essas diferenças está a acontecer
entre nós. Num célebre artigo, ao jeito de balanço sobre o concílio Vaticano
II, Karl Rahner dizia que o seu maior significado estava em que com ele se
iniciava uma terceira etapa da vida da Igreja,
um momento em que a Igreja começava a ser autêntica e universal.
A vigência das Igrejas locais situadas em lugarejos longínquos, geográfica
e culturalmente, face à Europa, a força da sua voz marcada pela dor e pela
esperança, os contributos da sua reflexão teológica e os novos desafios que
isso implica configuram o acontecimento mais importante da fé cristã. É neste
plano que se deve situar o tema mística e opressão.
A presença daqueles que são diferentes da cultura ocidental sem dúvida que se fez
ouvir, porém, isso nem sempre foi levado a sério. Seremos, por isso, obrigados
a reler os textos nucleares da revelação cristã que permitam iluminar o
processo em curso, a fim de traçar o perfil do modelo de espiritualidade que a
opção preferencial pelo pobre representa. [A densidade do
presente, p. 273-275]
(...)
Gustavo Gutiérrez, op
Lima,
Perú
[pp. 11]