teologia para leigos

30 de maio de 2013

UMA MÍSTICA (DO) POBRE [G. GUTIÉRREZ]

«Ainda que tenha sido reconhecido em todo o mundo pela sua actividade teológica, Gutiérrez nunca esqueceu a primazia do seu trabalho pastoral entre os pobres e entre os insignificantes, uma actividade na qual colocou bem alto as implicações políticas do autêntico compromisso espiritual. As obras de Gutiérrez enfrentam a questão ‘como viver como cristãos quando uma grande parte do mundo vive na indigência’. Apesar de escritas originalmente em 1984, as suas palavras adquirem hoje uma enorme relevância, em que 19% da humanidade luta por sobreviver com menos de um dólar por dia, 48% com menos de dois dólares por dia e dois terços do planeta vivendo sob diversas formas de pobreza. À luz destes números, os textos de Gutiérrez lançam, não só os custos económicos, mas também os custos humanos, àqueles que hão-de prestar contas na hora da verificação da sua fidelidade à mensagem evangélica, num mundo globalizado.» [D. G. Groody]


Fazer-se discípulo




Mística e política

É claro que a palavra «mística» remete-nos para uma experiência de Deus como experiência de amor, de paz e alegria. Por outro lado, falar de opressão significa referirmo-nos a uma situação de pobreza, injustiça e marginalização com a sua sequela de sofrimento, rejeição e rebeldia. Serão vivências humanas incompatíveis entre si?

Ora, acontece que quem se encontra sob essas duas situações são simplesmente seres humanos, com todas as dimensões pessoais que isso implica; e com eles, estão povos com a sua história, cultura e cosmovisão. Estamos perante pessoas às quais, a pobreza e a espoliação, deixam uma marca na fé em Deus que possuam e a quem, por sua vez, a fé deixa uma pegada na condição de oprimidos e de discriminados que são.

É evidente a estreita relação entre mística e política. Sem contemplação, sem oração e sem acção de graças a Deus não há vida cristã; muito menos, sem compromisso, sem solidariedade e sem amor ao próximo. Será possível falar-se duma dimensão mística na vida do crente que sofre marginalização e injustiça e que, eventualmente, faz esforço por se libertar dessas condições?

Procurar responder a esta pergunta pressupõe saltar fora do campo individual para nos situarmos em contextos socioculturais, segundo uma perspectiva histórica a partir de lugares geográficos do planeta, que são diversos. Mas, sobretudo, exige que sejamos sensíveis a um dos factos mais carregados de consequências para o cristianismo contemporâneo: a fé cristã não só não surgiu, como cresceu e amadureceu em povos não ocidentais secularmente pobres e oprimidos.

Actualmente, na Igreja, certos conflitos de interpretação acerca dos tempos que vivemos e acerca dos desafios que esses tempos nos colocam provocam frequentemente tensões, dificuldades, desencontros, temores que impedem que nos dêmos conta de algo muito mais importante que essas diferenças está a acontecer entre nós. Num célebre artigo, ao jeito de balanço sobre o concílio Vaticano II, Karl Rahner dizia que o seu maior significado estava em que com ele se iniciava uma terceira etapa da vida da Igreja, um momento em que a Igreja começava a ser autêntica e universal.

A vigência das Igrejas locais situadas em lugarejos longínquos, geográfica e culturalmente, face à Europa, a força da sua voz marcada pela dor e pela esperança, os contributos da sua reflexão teológica e os novos desafios que isso implica configuram o acontecimento mais importante da fé cristã. É neste plano que se deve situar o tema mística e opressão. A presença daqueles que são diferentes da cultura ocidental sem dúvida que se fez ouvir, porém, isso nem sempre foi levado a sério. Seremos, por isso, obrigados a reler os textos nucleares da revelação cristã que permitam iluminar o processo em curso, a fim de traçar o perfil do modelo de espiritualidade que a opção preferencial pelo pobre representa. [A densidade do presente, p. 273-275]
(...)


Gustavo Gutiérrez, op
Lima, Perú

[pp. 11]