«A luta pelo meu pão, só pode ser
materialismo; a luta pelo pão dos outros, isso já é espiritualidade.» [Abbé
Pierre]
«Abbé Pierre - Queria ser marinheiro, missionário ou vagabundo» |
Respeitar o homem
infeliz, inspirar-lhe confiança, merecê-la.
Respeitar o seu
segredo e o seu pudor, pois o seu passado não nos pertence.
Respeitar a sua
liberdade religiosa: não o obrigues a cantar salmos, oferecendo-lhe sopa em
troca. Seria degradá-lo.
Restituir ao homem
a sua dignidade: é esse o grande segredo, sem o qual nenhum desses trapeiros
faria o que faz, nem viveria em condições pré-históricas, em campos enlameados.
Assim Deus estará no seu trabalho e, mais cedo ou mais tarde, sem que nós
intervenhamos de fora, entrará no seu coração reconciliado.
Deus não está no
Céu, está no pobre que te fala neste momento. Cristo encarna este rufião, este
ladrão, este aldrabão. A glória de Deus encarnou em ti, que me lês, em mim, que
te falo.
O homem tem uma
alma; mas, antes de lhe falarmos dela, coloquemos uma camisa e um tecto por
cima dessa alma. Depois disso, explicar-lhe-emos o que está lá dentro.
Não se trata apenas
de dar algo de que viver, mas de dar aos infelizes razões para viver.
Eis um dos
princípios de Emaús: a mesma sopa para toda a gente, crente ou não crente.
A luta pelo meu
pão, só pode ser materialismo; a luta pelo pão dos outros, isso já é espiritualidade.
O valor que um
pobre associa a esta palavra − um valor absoluto, sagrado: «é um tipo
sincero». Será no mesmo tom com que estes homens, na sua miséria extrema,
pronunciam esta palavra, que o Senhor falará de cada um no Juízo Final: «Tive
fome e deste-me de comer, foste sincero.» Tudo o resto não passa de um meio, o
fim é esse.
A primeira regra
antes de agir é colocar-se no lugar do outro.
Guardemos no
coração a impaciência de fazer. E a indignação na acção.
Não devemos esperar
ser perfeitos para começar a fazer o bem.
Não é puxando a
erva que se consegue fazer crescer o trigo mais depressa. Saber ter paciência
com amor, olhar dia após dia o pequeno esforço, a lenta subida de cada um.
Numa árvore há um
tronco, apenas um, mas reparem nas raízes: não há duas iguais, e são essas
raízes invisíveis, enterradas na imundície, no esterco, na lama, com a sua diversidade,
que constituem a fonte da sua vitalidade. Reparem nos ramos: não há dois iguais;
eles procedem de um tronco único, com a sua diversidade. É necessário que
sejamos capazes de nos estimarmos uns aos outros, nas nossas diversidades.
Aquilo que fizemos
de mais importante talvez tenha sido ter tido essa indolência de fazer coisas
que não se fazem, de dizer coisas que não se dizem, de desafiar essa hipocrisia
inconsciente das pessoas felizes e de lhes atirar à cara o desagradável espectáculo
da desgraça e do sofrimento injustos daqueles que são infelizes.
Que ninguém me peça
para ser prudente ou para reflectir ponderadamente antes de tomar uma decisão.
Que ninguém me peça para ser ajuizado, como se diz a uma criança: «Porta-te
bem. Fica quietinha.» Não vale a pena. Eu nunca terei esse tipo de juízo. É
assim, eu fui feito assim.
Oxalá viesse o fim do mundo
Anjos da guarda,
Onde estais afinal,
que fazeis?
Anjos de ricos
Anjos de desolados
Anjos de todos os
filhos do homem,
Olhai!
Dói demasiado,
Já não conseguimos
dormir
Anjos, ralhai,
Clamai, batei
Há demasiadas
lágrimas
E barrigas famintas
E costas febris
E mãos vazias
No meio de barrigas
demasiado cheias
De risos animais
Do suor de bestas
demasiado vestidas
Ou do requinte
Dourado de gente
que não presta para nada.
Anjos, soai
As vossas trombetas
sonoras
Que a partilha se
faça.
Ah! Oxalá viesse o
fim do mundo,
A justiça, por fim.
Há demasiada
infelicidade
Demasiada maledicência
No meio de
demasiados
Patifes distintos.
(2 de Agosto de
1955)
Em primeiro lugar
esta evidência: quem quer que sejamos, minúsculos, ultrapassados ou falhados, todos
nós podemos ser chamados a servir. E isso não tem muito a ver com o mérito.
Basta dizer sim a um apelo e regressar a esse sim apesar dos momentos de falhanço
total.
E, ao mesmo tempo,
isso ensinou-me o que é ser horrivelmente humilhado no próprio interior, ao
descobrir, cruamente, que não sou admirável nem capaz, ao passo que, à nossa
volta, todos reivindicam aquele que é assim transformado em vedeta.
E isso também me
ensinou a ter muita paciência, pois foi necessário continuar. E continua a sê-lo.
Embora sabendo-me, em cada dia, tão insuficiente.
Finalmente, não é o
trabalho que confere dignidade ao homem. É o homem que confere a sua dignidade
ao trabalho, consoante o objectivo que lhe dá. O trabalho não passa do
cumprimento do dever, para cada um, de utilizar as próprias capacidades ao
serviço dos outros, e, de modo especial, dos mais sofredores.
O trabalho não
basta; podemos trabalhar para nós próprios e fecharmo-nos no nosso egoísmo. Mas
o serviço é um meio de nos endireitarmos de novo. É o que dá todo o seu sentido
ao trabalho e à nossa vida. É o que faz de um ser uma pessoa, ou seja, uma
relação de amor.
A pior afronta que
se pode fazer a um companheiro de quem não se gosta é desejar-lhe que se torne
célebre.
Gargareja-se com o
«formidável Abbé Pierre» e contentam-se com isso. Quanto ao resto? Não se faz
nada… Cria-se um culto e, com a desculpa desse culto, esquece-se o mais
importante: as famílias e os miúdos das tendas.
Fazer a caridade é a
lei da construção do mundo. A verdadeira caridade não consiste em chorar nem, simplesmente,
em dar, mas em agir contra a injustiça.
A piedade não é um fim.
Só a justiça é um fim digno do homem.
Abbé Pierre
Excertos
de “Abbé Pierre – Queria ser marinheiro, missionário ou
vagabundo.” Ed. Paulinas, Abril 2013, ISBN (em português) 978-989-673-306-3.
“L’Abbé Pierre
– Je voulais être marin, missionaire ou brigand”, Le Cherche Midi, Paris 2002, ISBN
(edição original em francês) 2-74910-015-1. (Excertos de: pp. 115.117.118-122, na
edição portuguesa; tem 247 páginas e custa cerca de 15 euros)